Ah, meus senhores, não confiem demais! Basta apenas um sopro para levar embora essa realidade! Não vêem que ela muda dentro de vocês continuamente? Muda assim que se começa a ver, a ouvir e a pensar um tantinho diferentemente de antes; de modo que, o que antes lhes parecia ser a realidade, agora percebem que era uma ilusão. Mas será que há outra realidade fora dessa ilusão?
Luigi Pirandello
Um Retrato de Mulher, Fritz Lang, 1944.
A ambigüidade.
Uma das maiores características do cinema
Noir. Seja pelo caráter de seus personagens ou nas ações que eles provocam, a ambigüidade é o núcleo de toda as narrativas desse escorregadio estilo cinematográfico. E é através dela que pelo
Noir tocamos no núcleo do que se entende por intenção artística, sempre imbuída de uma abertura que não permite a certeza pelo certo ou o errado, o direito ou o avesso, a verdade ou a ilusão. No
Noir, tais contornos se diluem.
As inquietações de Pirandello, homem que externou como poucos o desespero pela incerteza da arte, ao se dirigirem àquilo que move um objeto estético, alcançam muito apropriadamente o interesse do
Noir, e porque não afirmarmos, o universo específico de
Um Retrato de Mulher, filme que centraliza diversos dos aspectos do gênero, sendo capaz de subsistir como um referente ímpar do mesmo.
O filme de Fritz Lang (autor de quem venho me aproximando com mais intimidade e que tem se revelado uma verdadeira mina de ouro para se entender o
Noir) é impulsionado por um irresistível ponto de partida: a paixão de um homem por uma obra de arte em que figura uma belíssima mulher e seu conseqüente encantamento com a modelo que inspirou o retrato. Desde o início fica estabelecido o domínio da ilusão, do amor não pela carne, mas pela imagem desta; do fascínio não pela realidade, mas pela verdade que sua representação origina.
É a partir desse
pathos que seremos conduzidos a uma intrincada teia que culminará num crime. Mas não é exatamente no enredo que eu pretendo me fixar aqui, pois ele deve ser bem guardado para os que escolherem ser cúmplices de Lang. O que me interessa, na verdade, é destacar alguns elementos que justificam o lugar de
Um Retrato de Mulher, não apenas como exemplo maior do Noir, mas como catalisador de questões centrais ao obscuro lado ilusório da arte.

O Ângulo acima, pelo cenário que abriga o momento do crime, indica algumas recorrências estruturais da própria diegese filmada. Aliás, não posso conter o espanto diante da construção espacial que Lang confere à totalidade dessa obra, que eu não poderia jamais conseguir sintetizar em tão poucas palavras (nem mesmo em muitas...)
Primeiramente, numa leitura que almeja pelo que nos é mais próximo dentro da imagem, vemos a averiguação do corpo abatido, a verificação de que há realmente uma passagem da morte nesse lugar. Muito mais do que o próprio ato sobre o cadáver, vemos o reflexo direto no espelho em frente do vulnerável professor apaixonado, que por sua paixão nos parece inocente, um ser deslocado no lugar e na hora errados. É a especularidade daí surgida que nos leva a perceber com maior ênfase o labiríntico e sedutor contorno da grande lareira que emoldura toda a situação. Figura (labiríntica) que não abandonará a visualidade até o final do filme e que concentrará em si, muitos dos significados enganosos e ambíguos que nos envolverão a partir daí. Por fim, na extremidade da imagem, a sobrevivência da mulher apavorada, paralisada não mais para inspirar uma pintura, mas para inspirar em nós o mais profundo medo pelas conseqüências do assassinato.
É engraçado, cruelmente engraçado, como a presença da mulher orienta toda nossa emoção no decorrer da intriga. Alguns minutos antes dessa cena, a vemos entrar nesse ambiente pela primeira vez, contornando toda a dimensão da sala para acender continuamente três abajures que iluminarão o lugar (nenhum ângulo daria conta do poder que sua presença emana ao movimentar-se pelo cenário). Agora, passado o momento da violência, ela permanece acuada, impotente, cedendo ao próprio espaço o poder que outrora pertenceu ao seu corpo. E é dessa forma que seremos conduzidos até a última imagem de
Um Retrato de Mulher, num desequilíbrio entre os corpos e os soberbos espaços Languianos, desequilíbrio especular à própria alma de seus personagens, que pendem entre o crime e o castigo, sem nenhuma esperança de inocência.
O labirinto da imagem, por nunca mostrar seu início e seu fim, ou seja, o ponto de contato entre o chão e a lareira, centraliza toda a configuração narrativa de
Um Retrato de Mulher, obra que parece mesmo ser desprovida de um início e um final, já que ambos são relegados a um segundo plano diante de todo o
entreato em que o filme vigorosamente se sustenta. Assim como nunca sabemos qual o caminho para o fim de um labirinto, a certeza de uma saída e de uma luz apaziguadora não é o objetivo de Fritz Lang, por mais que seu final tente nos enganar. Seus personagens, como nós, habitarão para sempre um entre-lugar que toca o sonho e o despertar, a ilusão e a realidade, comprovando a ambígua apreensão que o
Noir abstrai do mundo.
Sem tirar o pé da ilusão, ancoro-me nas palavras da profª e amiga Maria do Carmo Nino, quando ela afirma que “mesmo que sem dúvida haja uma angústia do labirinto, pode-se falar também do prazer da sensação de perda.
Existem labirintos que também são felizes.” O de Lang é um deles.