sexta-feira, 2 de novembro de 2012

ESPECIAL LISANDRO ALONSO - FILMOLOGIA



O especial sobre Lisandro Alonso marca a primeira edição no Filmologia sobre um cineasta latino-americano não brasileiro, atravessando sua breve filmografia, composta de quatro longas e dois curtas, com olhares polifônicos.
Alonso cria um ritmo próprio para o espectador. Transforma, assim, o tempo de seus planos com seus personagens imantados de verdade, não no que nos acostumamos chamar de “tempos mortos”, o próprio cineasta refuta essa expressão, mas um tempo contemplativo, que obriga os espectadores se liberarem um pouco de suas amarras estéticas e técnicas para conseguirem se aproximar, eles próprios, da crueza e potência das imagens. Diante de um cenário em que o verde natural domina, em que ecoam os sons dos mais diferentes seres, em que o elemento humano alcança uma assustadora simbiose com o ambiente, seria no mínimo evasivo chamar a duração da experiência de tempo morto. Dos garotos entediados sentados numa viela, da minuciosa rotina de um lenhador isolado; do ex-presidiário retornando vagarosamente à sua casa no coração da floresta ao momento em que ele visita um cinema transformado em fantasmagoria para assistir ao filme que protagoniza, Alonso defende o tempo de seus planos quase como uma utopia. 


Edição #11 - SITE FILMOLOGIA

O CINEMA-PARÁBOLA DE NACER KHEMIR

[extraído de minha publicação no livro XIII Estudos de Cinema e Audiovisual SOCINE – vol.1, organizado por Gustavo Souza, et al. São Paulo: Socine, 2012, p.328-340. Disponível para download em PDF]

Figura singular da moderna cultura árabe, Nacer Khemir é um homem das artes que, honrando o título, não dedica privilégios a códigos ou linguagens específicas. Seu princípio criativo parte de uma herança legada pelo saber ancestral de um povo e um lugar que encontra na narrativa a sobrevivência, a continuidade de uma sempre renovada tradição. Poeta, romancista, escultor, caligrafista e arabista, o tunisiano Khemir (nascido em 1950) encontrou no cinema mais uma vertente para este exercício que lhe é tão caro: contar histórias. 

Os três longas que compõem sua refinada carreira, conhecidos em conjunto como formadores da “Trilogia do deserto”, abarcam um repertório de lendas, mitos e memórias da cultura árabe clássica que, pelo dispositivo audiovisual, são atualizados e acrescidos de novos significados e possibilidades de interpretação; são eles: Andarilhos do deserto (1986), O colar perdido da pomba (1992) e Baba Aziz – O príncipe que contemplou sua alma (2005). 

Todos ambientados numa onipresente paisagem desértica, característica da geografia que toma quase metade da Tunísia com o Saara, os filmes de Nacer Khemir fazem da virtualidade da areia a base para o entrelaçamento de suas alegorias sempre labirínticas, dos mitos que impregnam as imagens deste cinema com um caráter pictórico bastante estranho para os referenciais estéticos ocidentais. Do cinema enquanto parábola, Khemir configura um interesse pela imagem que ultrapassa as fronteiras de sua geografia para desenvolver temas de alcance universal, desprovidos de nacionalidade, mas pautados por uma língua (árabe) que precisa permanecer como caminho para que suas histórias não morram. 

***

O jovem professor que aceitou assumir a escola de um pequeno vilarejo é a figura central em Andarilhos do deserto, curiosamente interpretada pelo próprio Nacer Khemir. Ao afastar-se dos seus, de seu lar e do ambiente urbano a que deveria estar acostumado, lançando-se ao contato de uma nova cultura e meio de sobrevivência, ele não prevê o quanto este choque lhe será definitivo, transformador, responsável por uma nova compreensão de seu destino. No povoado, completamente cercado pela imensidão do deserto, o professor descobre uma prática de vida enigmática, que à primeira vista assombra pela aparente perversidade, mas que terminará por seduzi-lo: ali, alguns homens são levados a abandonar tudo para se dedicar a uma interminável errância pelo deserto, motivados por algo maior que lhes pesa como uma vocação inquestionável, incontornável. Para os que ficam, suportar o que se assemelha a uma maldição é tudo que resta, na esperança de que os meninos de pouca idade não sejam também escolhidos e tomados futuramente de seu convívio. 

Hospedado no quarto de um rapaz que também desapareceu junto ao grupo de andarilhos, o professor começa a se interessar pelas tradições e mitos que abundam o local. Na parede junto ao seu leito, encontra registrada uma misteriosa forma, deixada pela mão do antigo habitante do lugar; segundo sua mãe, a única imagem que ficou dele, antes de perder-se no deserto. Estas revelações, assim como a irresponsável leitura de um livro proibido, são o que levam o professor a desaparecer, arrastado por uma inominável figura feminina em direção ao deserto.

Já refletida uma potencial relação entre a areia e a imagem de cinema, vislumbramos agora um maior aprofundamento nas conseqüências de tal especularidade, pelo que esta associação amplia do alicerce encontrado por ambas (a imagem e a areia) nos fundamentos do tempo e do espaço. Em suas considerações sobre a ‘palavra profética’, uma palavra que emana naturalmente do deserto, Maurice Blanchot orienta-nos a um pensamento elementar àquilo que aqui traçamos; ele afirma: “O deserto ainda não é nem o tempo, nem o espaço, mas um espaço sem lugar e um tempo sem engendramento.” Prerrogativas que também podem, mais uma vez, ser aplicadas ao cinema e sua constituição imagética de expressão; afinal, como trabalhar um conceito de visualidade pautado pelo tempo e o espaço se não assumindo uma primeira ausência destes vetores? A imagem de cinema não pode ser simplificada a um paralelo dos elementos que lhe dão forma, porque, muito naturalmente, ela é anterior a eles. Na imagem, assim como no deserto, o tempo e o espaço vêm configurar uma espécie de falta, de algo a ser completado pelo que o Movimento traz de essencial, de mundano e orgânico. Se Blanchot identifica uma ‘existência móvel’ para aqueles que habitam no deserto – o que não podemos deixar de associar à própria existência do cinematográfico –, é porque o ‘não-tempo’ e o ‘não-espaço’ que originam a região desértica opõem-se diretamente a qualquer tipo de estabilidade ou fixação das formas. Lugares de errância, a imagem e a areia dependem de um constante deslocamento. Alterações do ser. Mobilidades.

Mas continuemos acompanhando o teórico: “Nele [o deserto], pode-se apenas errar, e o tempo que se passa nada deixa atrás de si, é um tempo sem passado, sem presente, tempo de uma promessa que só é real no vazio do céu e na esterilidade de uma terra nua (…)”. De onde começamos a compreender a importância de tais enunciados para a experiência que vivemos em Andarilhos do deserto. O autor prossegue: “O deserto é o fora, onde não se pode permanecer, já que estar nele é sempre já estar fora.” 

Em seu primeiro longa-metragem, Nacer Khemir desarticula o tempo da narrativa a partir da própria areia e da relação nutrida por esta não só com a geografia, mas com os habitantes daquele contexto, com o drama que os aprisiona. O que fica para trás – para os andarilhos, para o professor que desaparece, para aqueles que continuam no vilarejo – é uma anulação temporal, uma memória avessa. Assim como Blanchot identifica uma impossibilidade de permanência dentro do deserto, Khemir provoca algo semelhante dentro de suas imagens, pois como ignorar sua decisão de interpretar, por si próprio, aquele protagonista que perderá o direito de um lugar ao corpo? Seu personagem, dos mais intensos por ele já criados, é a própria encarnação do enigma, tanto que chega ao ponto de abandonar sua carnalidade/materialidade para favorecer o mistério, único elemento que adentra livremente seu filme.

É preciso ainda considerar o caráter espiritual que atravessa o trabalho de Khemir. Além de ser um mantenedor das tradições culturais daquele povo à beira do esquecimento, o deserto aqui representado não abandona a inevitável relação que toda paisagem desértica mantém com a santificação do corpo. Daí é possível concluir que o desaparecimento do professor se manifesta como a única maneira de confrontar alguma sacralidade com a imagem de cinema, imagem basicamente destituída de aura (não apenas num sentido benjaminiano), de individualidade, de privacidade, por assim dizer. Não é da narrativa que o professor foge, pois a procura por ele movimenta toda a parte final do filme, mas seu apagamento se dá no cerne da própria imagem, como indica a última cena em que vemos o personagem de Nacer Khemir: num plano fixo, o professor se afasta, de costas, caminhando contra a câmera, na contramão de nosso olhar, rumo ao deserto que identificamos no horizonte oposto. 

***

O título O colar perdido da pomba, que dá nome ao segundo longa de Nacer Khemir, é o mesmo de um livro procurado pelo protagonista do filme em questão. Hassan, jovem estudante da arte da caligrafia árabe, deseja ardentemente conhecer o significado do amor. Junto ao aprendizado com seu mestre, passa a colecionar palavras que representem o nobre sentimento (pois no árabe existem mais de 60 verbetes relacionados ao amor); valorizando devidamente a importância de sua escrita, do que pode materializar aquilo que se sente numa expressão única, conciliadora. Como lhe ensina seu mestre: a palavra é o elo entre o visível e o invisível.

Surpreendido com a descoberta do fragmento de um manuscrito, Hassan sai em busca das peças faltantes, acreditando que a página em mãos faz parte de um livro capaz de revelar os segredos do amor. Os poderes mágicos do manuscrito colocam-no em contato com um mundo de seres e acontecimentos inexplicáveis, e após saber de uma estranha viagem empreendida por seu mestre, Hassan também decide abandonar-se em meio ao deserto, numa desesperada busca que lhe fará encontrar a princesa descrita pelo livro, assim como o restante do próprio livro, nenhum deles suficiente para lhe desvendar as dimensões reais do amor.

Em entrevista, Nacer Khemir declarou: “Este mundo [árabe-islâmico] é uma parábola real, se tomarmos a idéia de que cinema é o espaço-tempo que está localizado entre o ponto em que estamos parados e o ponto que estamos olhando.” É por isso que cada um dos filmes do diretor vem se constituir enquanto representação simbólica, consciente de seus efeitos e intencionalmente colocada a partir de uma perspectiva muito próxima da literatura. O caráter romanesco do cinema de Khemir, longe de qualquer relação com o tipo audiovisual americano que vemos nascer desde o cinema mudo, vem assim revestir-se, pelo tom hierático de suas imagens, de uma configuração íntima à parábola, gênero mui caro ao realizador.

Para um maior esclarecimento da proposta conceitual encontrada no cinema de Khemir – aquilo que identificamos como um Cinema-Parábola –, importa compreender melhor o que esta forma narrativa designa desde sua estrutura. Segundo a teoria literária, a parábola é: uma narrativa breve, de caráter universal, amimética, onipessoal, onigeográfica e onitemporal; identificada com o apólogo e a fábula, mas distinta destes por ser protagonizada por seres humanos; uma “metanarrativa”, passível de ser encaixada no corpo de um discurso mais amplo; uma estratégia comunicativa em construção; uma composição textual de fácil compreensão, oferecendo resposta imediata ao estímulo dado; dotada da intenção de provocar emoções no interlocutor, induzindo-o a tomar um partido (declarado ou não) diante da situação representada, sem se dar conta de que está julgando-se a si próprio.

Com isso, não só identificamos uma série de características da ‘Trilogia do deserto’, mas também adentramos numa clara percepção da maneira como estes filmes vêm beber na tradição cultural que é herdeira das Mil e uma noites. Na verdade, se a relação do Nacer Khemir cineasta, com sua erudição literária, precisa ser evidenciada, ela não pode partir de outro ponto senão desse tesouro da literatura universal, presente nos ecos mais profundos de cada situação filmada pelo diretor. 

A formulação digressiva e fragmentária da narrativa, o encadeamento lógico subversivo entre as cenas com a fusão de tempos díspares, o contorno de tantos personagens lacunares e incompletos, são inúmeras as referências nos filmes de Khemir ao imaginário literário que aqui relacionamos. Se em O colar perdido da pomba temos um exacerbar do interesse pela palavra, daquilo que leva o jovem caligrafista a desacreditar de qualquer coisa que fuja ao verbo, não é somente nesse filme em que Khemir vem assumir suas influências milenares. Identificadas as interseções destes universos, elencamos alguns dos elementos estruturais do Livro das mil e uma noites, refletidos por Mamede Jarouche, tradutor da obra para o português, em seu ensaio introdutório à publicação:

1) Prólogo-moldura: quadro inicial em que se conta a ‘história das histórias’, ou seja, os motivos por que as conversações nele contidas foram entabuladas ou compostas; é a voz que lhes dá voz. 2) Histórias exemplares: sua transmissão é dada pela repetição, incessantemente, no interior de determinado quadro narrativo mais amplo; seu sentido é moralizante e o objetivo, didático. 3) Ato narrativo noturno: entretenimento de sentido ornamental também vinculado à transmissão de experiência acumulada; adapta e atualiza narrativas do gênero histórico.

Cada uma destas características literárias pode ser encontrada nos três filmes de Nacer Khemir, manifestas explicitamente pelos enredos, de sua estrutura à superfície das imagens. São operações narrativas que acentuam a força dos símbolos e alegorias que neles abundam, orientando o espectador a partir de uma distinta linearidade. Através delas (e mesmo algumas outras que carecem de maior aprofundamento para serem apontadas), a proposta de um Cinema-Parábola vem valorizar esta espécie de tempo infinito da narrativa, vastidão do que não se pode terminar de contar. 

***

Todo o cinema de Khemir nasce do deserto. Isso fica ainda melhor representado pelo terceiro filme de sua Trilogia, que abre com os personagens principais sobrevivendo a uma tempestade de areia, esforçando-se por sair das entranhas da terra. Baba Aziz – O príncipe que contemplou sua alma, narra a trajetória de um dervixe (monge de vida nômade) e sua neta espiritual, que percorrem o deserto atrás de uma grande reunião de dervixes que ocorre uma vez a cada trinta anos. O que os conduz é unicamente a fé, pois nem sequer um mapa ou qualquer indicação territorial eles possuem para chegar ao seu destino. No caminho, o velho sábio se distrai contando estórias e ensinando lições à menina, que se interessa profundamente por todo conhecimento transmitido.

Dentre estas narrativas, que são entrelaçadas pelo contato com outros viajantes, a menina se encanta particularmente por uma que descreve a vida de um jovem e rico príncipe que, atraído por uma misteriosa gazela, é levado a abandonar o seu privilegiado espaço para perder-se solitariamente no deserto, onde fica a contemplar seu reflexo na superfície de uma pequena poça d’água que não seca. Ali, ele enxerga a própria alma, e não pode ser interrompido ou desperto do transe, sob o risco de perdê-la. De tanto contemplá-la, ele deixa o mundo visível pelo invisível, estando apto para tornar-se também um dervixe. Ao final do filme, descobrimos junto com a menina, que seu avô é o protagonista da lenda, e que toda a viagem foi um preparativo para sua morte, seu casamento com a eternidade.

Uma característica que se amplia em Baba Aziz, talvez o mais difícil dos filmes de Khemir a ganhar forma, em termos de logística e produção, é o fluxo de nacionalidades que atravessa sua narrativa e composição formal. Se o primeiro trabalho do diretor resultava de uma parceria apenas franco-tunisiana, o terceiro já será fruto de uma co-produção que envolve sete países distintos, acentuando o sentido político do resguardo às línguas e tradições que nascem do deserto e a ele parecem retornar perpetuamente. É o próprio deserto quem primeiro justifica este caráter de produção transnacional, típico da contemporaneidade no cinema e propício para o projeto pessoal nutrido por Khemir. Na condição de fronteira em que a areia naturalmente se encontra, o deserto é o lugar de contato cultural dos mais distintos povos, situando-os dentro de uma plena igualdade que não ignora sua especificidade e terminam assim refletidas pela imagem.

Considerando o conceito transnacional de criação de filmes como uma das variáveis agora presentes na Trilogia do deserto, observamos: “O projeto do cinema transnacional rejeita totalmente essas zonas de conforto e procura desemaranhar as maneiras não programáticas através das quais a criação cinematográfica contemporânea opera.¹” Do entendimento que a transcrição dá ao que chama ‘zonas de conforto’, reside toda uma interpretação ainda formada seja pela romântica noção de autoria ou mesmo por uma inevitável perspectiva teleológica de criação que muitos insistem em manter diante do cinema – como da literatura. O afastamento de uma tradição norteada por cinemas nacionais – objetivo evidente de Nacer Khemir –, termina por compreender a prática cinematográfica dentro de um caráter polifônico, não coesivo e indeterminado, respeitando as condições econômicas e culturais em que se deu a produção de um filme.

Um entendimento transnacional “explora os mecanismos através dos quais os fluxos culturais e ideológicos interagem uns com os outros além das fronteiras territoriais e analisa textos cinemáticos diferentes de forma dialógica e desterritorializada.” Ao mesmo tempo em que Baba Aziz promove uma manutenção de tradições culturais, ele as renova, inter-relacionando-as e confrontando a prática do cinema fora de um sistema industrial majoritário. Não por acaso, também é própria do deserto a noção ‘desterritorial’, constante de Nacer Khemir e de tantos cinemas que encontram nesta paisagem o ponto de partida de suas imagens. Tais cinemas desocupam territórios e tornam habitáveis, pelo movimento, os lugares mais inóspitos da terra. São como espaços de luz. Imagens de areia. 

Para Nacer Khemir, o deserto é, ao mesmo tempo, um campo literário e abstrato. É um lugar onde o infinitamente pequeno (grão de areia) e o infinitamente grande (vastidão do horizonte) se encontram. Segundo ele, o deserto evoca de tal forma a língua árabe que em cada palavra subsiste um fluxo de areia. Fonte da poesia e do amor, é neste deserto insondável que processamos a maneira como Khemir adaptar todo um universo cultural para a imagem de cinema, em seu movimento, dinamicidade e articulação do tempo. Muito claramente, seria necessário um espaço maior para aprofundar a série de questões que seus filmes problematizam, sendo possível relacionar também os resultados de tal trilogia com o único outro trabalho feito pelo diretor, até hoje, para cinema: o curta-metragem O alfabeto de minha mãe (2008)². Por enquanto, acreditamos que a abertura aqui proporcionada ao universo deste artista, ainda pouco debatido entre nós, é mais um importante passo não só para a divulgação de culturas específicas como para a reflexão do próprio cinema enquanto veículo de narrativas que não podem adormecer. Pois não se interrompe uma imagem. Não se aprisiona a areia.

1. ORTEGA, Vicente Rodriguez. Identificando o conceito de cinema transnacional. In: FRANÇA, Andréa; LOPES, Denilson. (org.) Cinema, globalização e interculturalidade. Chapecó, SC: Argos, 2010. p. 67-89.

2. Filme participante do Jeonju Digital Project 2008, edição que investiu no financiamento de três cineastas africanos. O trabalho conta com direção e atuação de Nacer Khemir, trazendo no enredo uma construção metalingüística em que o diretor aparece realizando seu ofício junto às câmeras e editando cenas filmadas com sua mãe, uma velha contadora de histórias que reclama a ausência do filho para morrer em paz. Filme de memórias que atravessam as janelas da imaginação para formar um mosaico de culturas.

LOOPER - ASSASSINOS DO FUTURO

Looper - Assassinos do Futuro (Rian Johnson, 2012)

Faço minha a careta de Bruce Willis. Para todos que engolem um filme como Looper diante do argumento vazio que relaciona a esterilidade de certo cinema a uma aceitação cega de qualquer efeito que escamoteie a sua aparência e finja novidade. Careta para esta postura adolescente de se receber bem um filme pelo que de ‘menos ruim’ ele possa ter. Careta para as cifras que continuam nivelando um público a ponto de satisfazê-lo com sobras de imagens ou ruídos, com enredos que travestem a sua velhice através de tecnologias que também se ultrapassam assim que os filmes são lançados e caem na rede. Não há absolutamente nada que justifique o novo filme com Bruce Willis ― pois é somente disso que se trata, um filme com alguém ― dentro do cenário atual de produção, seja pelo seu desequilíbrio entre gêneros, pelo desgaste que faz da imagem de seu elenco, ou pelo lugar da ação que motiva sua estratégia de simplesmente ser um filme que emula a contracorrente ao que Michael Bay hoje sintetiza dentro do cinema americano. Podem louvar uma ou outra cena de diálogo mais longo, um ou outro corte que demore mais a acontecer; nada disso significa qualquer domínio de espaço-tempo, controle de ação dramática ou intenção nobre, caso seja possível pensar em valor moral dentro do cinema para as massas. Careta para este louvor.

Assim como um personagem de Looper zomba de outro, num tempo futuro, pela sua ridícula composição visual inspirada no século XX (com coletes, gravatas e acessórios que já não se encaixam no pretenso futuro retratado pelo filme), a própria condição de Looper dentro da grade de lançamentos é coisa da qual só se pode rir e zombar, pois é título de um deslocamento constrangedor e que, equivocadamente por isso, tem confundido e iludido seu público com um véu de criatividade vencida e trazida de cinemas que só se justificavam no final daquele outro século, período de ouro para figuras como Bruce Willis. Há apenas uma cena que explica a existência deste filme: aquela em que Willis atravessa parte de um cenário empunhando duas metralhadoras (super século XX) e dizimando um punhado de brutamontes que querem executá-lo. Homens sem rostos, corpos sem nomes, marionetes que não tiveram a sorte de se chamar Bruce Willis. Tal explicação fragiliza ainda mais o lugar do filme pela recente e brilhante participação deste mesmo ator nas duas seqüências de Os Mercenários (2010; 2012) ― a primeira delas com uma única e genial aparição de Willis dentro de uma igreja, questionando a própria sacralidade de sua imagem e nome, e a segunda com estas mesmas metralhadoras, mas aí acrescida de uma ambiguidade e ironia que passa longe de qualquer pretensão havida em Looper

A cena das metralhadoras aqui, assim como toda estrutura narrativa e visual de Looper, demonstra ser este um filme que não alcança qualquer visão de futuro (coisa que pretende dentro de sua abordagem de pseudo-ficção científica) justamente por não descolar ou problematizar os contornos passados de Bruce Willis e todo o cinema a ele vinculado. É um filme que talvez funcionasse lá atrás, há 20 ou 30 anos, no mercado das videolocadoras, no cinema-ação que se reconfigurava, ainda que de maneira agonizante. Para os dias de hoje, e porque uma obra precisa relacionar-se com seu tempo, Looper não passa de um mesmo espelho quebrado que mal consegue refletir imagens de qualquer tipo; um filme que ambiciona as temporalidades como tema, mas que não consegue sequer uma mínima compreensão do que sejam o tempo ou suas conseqüências sobre os corpos no mundo; um passatempo que assassina seu próprio futuro. 

[Texto publicado no SITE FILMOLOGIA]

A FEBRE DO RATO

A Febre do Rato (Cláudio Assis, 2011)

Das fodidas hipocrisias que apodrecem o olhar, precisamos nos despir para enfrentar A Febre do Rato. Público, crítica, nicho de realizadores, não há puto que saia ileso do grito de revolta dado por Cláudio Assis. E nem é preciso se preocupar com alguma postura prévia de observação (com aquela ideia imbecil de “bom, vamos nos preparar para ver um filme de fulano…”), porque A Febre, desde seus primeiros minutos, esfrega na cara de qualquer um que a gente não se prepara pra vida, que o estampado pelas imagens numa tela não é coisa que se previne, que não adianta insistir acreditando em códigos e padrões morais se a luz e a sombra estão aí para dar uma rasteira nisso tudo que convencionamos chamar de cinema, de expressão, de poesia. É, na verdade, muito propício falar por aqui, num espaço em que respiramos atualmente a busca por um grau zero da cinefilia, deste novo fôlego que Cláudio Assis traz para o audiovisual contemporâneo. 

Eu confesso, quando assisti ao filme pela primeira vez, não tive coragem de arriscar nenhuma palavra sobre a experiência que me foi impelida. Nem estaria escrevendo nada por aqui se não fosse a memorável noite vivida ontem (dia 10), na abertura do II Festival do Making Of, com um vídeo de bastidores editado especialmente para o evento (intitulado A Febre da Febre) e uma marcante presença do próprio Cláudio, emocionado em mais uma vez constatar que “a porra deu certo”. Não a porra do filme, do seu trabalho particular na direção, mas a porra de uma geração que finalmente faz nascer o olhar, de um público que justifica e pede a novidade, que também procura o seu lugar no mundo sabendo que o cinema pode compartilhar a dor de seu desamparo. Porque não estamos falando de outra coisa, ao se pensar na Febre, a não ser de uma profunda consciência do abandono humano, de uma existência que já foi esquecida por Deus, pelas leis, pela ciência, e que se debate e agoniza procurando no verso alguma margem de respiro.

Não arrisquei palavra antes porque simplesmente não achei parâmetros para fazer permanecer o filme em texto. Demorei a entender de pronto que a perspectiva crítica pedida por Cláudio não precisava ser especificamente concentrada em seu filme, por mais que ela o atravessasse. O grande problema — no geral, deste anti-ofício que é escrever sobre filmes — foi descobrir, ou mesmo compreender o que eu já carregava no íntimo, que pensar a superfície de um cinema tocado é ver refletido todo um contato emocional, uma afetividade que brota entre o corpo e a tela, entre o olho e a imagem. 

E se a cada dia eu me convenço mais de que não adianta pensar ou escrever sobre cinema sem o cuidado do gesto poético, vejo esta confirmação nas palavras do próprio Cláudio, dentro de seu Making Of, explicando para a equipe que a poesia de Zizo não está amarrada ao que ele diz ou escreve, mas se revela pelos gestos de seu corpo, do espaço que ele configura como morada, das cores que ele usa ou nega para retratar o mundo. A poesia está no mijo e na merda, no cheiro de mangue, no esgoto que se abre às ruas do Recife e no coração das autoridades que definem como criminosa a nudez de alguns atores diante de uma Assembleia Legislativa.

Se eu não posso dedicar o que se espera de um olhar crítico com o presente desabafo é porque não há expectativa que dê conta da enormidade que constitui A Febre do Rato. Meu olhar enfermo apenas reconhece que não dá mais pra abaixar a cabeça diante da ausência de movimento impregnada na produção que insiste em preencher o circuito das salas escuras. Como o sobrevivente que sou desta Febre, vivida dentro do templo Cinema São Luiz, reconheço que não se pode mais adiar a espera por um cinema que se desgarre do espetáculo, ou melhor, que reconfigure o espetáculo e faça dele não um remédio para a alma, mas o veneno que a desperte. Por um cinema que adoeça, que se espalhe como peste pelas ruas das cidades (sim, ao céu aberto, não pelos shoppings), por um cinema que faça do luto a força, da morte a vida, que berre aos ventos a urgência do novo, declaro minha luta e escrita, na certeza de que não estou sozinho. Se fazer um filme, ver um filme, escrever sobre um filme é o manifesto que nos resta, prossigamos então.

[Texto publicado no SITE FILMOLOGIA]

O GRAU ZERO DA CINEFILIA


Ainda me lembro da ocasião em que, num diálogo com o amigo e editor Ranieri, soube de um leitor que escrevera para comentar alguns aspectos deste nosso site, elogiando, apontando equívocos, sugerindo alterações em detalhes de forma e conteúdo. No meio da conversa, o leitor abordara o design do Filmologia, os espaços brancos, vazios, a economia de cor. E numa recomendação bastante sincera, ele declarou o que até hoje me parece a melhor descrição deste espaço: pediu para tomarmos cuidado com o layout e a disposição de tudo, pois do jeito que estava, o Filmologia mais parecia um site de poesia — mais do que de cinema, ele quis dizer. Completando nesta edição a marca de 2 anos em atividade ininterrupta (algo que nos parecia inalcançável), insistimos em não abandonar o perspicaz comentário daquele leitor. Pois nada nos define melhor: o Filmologia é um site de poesia. 

É com o cuidado do verso que nos aproximamos do cinema. Com a certeza de que nas imagens que amamos pulsa uma poética responsável pelo que nos leva a discutir, refletir, perpetuar tudo o que vemos e ouvimos nas sessões compartilhadas. Nossa postura crítica, que vai muito além do exercício da escrita avaliativa, fundamenta-se na certeza de que os filmes, quaisquer que sejam, não nos pedem uma explicação, um juízo de certo/errado ou a aplicação de fórmulas que os desgastem e esvaziem — tornando-os pratos frios servidos em bandeja, como ilustrava Bazin. Vivemos os filmes nas letras porque ouvimos neles um pedido de permanência, de continuidade ao que proporcionaram nas telas; escrevemos sobre eles, os revivemos na procura da imagem síntese (procedimento que já é marca das páginas do Filmologia, pois não só de textos vive a crítica) porque acreditamos numa cinefilia que não se encerra ao fim de uma projeção, ao término de um download

Visando este prolongamento do olhar e da compreensão poética que habita o cinema, dedicamos à edição atual um reflexo da alegria que nos toma pelo aniversário de dois anos: pela primeira vez, lapidamos um Especial que homenageia dois autores, coincidentemente (mas propositalmente), ambos donos de carreiras no Cinema e na Literatura, irmãos na Imagem e no Verbo. Alain Robbe-Grillet e Marguerite Duras, expoentes do estilo literário (Nouveau Roman) que mais longe foi no diálogo com o cinematográfico, dentro do século passado, preenchem a nova edição do Filmologia com o deslumbre de seus cinemas, seus filmes que assumem, diante do mundo e da própria linguagem audiovisual, um estranhamento muito particular, muito pautado pela busca do ‘novo’. Não falamos aqui de um certo cinema literário, ou mesmo um cinema francês; o que encontramos é justamente a motivação que fez no movimento do Novo Romance um fôlego de inventividade para a representação humana. Como bem demarcou Robbe-Grillet em sua publicação de Por Um Novo Romance — compilação de textos que situava sua literatura e a de seus amigos não como fruto de uma escola, de uma cartilha, mas produto e sintoma de um tempo que ansiava pela novidade, pelo renovo das formas: “O romance [e aí acrescentamos o cinema], desde que existe, foi sempre novo.”
 
Eis a novidade que perseguimos. Este fascínio quase infantil que faz Robbe-Grillet e Duras ‘brincarem’ com o cinema, montando e remontando filmes, desdobrando as imagens em camadas abissais, revirando toda uma ética e política da expressão a favor da liberdade que nos reconecta a um estado primário das coisas, cada vez que experimentamos ou voltamos a uma de suas obras. Inspirados pela declaração de Duras sobre a procura de um estado primitivo da linguagem, junto às câmeras, o desejo por uma espécie de grau zero do cinema (este grau zero da écriture barthesiana), comemoramos nosso aniversário sob o compromisso de continuar fazendo do Filmologia um encontro de vozes, nossas, dos autores refletidos, e de vocês, que leem e justificam o nosso esforço.

Conscientes do atraso (de exato um mês) em nossa edição, esperamos compensar a espera com um trabalho que mais uma vez envolvemos de afeto, feito em dias e horas que sempre vem desafiar o tempo preciso do pensamento, este mesmo que a poesia abraça. Ampliamos o escopo, ainda, com a feliz abertura aqui iniciada pelos ‘Extracampos’, pauta alternativa, sobre temas e filmes diversos, não vinculados ao rotineiro núcleo editorial, e assinada por autores que não compõem a equipe fixa do Filmologia. Os cinco textos agrupados ao fim de nosso presente sumário iniciam um histórico de colaborações que, esperamos, se prolongue e alargue o nosso olhar. A partir daqui, contaremos sempre ao lançamento das edições, com este espaço reservado, quem sabe à espera de sua própria colaboração, leitor, que de repente se interessa em participar do Filmologia de uma forma mais direta, e não sabia como fazê-lo. Não se acanhe em nos procurar, seja para opinar, corrigir, sugerir, ou simplesmente dizer que existe e lê conosco. O cinema, que é feito de muitas vozes no tempo e no espaço, guarda semelhança com a poesia e a crítica porque, segundo Otávio paz, estas nos revelam a ‘outra voz’. É isso o que desejamos aqui. Fazer do Filmologia não apenas o nosso lugar, mas o lugar do Outro, do Novo que nos espera sempre. Vamos a eles, então.

[Editorial escrito para a Edição #10 do SITE FILMOLOGIA]