sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

BOA SORTE, MEU AMOR

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Boa Sorte, Meu Amor (Daniel Aragão, 2012)


Já é meu hábito quase diário, ao desjejum, flanar pelas dezenas de canais que entopem a TV por assinatura (contratada para satisfazer a família), praticamente sem assistir a nada, apenas olhando imagens, deixando os ruídos passarem pelos olhos e ouvidos, enquanto mastigo alguma coisa que importa muito mais para os meus sentidos. Neste exercício, acabei desenvolvendo uma espécie de regra que me ajuda a definir se fico ou não numa determinada programação e, como eu praticamente só estaciono em canais de filmes, uma regra que se aplica tão somente ao meu instinto para o cinema. Dou o crédito de alguns planos para o filme. Dependendo dos enquadramentos, do ritmo de montagem, da proposta dramática dos atores, tudo isso no que pode ser apreendido em meia dúzia de planos, eu decido se fico ou não com o mesmo filme até o final do achocolatado. Já entendi que não é preciso muito mais para se atrair um olhar desprevenido. 

Lembro-me, por exemplo, de uma vez em que estava passeando e, diante de uma vitrine com alguns televisores, meu olhar foi imediatamente atraído pelo que era exibido. Não tinha a menor ideia do que se tratava, mas obviamente era um plano de cinema, muito bem posicionado sobre a maçaneta de uma porta, que cortava para o interior do quarto e capturava outros elementos do cenário com uma força que simplesmente aprisionava os meus olhos. Passados alguns segundos, identifico o ator do filme (Mel Gibson) e, consequentemente, o título em questão (Sinais, de Shyamalan), um digno exemplar de algo que pode me absorver no desjejum de qualquer manhã que eu ainda venha viver.

Se eu arrisco iniciar algum comentário a um filme como Boa Sorte, Meu Amor gastando tempo com o egoísmo de minhas memórias é porque, além de ver nisso um paralelo ao cinema de Daniel Aragão — interessado tão somente com o seu próprio umbigo —, foram estas lembranças que me ajudaram a justificar a enorme barreira que se colocou entre a grande tela e o meu olhar. Em todo o decorrer da sessão deste filme, tentei me desvencilhar das primeiras imagens e impressões que recebi, esforçando-me para não me deixar levar pela péssima abertura do longa. Boa Sorte se sabota desde o seu 5º plano (o mesmo que ilustra esta página), o que me faz pensar em minha disposição diária com o controle-remoto, na constante tentação de mudar o programa pela decepção do que poucos planos podem causar. É certo que se eu carregasse um controle deste para as salas de cinema, teria me livrado de muitas bobagens, mas teria corrido o risco de perder algumas grandes obras que não se entregam rapidamente, que se constroem a partir da totalidade. Por isso a insistência em não sair do cinema, nem mesmo quando o arrogante tom inicial de Boa Sorte foi se confirmando e acentuando ao correr da projeção. 

Eu nem preciso me dedicar, aqui, a qualquer elemento que esteja no filme de Aragão posterior àqueles cinco primeiros planos, porque neles há suficientes sintomas da qualidade de seu cinema, pelo menos deste que se configura enquanto estreia na longa duração. Boa Sorte, Meu Amor abre com alguns postais do sertão pernambucano, em P&B, imediatamente seguidos por uma inexplicável imagem de alguém enterrado até o nariz, no chão deste lugar. Não é uma imagem retomada (não além do sentido) posteriormente, ela não se conecta com absolutamente nada do que veremos depois, pelo menos não a um nível de visualidade; a não ser pelo enferrujado tom de estranhamento que Aragão pretende provocar, cena após cena, sem se importar com qualquer dinâmica de coerência. Desde este quadro, cria-se a impressão de um filme que se autodenomina refinamento, de um cineasta que não economiza formas e símbolos para convencer que sabe alguma coisa de seu ofício. 

Alguns dias depois da sessão, o amigo Marcelo Ikeda fez um comentário numa rede social (sem menção a qualquer filme) que não poderia vir em melhor hora para me ajudar a sobreviver ao Boa Sorte — e como é irônico que Aragão, desde o título, deseje o que não me pode oferecer. Transcrevo as palavras de Ikeda: “Tão ruim quanto os escritores que na primeira linha de seu romance querem nos gritar que ‘são escritores’, que tratam o texto diferentemente de nós, ‘outros’, ‘mortais’, são os cineastas que no primeiro plano de seus filmes querem nos mostrar, acima de tudo, que são ‘cineastas’, que ‘sabem filmar’, que tratam o plano diferentemente de nós, ‘outros’, ‘mortais’. Bom é o escritor – ou o cineasta – que, ao invés de querer mostrar ao leitor/espectador quão bons são como escritores/cineastas, simplesmente fazem o leitor/espectador mergulhar no seu texto/filme, ou seja, que simplesmente escrevem/filmam o que é preciso, sem se preocupar a todo momento em convencer o outro de sua suposta genialidade.”

Sinceramente, eu não vejo outra explicação para o tratamento que Daniel Aragão dá ao seu filme (agora podemos ultrapassar os cinco primeiros planos) que vá além desta preocupação pelo convencimento, esta necessidade forçada de estilo que contamina não só o seu trabalho particular, mas boa parte do cinema cinéfilo que hoje vemos se multiplicar no Brasil. Boa Sorte prossegue com uma ininterrupta sucessão de maus planos, imagens que poderiam funcionar numa exposição de Fotografia, mas que dificilmente se associarão ao que realmente move a condição do cinema. Não adianta prolongar um zoom, dilatar um travelling ou ensaiar um contra plongée, se nada disso transcende a superfície técnica de uma linguagem. Todas estas acrobacias caem por terra quando Aragão precisa, simplesmente, filmar um close, desenhar uma elipse, enfim, lidar com os preceitos mais elementares de uma narrativa. Pois fica óbvio que ele não sabe fazer estas coisas. O constrangimento das risíveis interpretações do elenco principal, a triste utilização da trilha sonora e até mesmo a distorção resultante da boa, mas mal aproveitada, fotografia de Pedro Sotero, só completam uma desastrosa vontade de convencer o público daquilo que não existe. 

Seria muito fácil estender minha indignação contra várias das cenas que preenchem Boa Sorte, especialmente se pretendesse aqui observar a quase infantil perspectiva que o filme dá ao desenvolvimento do Recife urbano (matéria de alguma futura reflexão, a partir de outros filmes pernambucanos que também começam a decepcionar). Mas eu me atenho a estas considerações porque até para a escrita sobre um filme assim me vem a vontade de pegar o controle remoto e mudar o verbo.


[Texto publicado no SITE FILMOLOGIA]

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