sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

TABU

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Tabu (Miguel Gomes, 2012)


É somente a partir de uma experiência incompleta que agora posso me debruçar sobre estas palavras. Consciência que me faz pensar, inclusive, na falta de totalidade que orienta todo procedimento crítico de escrita. Detemo-nos diante de um filme, o refletimos e escrevemos sobre ele sempre com um olhar limitado, perigosamente unívoco e fechado para questões que não estejam dentro do escopo de impressões que primeiramente tenham se colocado na maneira como em nós ele foi recebido. São os riscos da perspectiva, do dizer algo, ainda que nisto se assuma uma voz solitária de testemunha. Não há escrita que contemple e abarque uma plena permanência da obra; há o esforço, o artesanal das palavras, a implicação de uma vontade pelo objeto que termina por concretizar um novo lugar (o texto — como este que tenta encontrar início) de interseções e vozes, de sensações e afetos. Mas se refaço este percurso da ‘experiência incompleta’ para dizer algo sobre Tabu, é porque ela se impôs sobre mim numa dupla dimensão que de fato precisa ser pensada em sua qualidade de recepção, como via de acesso para os sentidos. Antes de tudo, explico o que me motiva a assim batizar o momento de encontro entre Tabu e o meu olhar:

Assisti ao novo filme de Miguel Gomes numa mui aguardada sessão do Cineclube Dissenso, que integrou a V Janela Internacional de Cinema do Recife. Apesar da altíssima qualidade de projeção, fomos todos surpreendidos pela ausência de legendas, na cópia do filme, para os diálogos em português — idioma que une Portugal e Brasil, mas também provoca involuntários abismos. Não houve espectador dentro da sala (do Cinema São Luiz, majestosa) que não tenha perdido uma boa porcentagem do pleno entendimento que o áudio do filme pedia. Bastava algum dos atores entrarem em cena, especialmente os de mais idade, e já sabíamos que não seria possível compreender o que porventura fosse dito. Daí meu primeiro reconhecimento de que há entre o filme e o meu olhar (olhar auditivo) uma incompletude que permanecerá intransponível até um novo contato, sob novas e legendadas condições — e daí minha confissão de que não tenho como, aqui, desenvolver um pensamento que também não seja incompleto por natureza, provavelmente como sempre o foram meus pensamentos sobre filmes, finalmente desmascarados. 

Comentei uma dupla dimensão na incompletude desta experiência porque, a partir dela, ainda que de maneira irônica, pude mergulhar no filme de uma forma que o revelou mais claro e coerente do que talvez fosse se suas imagens estivessem mediadas pela interação do texto dialogado. Experiência incompleta, esta própria que Miguel Gomes persegue desde seus primeiros passos no cinema, agora evidenciada sob uma estética da alusão e da homenagem que fazem de Tabu seu trabalho mais poderoso, mais claramente fincado numa estética que se concebe enquanto linguagem da incompletude, enquanto movimento da falta. Se tivermos em mente as referências que Tabu guarda para com o cinema mudo, de seu prólogo até o segundo e derradeiro ato, fica mais fácil entender porque a ausência de legendas ‘funcionou’ tão bem para mim. A partir do momento em que vemos encenado o passado romântico da protagonista, numa mise en scène extrema da visualidade que não deixa ouvir nenhum dos diálogos proferidos, mas apenas uma voz over de seu narrador, torna-se totalmente adequada uma orientação exclusiva do olhar para o que a imagem mostra, não para o que ela diz (recuperado então o conflito entre a mostração e a contação do cinema enquanto forma narrativa).

Mais do que uma referência ao cinema de Murnau, seja pelo título ou pela protagonista chamada Aurora, o filme de Miguel Gomes guarda uma relação com o período mudo da sétima arte que responde alguns anseios sentidos pelo cinema neste início de década. Não é preciso recuar muito no tempo. Há um ano vimos este ‘retorno às origens da linguagem’ alcançar o grande público e as premiações; O Artista e Hugo Cabret popularizaram uma espécie de urgência pelo passado que vinha se disseminando por circuitos alternativos há vários anos. Vimos o cinema mudo sendo retomado, reciclado e pasteurizado com um carinho que, de fato, não avançou muito no tempo, mas dele se tornou vítima. E por isso a pertinência de um filme como Tabu não ser apenas ‘mais um’ dentro de um grupo que guarda a memória com um respeito quase enlutado; Tabu é ‘aquele’ que finalmente transforma o elogio em subversão, que faz da homenagem o ponto de novidade, que pega a história do cinema não para revestir sua narrativa, mas para fazer dela o tapete, para nela se apoiar (sem medo de pisá-la) e assim ir adiante. 

E se a ideia de uma experiência incompleta é a que parece melhor definir o movimento de Miguel Gomes, isso acontece porque todo seu novo trabalho é elaborado nesta precisa concentração do que não se pode ver/ouvir dentro de uma representação cinemática do mundo. Além da omissão provocada pelo áudio (aquela que me permitiu brincar com a falta de legendas na sessão em que estive), Tabu desorienta o espectador por aquilo que também rouba de seus olhos. É exemplar o manuseio de elipses que dão forma à sua personagem principal: Aurora (encarnada por duas atrizes, na juventude e na velhice: Ana Moreira e Laura Soveral), que precisa morrer e assim provocar a ausência de um corpo presente, para que seu passado venha à tona. Mas não vemos a sua morte. Em nenhum momento vislumbramos o cadáver desta que impelirá a segunda parte do filme. Assim como, durante as lembranças deste passado, saberemos do dramático nascimento de seu filho, fruto de um caso extraconjugal, mas também não veremos o momento do parto. Morte e Nascimento, escondidos do nosso olhar. 

O tratamento que Miguel Gomes dedica ao conceito de um cinema silencioso torna-se preciso por não haver, de sua parte, um desejo de completar as lacunas que eventualmente se erguem durante uma sequência montada de imagens. Com Tabu, Gomes enfatiza a necessidade do caos, do que não pode ser esclarecido ou organizado dentro de uma arte que muitas vezes é considerada a plena união das outras linguagens, um encontro pacífico de expressões. Tabu é a desintegração da ordem, este dedo na ferida que acrescenta por seu próprio nome (tabu, o que é proibido — no caso, o que não se pode ver e ouvir) uma compreensão quase primitiva de cinema e, por isso mesmo, voltada para o futuro desta arte. Encerrada a sessão do filme, fica a certeza de que Gomes não estava olhando para trás ao lidar com o cinema em sua história; ele atesta um olhar muito bem direcionado para o que esta história ainda constrói, e tudo que ela dará. Experiência que não pode se completar, para que haja o amanhã.


[Texto publicado no SITE FILMOLOGIA]

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