domingo, 31 de janeiro de 2010

QUE A COR SEJA COR

É como se pela primeira vez o vermelho se revelasse a mim.



Como se só então eu descobrisse que o verde existe.



Segundo Heidegger, a utilização que uma obra de arte faz de qualquer elemento que lhe constitua termina por revelar uma verdade intrínseca ao próprio elemento. Por exemplo, quando reflete sobre o lugar da terra numa obra, enquanto elemento material e físico, entende que, diferentemente da lógica comum ao mundo natural, ela (a terra) se distancia de seu caráter utilitário para se mostrar como / o quê ela realmente é; daí sua famosa exclamação: A OBRA DEIXA QUE A TERRA SEJA TERRA.

Foi no mesmo sentido que, ao abordar a cor na arte, o filósofo se referiu ao abrir dos olhos diante de uma cor presentificada pela obra. Assim como a palavra para o poeta, a cor numa representação pictórica existe como numa abertura ao seu próprio ser; o ser da obra, o ser da cor, consequentemente, o ser do sujeito que vê.

Eu não sei dizer claramente o que vejo, mas sei que algo é mais do que visto quando assisto as cenas que originaram os ângulos acima. Certamente é impossível expressar a força da cor nestes casos com uma imagem fixa, mas prefiro fazer o recorte até mesmo para comprovar como é absurda a tentativa de uma racionalização precisa a respeito do que meu corpo sente diante da tela, dos fundos em cor e sua interação com o que está à frente, não somente na imagem, mas além dela: EU.

Ao mesmo tempo em que me assusto diante da possibilidade de até este filme nunca ter visto uma cor antes, no que ela pode me oferecer de abertura a si própria, deslumbro-me com a chance de enfim ter entendido que a cor é possível, que o ser é possível; então, que eu seja...


A Viagem do Balão Vermelho, Hou Hsiao Hsien, 2007.

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

CINEMA... CINEMA... CINEMA...

Desde sua invenção, o cinema já nos deu de tudo, de seres não humanóides em galáxias distantes a longas caminhadas por corredores vazios, nos vimos dentro de tramas mentais, policiais, sexuais, caímos em crônicas delicadas do cotidiano, vislumbramos as sinfonias das metrópoles, fomos mortos com mais de dez facadas dentro do banheiro. Continuamos o rumo, conhecemos psicopatas mascarados, disfarçados, sonhamos com uma cena, com uma atriz, com várias delas. Vimos nosso planeta ser destruído uma dúzia de vezes. Não recuamos mesmo quando um diretor nos lançou em um labirinto infalível, deixando nossas mãos suadas, nos causando um riso nervoso, tal qual o que nos acomete quando a película se refere diretamente a um momento em que estamos passando. Conversamos com a morte, jogamos xadrez, vimos o vento balançar as folhas de um campo quase como se o víssemos agir pela primeira vez. Iniciamos a marcha, desistimos das utopias de nossos pais, enfrentamos filas nas calçadas, nos shoppings e nos torrents, acordamos de madrugada para não perder um filme e, como últimos espectadores, desligamos emocionados as luzes dos cinemas de bairro. Logo depois se tornariam igrejas evangélicas e lojas de eletrodomésticos. Decoramos frases, posturas e sotaques, nos apaixonamos por personagens e acompanhamos a natural mercantilização do amadorismo das câmeras caseiras. Desvendamos a idiossincrasia ao discordar dos críticos, dos amigos e ao sermos atingidos com assombrosa força por uma ou duas expressões minimalistas. Sentimo-nos, na falta de outra coisa, subversivos só por burlar a classificação etária indicativa.

O cinema realmente parece nos ter dado de tudo, de esboços poéticos sobre o próprio dispositivo a retratos sociais devastadores, nos apegamos às vanguardas, guardamos carinho por certa retaguarda, e, talvez por termos lido os livros, não entendemos algumas das livres adaptações. Traduzimos legendas, vestimos figurinos idênticos, dançamos e choramos com várias trilhas sonoras, revimos obras queridas até perder a conta, montamos uma pilha de lembranças cruéis. Crescemos aos socos e chutes nos jogos de luta do playtime da esquina e acompanhamos a gradativa velocidade que fez de nosso cotidiano pequenos videoclipes. Desistimos de separar o documentário da ficção, admitimos os momentos de opacidade e translucidez, nos acostumamos com o pressuposto de que, independentemente da ordem, estávamos prontos para abdicar de um começo, um meio e um fim. Percebemos a política de pequenos passos, desafiamos a ligação ontológica entre imagem e realidade, experimentamos a fundo a nostalgia pelo que não vivemos e aprendemos a não cansar com a duração de um plano. Passeamos pelo mundo, pelo tempo, pelas faces, recorremos ao discurso cinematográfico para nos salvar em intrépidos debates, canonizamos a animação, unimos metáfora e matéria, criamos um presente feito de memória. Vimo-nos rodeados de um descontrole ao ponto de nos confundirmos: ora estávamos nos identificando com a dura vida de prostitutas francesas, ora sentindo vontade de largar a sobriedade e sair cantando na chuva, ora nos distanciando de regionalismos que, apesar de nos interpelarem, parecem não nos pertencer.

Por Rodrigo Almeida

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

O MESMO OLHAR (?)



1º Ângulo: Ela desce as escadas em feminil espontaneidade, inconsciente da presença que espreita, que gruda em sua carne com o olhar. Aproveitando-se de um momento descontraído, Stephen observa sorrateiramente sua empregada, investe na escuridão, tenta forçá-la a um desejo não compartilhado. Reação. E ao lhe conter os gritos com uma força não planejada, ele a sufoca até a morte.

Não será fácil livrar-se do corpo. Mas com o auxílio do generoso irmão, consegue fazê-lo antes que sua esposa retorne.



2º Ângulo: Ela desce as escadas em feminil espontaneidade, mas já não é a primeira; agora é a esposa, observada pelo mesmo olhar, que acabou de livrar-se de um cadáver, ficando possuído pelo pânico da situação imprevista.

Não. Não é o mesmo olhar.
_________________________

Poucas vezes pude perceber dentro de um mesmo filme como um mesmo ângulo pode suscitar sentimentos adversos, contrários, em oposição plena de significado e possibilidades. Esse ponto de partida, desenvolvido durante toda a primeira parte de Maldição (1950) serve assim como um clarificador não somente da intriga que se forma (muito rapidamente), mas de todo o cinema desse homem que a cada dia me surpreende mais: Fritz Lang. Meu terceiro Lang em 2009 me indicou que 2010 será um ano precioso de aprofundamento na obra de um dos maiores criadores que o cinema teve, que infelizmente costuma ser lembrado apenas pelas obras-primas do período alemão. Conhecer a faceta noir de Lang não só tem me satisfeito pela necessidade do gênero que venho vivendo recentemente, mas tem me indicado um caminho que me afeta muito em particular por ser tão próximo e tocar tão forte naquele que é confessamente meu mestre maior: Alfred Hitchcock.

Não é segredo que Hitchcock se afirmava como um discípulo do cineasta alemão, mas enganam-se aqueles que se deixam levar por seus comentários quase exclusivamente voltados ao período expressionista de sua filmografia. Pois é, eu me enganava. Hoje, após somente três exemplares do Lang americano, fico imaginando a alegria que devia tomar o coração de Hitchc ao assistir os lançamentos daquele a quem admirava, produzidos exatamente na mesma época em que Hitchc também crescia na América. Pois há uma alegria enorme em meu coração. Afinal, deparar-me com um cineasta que produziu quase tanto como Hitchc, e principalmente, também fez do suspense o meio para sua arte e toda uma construção metafísica particular é motivo mais do que suficiente pra me fazer comemorar sem nunca dizer chega! Assim, uma observação sobre os ângulos acima é o que me permite traçar uma primeira aproximação entre os cinemas desses dois gigantes.

As imagens das pernas, apesar de serem uma o espelho da outra num plano formal, não possuem a menor semelhança naquilo que elas objetivam causar no espectador. Tanto que o próprio voyeur do filme não reage da mesma maneira. Se eu optei mostrar o contraponto do observador, não foi para lembrar de Kulechov, mas para testificar que a constituição do cinema se efetua num lugar além da imagem única, naquela espécie de entre-lugar formado pela associação de imagens que mesmo iguais manifestam uma diferença potencialmente maior.

E quando penso nessa retomada do corpo feminino, do ente aparentemente idêntico ao anterior, mas dotado de uma carga emocional absolutamente diversa; que agride a aparência da forma e lhe expõe uma fragilidade ruída pelos olhos que verdadeiramente vêem, não me vem outra coisa na cabeça:



Apesar de as primeiras e as segundas pernas não nutrirem o mesmo objetivo narrativo que a primeira e a segunda Kim Novak têm em Vertigo (1958), não posso evitar uma comparação ao refletir sobre a capacidade desses diretores de transmutarem sua matéria-prima dentro de um domínio que ultrapassa a mera narrativa e que subsiste no âmago do que costumo pensar por cinematográfico. Para permanecer em Lang, pensemos nos efeitos dos dois ângulos:

1º [Atração]: desejo involuntário, inevitável, mas permitido pelo olhar, incentivado, disposto a ignorar os limites...

2º [Repulsão]: a surpresa do susto, a ameaça do desconhecido, o olhar que também não consegue se desviar, pois agora possuído unicamente pelo medo...

Sob vários aspectos, o olhar de James Stewart sobre Novak também acompanha essa progressão, mas lá o ato manipulador por parte do olhar entra em jogo e subverte a narrativa em outra direção. De qualquer forma, a manipulação também nos interessa aqui. Afinal, até que ponto Lang e Hitchcock se permitem ir, em sua manipulação, ao instaurarem o medo como lugar central de suas narrativas? Ou melhor, quais os limites, estéticos e morais, enfrentados por eles durante o simples ato de contar uma história?

Se Hitchcock é um cineasta da crueldade, pergunto-me qual o melhor jargão para descrever Lang... Pois não consigo ver situações tão ou mais cruéis, em nenhum dos cineastas da crueldade Bazinianos, como tenho visto em Lang. Enquanto a crueldade hitchcockiana nos é servida como um grande e suculento molho, a recobrir toda a superfície extraordinariamente cuidada de cada um de seus planos, em Lang ela figura como o prato principal, como aquilo que não podemos de jeito nenhum engolir sem mastigar, sem sentir a exata consistência de seu mau.

Enfim, um e outro, em suas distintas intensidades, alcançam o raro feito de não ficar somente com o primeiro ângulo, o do desejo, aquele em que a quase totalidade dos cineastas confortavelmente se assentam, obcecados por uma manipulação que atraia, seduza, conquiste. É preciso saber repelir, oferecer um mundo que não tenha medo de incutir o medo e correr o risco de não ser desejado, ou que cruelmente seduza o olhar por aquilo que há de vil e desprezível no mundo; pois como na assertiva aristotélica, o que nos repugna, atrai.

É só uma questão de olhar.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

RECOMEÇO

OK, os 20 dias de recesso foram muito longos e mais difíceis do que eu pensava, mas aqui estou eu, de volta, pra incomodar todos os que permitirem com minhas paixões e devaneios. E pra começar bem, vejam só: também é o fim do recesso no DISSENSO!!!



Na retomada das suas atividades, o Cineclube Dissenso faz homenagem a Eric Rohmer, recém-falecido cineasta francês. A sessão marca também a primeira vez que o cineclube projeta um filme em 35mm, cópia viabilizada através de parceria com a Cinemateca da Embaixada Francesa no Brasil. Interessados devem comparecer ao Cinema da Fundação no próximo sábado, às 14h, para conhecer A Inglesa e o Duque (2001), penúltimo trabalho do diretor. Baseado nas memórias de Grace Elliot, nobre inglesa que viveu em Paris durante a Revolução Francesa, o longa utiliza um artifício inovador para reconstruir a época: com a ajuda da tecnologia digital, insere os atores em cenários pintados à maneira do séc. XVIII. Como de praxe, a exibição é gratuita, seguida de debate na Sala João Cardoso Ayres.