quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

TOP FILMES 2009

Consequentemente, 2009 também foi um ano de poucos filmes (213), mas não poucas epifanias. A insatisfação diante da necessidade de muitos tops cinematográficos (melhores lançamentos, melhores Dissenso, simplesmente melhores) leva-me a formar uma lista única para todo meu ano. Muitos já comentados por aqui, vários na espera de posts futuros, todos profundamente indicados aos que acompanham esse cantinho e me aturam com tanto carinho e paciência, deixo-os junto com a gratidão e o sincero desejo de que 2010 seja ainda mais lindo, abençoado e claro, muito cinematográfico!

1º Passage d’um Tunnel (irmãos Lumière, França, 1898)

Para aprender a não ter medo do escuro.
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2º A Palavra (Carl Th. Dreyer, Dinamarca, 1955)

Uma experiência com Deus.
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3º As Harmonias de Werckmeister (Béla Tarr, Hungria, 2000)

Uma experiência comigo.
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4º Almas Perversas (Fritz Lang, EUA, 1945)

Uma experiência com o inferno.
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5º Mãe e Filho (Alexander Sokurov, Rússia/Alemanha, 1997)

Antes do pai: breve oratório fúnebre.
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6º Eu Não Quero Dormir Sozinho + Adeus Dragon Inn (Tsai Ming Liang, Taiwan, 2006 + 2003)
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Para rever no dia de minha morte.
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7º Delírio de Loucura + Paixão de Bravo (Nicholas Ray, EUA, 1956 + 1952)
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Para não ter pressa de morrer.
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8º O Estado das Coisas (Wim Wenders, Alemanha/Portugal/EUA, 1982)

A vida não pede nada a não ser a sobrevivência da idéia.
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9º Bastardos Inglórios (Quentin Tarantino, EUA/Alemanha, 2009)

É muito bom ter cérebro.
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10º Balsa (Marcelo Pedroso, Brasil, 2009)

Uma resposta ao cinema [orgulho pátrio].
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11º Ako (Hiroshi Teshigahara, Japão, 1965)

Juventude é coisa de sangue...
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12º Outubro (Sergei M. Eisenstein, União Soviética, 1928)

Mas sangue também coagula.
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13º No Silêncio das Trevas (Robert Siodmak, EUA, 1945)

Nem só de Hitchcock viverá o suspense.
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14º A Professora de Piano (Michael Häneke, Alemanha/Polônia/França/Áustria, 2001)

Um soco no estômago...
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15º Minha Mãe (Christophe Honoré, França/Portugal/Áustria/Espanha, 2004)

Um chute no saco...
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16º Twentynine Palms (Bruno Dumont, França/EUA/Alemanha, 2003)

A dor de continuar vivo.
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17º O Tesouro de Sierra Madre (John Huston, EUA, 1948)

O homem é seu pior inimigo.
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18º Amador (Krzysztof Kieslowski, Polônia, 1979)

O medo de me olhar no espelho.
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19º A Mulher sem Cabeça (Lucrecia Martel, Argentina/França/Itália/Espanha, 2008)

Quando o não visto cega a alma.
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20º Tudo que o Céu Permite (Douglas Sirk, EUA, 1955)

É preciso ser fiel a si mesmo.
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21º Foi Apenas um Sonho (Sam Mendes, EUA/Inglaterra, 2008)

A melhor lágrima, a pior noite de sono.
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22º As Amigas (Michelangelo Antonioni, Itália, 1955)

Falar demais é o mesmo que calar-se, amar demais é o mesmo que estar só.
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23º Precauções Diante de uma Puta Santa (Rainer W. Fassbinder, Alemanha, 1971)

A virgindade roubada pela violência da criação.
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24º O Outro Homem (Carol Reed, Inglaterra, 1953)

O amor ofertado pelo corpo em prostituição.
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25º O Atalante (Jean Vigo, França, 1934)

A realidade é o maior sintoma da loucura.
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Menção Honrosa: Gran Torino (Clint Eastwood, EUA/Alemanha, 2008)

Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?

terça-feira, 29 de dezembro de 2009

TOP LIVROS 2009

Ironicamente, o ano em que me torno mestre em Teoria Literária foi o ano menos literário de minha vida... Com a correria dissertativa as leituras se transformam e sou levado a priorizar pela necessidade mais os livros sobre Literatura que a própria Literatura, e mesmo entre estes, o tempo limita a leitura há poucos capítulos ou páginas mais importantes, impedindo muitas vezes leituras integrais. No meio disso tudo, meu Top do ano fica diferente de outros, mas com coisas que merecem ser recomendadas, então lá vai:

1 º LUGAR: ESCULPIR O TEMPO (ANDREI TARKOVSKI)

Não podia ser diferente e nem era segredo pra ninguém. Quem me acompanhou durante o ano, principalmente no primeiro semestre, sabe o quanto esse livro foi definitivo pra mim. Uma verdadeira Bíblia não só do pensamento cinematográfico, mas de todo campo estético, passando assim por reflexões que englobam as mais diversas questões do humano, enraizadas num amor singular pela vida. Esse vai pro topo da cabeceira, para ler e reler sempre!

2º LUGAR: MODERNISMOS (T.J. CLARK)

Mesmo sofrendo com a limitação do tempo e das prioridades urgentes, mesmo não tendo lido integralmente todos os seus ensaios, não poderia deixar de dedicar uma posição especial no Top pra este livro do historiador de arte T. J. Clark. A reflexão feita sobre a Modernidade, englobando da Revolução Francesa até o mundo pós - 11 de setembro, é reunida por ensaios distintos, que versam sobre o lugar da arte e do artista num mundo desencantado. Talvez um dos livros mais esteticamente políticos que eu já tenha lido; nele (re)aprendi que o mais importante é fazer a pergunta certa no momento certo.

3º LUGAR: OS FILMES DE MINHA VIDA (FRANÇOIS TRUFFAUT)

Presente dos queridos amigos Michelle, George e Fredonina, num dia muito especial marcado pela defesa de minha dissertação, o apanhado de críticas feito por Truffaut do período em que atuou na Cahiers du Cinéma, foi um verdadeiro remédio pro meu fim de ano. Os textos, deliciosamente curtos, quase como num blog impresso, foram sendo tomados aos poucos por mim, como dosagens medidas de uma vitamina. Além de confirmar um favoritismo pessoal de preferência pelo Truffaut crítico sobre o Truffaut cineasta, serviu pra aumentar minha lista de filmes pendentes para 2010.

4º LUGAR: POR UM NOVO ROMANCE (ALAIN ROBBE-GRILLET)

Muito mais do que um tratado estilístico de uma escola literária (Nouveau Roman), as teorias de Robbe-Grillet compõem o mais sensível manifesto literário que provei esse ano. Assim como as confissões de Tarkovski, Grillet vai além da Literatura, refletindo aspectos fundamentais da condição artística e da postura criadora, instaurando em mim aquela permanente vontade de escrever mais e mais, bastante sufocada nesse 2009, mas com ótimas perspectivas para o ano vindouro.

5º LUGAR: PEQUENAS TRAGÉDIAS (ALEXANDER PÚCHKIN)

Esse foi predestinado. Ao invés das prováveis indicações cinematográficas que o livro de Tarkovski poderia me oferecer, a grande descoberta proporcionada pelo russo foi a do literato Púchkin. Não bastando ser o autor dos mais belos versos que provei neste ano (já postados aqui), o acaso me fez certo dia encontrar um livrinho numa prateleira que combinava exatamente com o valor que tinha no bolso. Donde pude experimentar algumas tragédias inesquecíveis, onde o trágico muito mais do que na brevidade das tramas, revelou-se concentrado no simples fluir das palavras.

sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

FIEL A SI MESMO


Tudo que o Céu Permite, Douglas Sirk, 1955.

Desde pequeno eu aprendi a amar cinema clássico, procurando na programação da TV aqueles filmes mais velhos, desejando o preto e branco, curioso por qualquer coisa que pudesse sugerir raridade. Naquela época, de fato o clássico era traduzido por mim com adjetivos assim: filme velho, preto e branco e raro. A gente demora um pouco para ultrapassar as aparências... Hoje, consciente do clássico como algo além de uma época passada, percebo que não apenas preciso rever muito do que experimentei pequeno, mas que preciso mais, desesperadamente mais, de novos cinemas clássicos que ainda não provei.

Quando vi meus primeiros filmes de Douglas Sirk eu nem me interessava em saber que havia um autor por trás daquilo. Bastava ver, chorar e ser feliz. Hoje, reavaliar a obra com uma intencionalidade outra, a partir de um filme que ainda não tinha visto, comprova que acúmulo de reflexões e pretensa disposição crítica não desfaz a fórmula da infância. Incentivado pelo amigo Ranieri Brandão, decidi assistir na minha noite de 24 de dezembro um filme que por acaso também desenvolve algumas cenas no natal, permitindo encabeçar o post de hoje com uma árvore enfeitada, mas principalmente confirmando em mim que há poucas coisas melhores na vida do que ver um filme, chorar e ser feliz.

É como se fosse meu primeiro Sirk. Uma revelação. Uma convicção de que um homem conseguiu fazer do melodrama cinematográfico o que Hitchcock alcançara com o suspense. Pois não consigo imaginar como ser melhor do que Sirk foi neste filme. De repente não consigo me lembrar de um filme que tenha sido melhor colorido do que este, de um roteiro que tenha sido melhor e mais dinamicamente desenvolvido, de atores que tenham sido mais lindos e emotivos, de críticas sociais que tenham sido mais ácidas e penetrantes... Eu sei, eu sei que existem outros filmes grandes em todos esses sentidos. Mas não acredito que muitos tenham sabido concentrar em si todo um motivo de ser, que tenham conseguido ultrapassar com o superficial o que leva o cinema a revelar a certeza de uma essência, erguendo-se como obras sólidas e impávidas que fazem brotar no coração do espectador uma suficiência que diz: este filme basta para me fazer feliz.

E eu sou feliz enquanto choro. Sou feliz enquanto percebo o apodrecer de uma sociedade que passados mais de 50 anos não permitiu ao filme envelhecer nos temas. Sou feliz enquanto Sirk me esfrega nos olhos com sua paleta de equilibrado arco-íris a degradação de uma humanidade que se relega à aparência, pois na aparência de todo o filme posso sentir a direção de um homem que também derrama sua lágrima sorrindo.

Há uma mensagem em Tudo que o Céu Permite. Uma resposta que o personagem de Rock Hudson toma como ética central de sua vida e que Jane Wyman descobre após ler alguns versos catárticos de Thoureau: para ser feliz é preciso ser fiel a si mesmo. E isso é exatamente o que Sirk faz: ele é fiel. Fiel ao drama, fiel ao clássico, e acima de tudo, fiel ao cinema. Talvez seja o que permita ao seu filme destacar-se hoje em minha memória de um dia com um vigor que ameaça a memória de toda uma vida, pois é como se somente hoje eu soubesse o que é de fato ser clássico.

É muito bom no meio de tamanha felicidade sentir a orelha puxada, e entender que 2010 precisa ser um ano de maior fidelidade em minha vida. Encontrar um filme que me faz crescer foi sem dúvida o melhor presente de natal.
Hoje, Sirk é meu Noel.

Feliz Natal e que Deus abençoe a todos.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

CONVITE



Ingressos à venda na bilheteria do Teatro Santa Isabel (fone: 32076161).

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

EM TEMPOS VAMPIRESCOS


Eduardo II, Derek Jarman, 1991.

Não, não, não e não!

Nada de Crepúsculo / Lua Nova, sequer Deixe Ela Entrar.

Nada de Nosferatu nem nenhuma das inúmeras versões de Drácula.

A mordida mais impressionante do cinema não é nem saboreada por um vampiro.

Tilda Swinton, num papel pra lá de shakesperiano, tortura o cunhadinho até a morte com uma dentada de congelar qualquer pescoço. A maldade é parte de uma conspiração contra seu marido, o rei, a quem restará cair nas mãos de um grupo de brutamontes, para ser violentado com um espeto em brasa...

Qualquer vampiro é fichinha perto da beldade...

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

INDIGNAÇÃO

Ontem eu vivi um dos episódios mais tristes de minha vida cinéfila. Desses que conseguem me deixar afastado de uma sala de cinema por semanas, até meses. Curiosamente em dias que eu estava me perguntando do porquê de eu ser um cinéfilo sem tanto carinho pela sala cinematográfica em si. Das muitas justificativas duas sobressaem:

1. A qualidade dos filmes: quase 100% dos filmes que foram definitivos em minha vida foram vistos fora das salas de cinema; se alguns deles eu pude ver na tela grande, não foi em âmbito comercial, mas na Universidade ou em Cineclubes;

2. O desrespeito do público: eu até tento não ser tão avesso à coletividade, mas... Conversas no celular, gargalhadas dentro ou fora de hora, marmanjos que estendem os pés (descalços e fedidos) nas poltronas da frente, sem se importar se tem alguém ao lado desta [sofri com isso na última semana], são alguns dos fatores que me fazem preferir sessões individuais;

E como eu disse no início, ontem pude somar mais uma razão para ficar longe dos cinemas:

3. O desrespeito dos próprios administradores das salas!

Foi numa sessão do filme Atividade Paranormal, no cinema do Shopping Tacaruna (Recife), gerenciado pelo Grupo Severiano Ribeiro, um dos maiores exibidores comerciais em atividade no país. Faço questão de registrar minha indignação com a maneira como o público é tratado nas salas destes cinemas (a reclamação se estende aos outros cinemas do complexo, pelo menos aqui de Recife). Pode parecer insignificante, mas não é:

1 MINUTO ANTES DE TERMINAR O FILME, UM FUNCIONÁRIO ENTRA NA SALA E ABRE AS PORTAS DE SAÍDA, QUE SE LOCALIZAM NA FRENTE DA SALA, AO LADO DA TELA.

Eu compreendo que o objetivo de um cinema seja o lucro, não estou pedindo caridade, mas se eu pago por uma sessão de um filme que dura 99 minutos, acredito que eu tenha o direito de permanecer na sala por 99 minutos sem ser incomodado pelos funcionários. Nunca aprovei essa atitude administrativa por parte dos cinemas, mas ontem, pela primeira vez pude perceber o quanto ela pode ser nociva para a apreensão de um filme. Estávamos na última cena, quando finalmente o público adolescente se aquietava entretido no suspense, e o funcionário entrou, abrindo a porta e inundando de luz um cinema escuro, incentivando a garotada para explodir em baderna exatamente no clímax do filme...

Acho que nunca eu tinha me sentido tão expulso de um lugar, como se dissessem saia logo daqui! Saí do cinema profundamente magoado, ofendido e triste, como se eu tivesse mendigado pra ver um filme. Arrependido por não ter simplesmente baixado o Rip do mesmo e visto no meu quarto (onde com certeza eu teria me assustado), fico me perguntando o que é que me incentiva a voltar a um cinema, pagar caro, sabendo que não poderei assistir a um filme sem contratempos...

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

TIC-TAC + DREYER = CINEMA + VIDA


Você Deve Respeitar Sua Mulher, Carl Th. Dreyer, 1925.

Novo post no MAKING OFF.

Para mim é muito curioso, tendo provado as Páginas do Livro de Satã (1921) há pouco tempo, perceber que o último elemento disposto naquele filme é um centro motor de todo o presente Você Deve Respeitar sua Mulher. O pêndulo do relógio, em formato de coração, era o objeto que encerrava a epopéia de Satanás naquele outro ambicioso filme de Dreyer; aqui, ao contrário, ele ganha corpo em toda a duração fílmica, onipresente em um cenário restrito, com seu tic-tac devidamente narrativo, ao fundo do quadro em permanente constância. Acho inquietante, pois há um espaço considerável entre a realização desses filmes, preenchido pela existência de outras obras que não funcionam sistematicamente como um gancho entre eles. Mas é notável como ele se quis revelar pela referência, marcando a última imagem de ambos com um mesmo sinal, um mesmo lembrete do tempo que passa e não retorna, que se vai e arrasta consigo uma variedade de sentimentos invariavelmente envolvidos pela poética linguagem do coração.

O maior diferencial entre aquele filme e este, encontra na relação do tempo pelo pêndulo uma contigüidade espacial que delimita e define a capacidade de Dreyer em se experimentar num enorme leque de registros disponíveis para se trabalhar em cinema. Se no Livro de Satã, a narrativa envolve um tempo e um espaço universais, baseados no desenrolar da história humana, em Você Deve Respeitar tudo se limita ao espaço de um lar, ao tempo de uma crise, fundamentados por uma tragédia íntima que nunca deixa de partilhar interesse pelo universal, não mais pautado na história, mas no sentimento capaz de unir mais do que povos e gerações, o sentimento capaz de unir um simples homem a uma simples mulher: o amor. É bem verdade que muitos poderão apontar essa delimitação interior rígida como ancorada preguiçosamente nas possibilidades teatrais disponíveis (deliciosas), mas ninguém poderá acusar Dreyer de ‘filmar teatro’, pois pela rigidez provamos outra maneira de flexibilizar a imagem, de dilatar o registro da câmera em sensações fortes, que incomodam nossos sentidos e nos impelem a uma cruel identificação com a banalidade filmada. E é aqui que me lembro de um termo que pesou em minha breve reflexão do Livro de Satã, pois fundamental a todo cinema do mestre dinamarquês: o interesse pelo pormenor. A grandiloqüência das situações vividas naquele filme, já apreendidas por um viés subjetivo distinto da narrativa cinematográfica convencional, ganha aqui outras dimensões, ainda mais internas e particulares, condicionadas à vivência diária de qualquer indivíduo. É pela força do pormenor que Dreyer usará aqui seus elegantes e sutis movimentos de travelling para filmar a simplicidade de uma mulher preparando o desjejum de seu marido, ou outra esticando uma corda para varal de roupas; pelo mesmo pormenor veremos em plongée, pelos olhos da mulher, o marido redimido a lavar a louça... E emudecemos pela maioridade do pormenor.

Cada escolha de filmagem nesse ‘pequeno enorme lar’ torna-se uma revelação; uma luz não apenas sobre os personagens, naturalmente desenvolvidos com brilhantismo, mas sobre nós, espectadores, e em nossas emoções revolvidas pela continuidade da cotidiana trama. É muito fácil se encontrar dentro daquelas paredes, pois o que Dreyer faz com maestria é nos colocar dentro de suas imagens, dentro de seu tempo único, com movimentos únicos, movidos por um único e particular tic-tac existente somente no cinema de Dreyer. E se o tic-tac atesta uma espécie de assinatura autoral (lembremos seu assombroso ruído em A Palavra, 1955) é para que não nos esqueçamos do poder que o cinema tem de fazer o tempo durar numa dimensão paralela ao filme, muito mais próxima de nós do que o mundo circundante; dimensão que pulsa um novo batimento não apenas na imagem, mas origina um novo fundamento em nosso próprio pulsar, em nosso sentir, para sempre impregnado em nossa insistência por viver.

UM CAMINHO PAVIMENTADO POR ESPERANÇAS MORTAS


Páginas do Livro de Satã, Carl Th. Dreyer, 1921.

Novo post no MAKING OFF.

É praticamente impossível deparar-se com um título forte como Páginas do Livro de Satã e não imaginar estar diante de um exemplar do mais pleno horror. Quando Dreyer intitulou sua ambiciosa obra com o nome de Satanás, sabia estar preparando o espírito do público em direção a inquietações das mais complexas, enraizadas em toda base da cultura ocidental como num alicerce de concreto inquebrável. Apesar de o cinema atual já ter conquistado a capacidade de representar episódios da Paixão de Cristo como numa verdadeira fábula de horror, não há como ignorar, mesmo com os olhos do século XXI, que a empreitada de Dreyer foi muito mais ousada, visionária e provocadora. Isso, porque ao invés de incentivar o caráter maligno de Satanás – pois o de Cristo não deixou de ser santificado – Dreyer virou o imaginário cristão do avesso, oferecendo ao Anjo Caído a possibilidade de uma Paixão, e o mais impressionante, sem desafiar a própria religião com entonações hereges gratuitas e de fácil polêmica.

Se o cineasta optou por sublimar o horror de seu protagonista (Satã) em narrativas que exacerbam o drama às últimas conseqüências, em nenhum momento podemos deixar de sentir o que seria o equilíbrio perfeito entre o horror e o drama, o medo e a lágrima. É inútil tentar descrever em palavras a potência emocional que cada imagem do Livro de Satã é capaz de evocar no espírito do espectador. Todos os quatro atos do filme são desenvolvidos numa plenitude de sensações que nos alterna o ânimo entre a piedade e o temor (sim, há um brilho aristotélico no olhar de Satanás), entre a paz e o desespero, a esperança e a desilusão. E quanto mais nos espantamos com as investidas de Satanás para tentar os homens, mais simpatizamos com o temível algoz, num contra-senso que intensifica a angústia e perturba nossa consciência impune.

A evidente aproximação de Dreyer com o colosso Griffithiano (Intolerância, 1916) pode até ser enxergada por alguns como uma resposta à América. Mas não partilho de tal opinião. Mesmo porque Griffith não pede respostas. O que Dreyer me parece fazer com seu épico, atravessando a história humana do ano zero (cristão) até o século XX, é um contraponto harmônico na construção de uma nova história, história de uma nova arte: uma viga a mais no alicerce do próprio cinema. Em nenhum momento Dreyer parece querer se opor à opulência de Intolerância – ainda que seja evidente o contraste –, pois ele também se vale de muitos cenários, figurantes, figurinos e todo um arsenal básico de informações visuais que contextualizem cada época encenada. A diferença de Dreyer se dá no pormenor. Na mobilidade dos corpos, na aproximação dos rostos (sim, os célebres closes do mestre passam aqui por uma primeira experimentação), nos raios de sol que atravessam a tela e lhe imprimem um calor de Verdade, que queima, e intensifica a dor. Não é possível apagar da memória o raio de sol que invade o quarto da moça deflorada, ao fim do segundo ato, talvez o mesmo que logo no início do terceiro, atravessa a guilhotina que executará Maria Antonieta. Pois é como se a aurora trouxesse consigo o horror. Na luz, o habitar do mal.

O último letreiro do filme afirma que a condenação e o juízo divino contra Satanás foram escritos com letras da eternidade. Nesse sentido, por hoje sabermos que Dreyer ocupa um lugar santificado na sétima arte, não é arbitrário constatarmos que cada uma de suas narrativas foi filmada com imagens eternas. Pois se há um nome condenado ao eterno, este nome é: DREYER.

sábado, 28 de novembro de 2009

PARA MIM

Jean Renoir, ao refletir o cinema como uma arte secreta, em contraponto à impressão industrial de coletividade, afirmou que um filme é feito apenas para três pessoas.

Eu adoraria encontrar as outras duas...



Hoje completo exato 1 ano com a coisa. Com essa nova maneira de ver não apenas o cinema, mas a vida. É impressionante que em mais de 10 anos, desde o encontro com Hitchc (13/08/1999), nunca tinha precisado marcar outra data que definisse meu envolvimento com o cinema. Mas como toda boa história de amor, as datas surgem... Espero poder viver para outras.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

A DOR É APENAS A ALEGRIA QUANDO CANSA







É quase um respiro.

O fluir de um tempo que condensa o mover da relva.

Quando os dois amigos se reencontram após 20 anos e decidem adentrar pelas florestas até chegar a uma fonte térmica natural eles dão o lugar de personagem ao mundo. É quando o olhar cinemático se torna verde. Quando o tempo filmado torna-se o tempo vegetativo, o tempo das folhas.

Old Joy (Kelly Reichardt, 2006) insere-se num grupo de filmes muito particulares dessa década, inquestionavelmente devedores deste meu querido olhar gerryzante do mundo, aliados a este ultrapassar do tempo possibilitado pelo contato homem/natureza, pelo fundir do corpo-homem ao corpo-mundo, onde o fôlego de vida torna a ser uno, como de volta ao ser divino.

É o que me torna um.



Que o viver me prolongue em dor.

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

O SOM DA ETERNIDADE



A melodia continua para sempre.
Enquanto o coração bater e os pulmões respirarem, você pode cantá-la para sempre.
Por isso os cadernos são cheios dessas melodias. Elas não significam nada.
Não são feitas para serem apresentadas. Nem para serem aplaudidas.
O autor não deve se curvar durante o aplauso. Não há necessidade disso.
Isso é apenas a respiração natural. Uma coisa íntima. Mas não totalmente.
É como a comunicação entre dois amigos.
Arvo Pärt


Tudo começou há um ano atrás, junto com Gerry...

Tudo se completou há algumas semanas, quando o amigo Renan, teve o cuidado de atentar para os créditos do filme e descobrir que Arvo Pärt estava lá... Mandar-me apenas a música para eu ouvir... E pela audição, pura e simplesmente, tocar novamente na coisa...

Ontem, fui abençoado pelo documentário 24 Prelúdios Para Uma Fuga (Dorian Supin, 2002), que em menos de 90 minutos impregnou minha alma com o conhecimento e a sensibilidade de um compositor que entra definitivamente no meu panteão musical particular, chegando mesmo a dar as mãos à Beethoven, com toda a humildade.

Estoniano (nascido em 1935, na Letônia), Arvo Pärt desenvolveu uma obra sem paralelos, inserida no gênero do ‘minimalismo religioso’, com melodias que se baseiam em repetições hipnóticas, no que ele chama de tintinnabuli (do latim, pequenos sinos).

Ao vermos o documentário, constatamos que a palavra realmente não é o forte de um homem que pensa musicalmente. É maravilhoso vê-lo corrigir o ensaio de uma orquestra dizendo: Esta nota deve ter algo como música, não sei o que é, mas precisa ter. Repetidamente ele afirma não saber o que quer dizer com sua música, mas que há uma idéia perfeita que ele busca alcançar, profundamente vinculada à presença de Deus. De suas limitadas e sinceras palavras, talvez as mais inspiradas sejam aquelas que comparam a nota musical à folha de uma árvore, quando ele ressalta o valor de uma folha, que para a natureza é tão importante como a flor.

Em outro momento, quando revela desejar a pausa que dure toda vida, a nota que a alma cante para sempre, me fica muito claro que a obra de Arvo Pärt almeja o domínio da eternidade.

Se a eternidade tiver som, será como o de Arvo Pärt.

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Não poderia deixar de oferecer a todos que por aqui passam os olhos, um brinde aos ouvidos, e mais, à alma. O vídeo abaixo, com a música Spiegel Im Spiegel (1976), é a cena de abertura de Gerry (Gus Van Sant, 2002), onde podemos ouvi-la como trilha.



Eu gosto quando nada acontece.
Arvo Pärt

terça-feira, 10 de novembro de 2009

EU SÓ PRECISO...








Na Natureza Selvagem, Sean Penn, 2007.

Há um tal prazer nos bosques inexplorados;
Há uma tal beleza na solitária praia;
Há uma sociedade que ninguém invade,
Perto do mar profundo e da música do seu bramir:
Não que ame menos o homem, mas amo mais a natureza...
Lord Byron

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

AINDA CONTEMPLO


Gerry, Gus Van Sant, 2002.

O ângulo acima justifica um pouco do meu recente entusiasmo com Caspar Friedrich. É inegável a aproximação entre essa imagem e a tela do último post, onde o mar e o deserto se alternam diante de um homem que constata a grandeza de um mundo que é maior.

Como negar que essas imagens comportam todo um mundo? Como posso sair dele sem me machucar?

Estou por aqui vivendo uma semana e tanto. Semana em que me dediquei a escrever um ensaio crítico sobre Gerry, o que me fez sofrer, chorar, e literalmente me desesperar diante de minha incapacidade.

Não há como racionalizar um acontecimento que é maior do que eu, maior do que qualquer palavra que eu possa proferir. Não dá.

Ontem revivi o filme para tentar mais. Só consegui descobrir que nunca deixei de vivê-lo. Que de fato a minha existência se impregnou por esse anseio de Gerry, e que me tornei Gerry e que não sei mais viver sem ser assim.

Eu sou
E contemplo
Vivo
Isso me basta

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

CONTEMPLAÇÃO


Monge Diante do Mar, Caspar Friedrich, 1810.

Um pequeno homem beirando a insignificância contempla a imensidão da natureza. Eis uma situação recorrente na obra de Caspar Friedrich (1774-1840), romântico alemão que figurou como ninguém o poder devastador da paisagem diante de alguém que simplesmente contempla, e que nada pode fazer além disso.

Um dos nomes mais associados à manifestação do sublime em pintura, Friedrich foi um homem que soube através de suas telas refletir a incongruência do contato entre o homem e Deus, instaurando em nós, que nos limitamos a contemplar aquele que contempla, uma sensação de abismo inigualável, equilibrada entre o maravilhar-se e a impotência, a vida e a morte.

Eu me pergunto no que o pequeno monge pensa, ou mesmo se a ele é possível pensar. Talvez não reste mais do que o sentir. Constatar que a finitude do mar contamina-se pela infinutde do céu. Desejar que essa mesma imensidão o toque. Transforme. E consequentemente me alcance.

"Fecha teu olho corpóreo para que possas antes ver tua pintura com o olho do espírito. Então traz para a luz do dia o que viste na escuridão, para que a obra possa repercutir nos outros de fora para dentro."
Caspar Friedrich

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

UMA FRONTEIRA PARA O NADA


O Deserto dos Tártaros, Valerio Zurlini, 1976.

Simeon: Vê-se bem o deserto apenas do posto de vigia.

Drogo: Mas o que se vê?

Simeon: Pedras...
Areia...
Poeira...
E quase sempre nevoeiro.

Drogo: Mas para Norte, mais longe, talvez se veja alguma coisa, não?

Simeon: Nada mais que nevoeiro.
Verão e inverno...
Inverno e verão...
Apesar disso, há quem afirme ter visto alguns cavaleiros em cavalos brancos.

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

INABITUAL

No romance inicial, os objetos que serviam de apoio à intriga desapareciam completamente para deixar avultar apenas o seu significado: a cadeira vazia só queria dizer uma ausência ou uma espera; a mão sobre o ombro, um sinal de simpatia; as grades da janela, a impossibilidade de sair... E eis que agora se a cadeira, o movimento da mão, a forma das grades. O seu significado continua evidente, mas, em vez de absorver a nossa atenção, é como dado a mais; mesmo em demasia, pois o que nos atinge, o que subsiste na memória, o que aparece como essencial e irredutível a vagas noções mentais, são os próprios gestos, os objetos, as deslocações e os contornos, aos quais a imagem restituiu de uma só vez (involuntariamente) a sua realidade.

Pode parecer estranho que estes fragmentos de realidade bruta, que a narrativa cinematográfica naturalmente não pode deixar de nos dar a conhecer, nos impressionem tanto, enquanto cenas idênticas da vida corrente não bastariam para nos abrir os olhos. Com efeito, tudo se passa como se as convenções da fotografia (as duas dimensões, o preto e branco, o enquadramento, as diferenças de escala entre os planos) contribuíssem para nos libertar das nossas próprias convenções. O aspecto um pouco fora do habitual deste mundo reproduzido revela-nos, ao mesmo tempo, o caráter inabitual do mundo que nos rodeia: ainda inabitual na medida em que recusa sujeitar-se aos nossos hábitos de percepção e à nossa ordem.

Alain Robbe-Grillet










Assassinato, Alfred Hitchcock, 1930.