terça-feira, 30 de junho de 2009

A VISÃO ENFRAQUECIDA


Nostalgia, Andrei Tarkovski, 1983.

A visão enfraquecida – meu poder,
Duas setas invisíveis de diamante;
A audição falha, cheia de trovoadas passadas
E de murmúrios da casa de meu pai;
Músculos endurecidos que se vergam
Como bois cinzentos arando o campo;
E à noite, por detrás de meus ombros
Não mais cintilam duas asas.

Sou uma vela consumida no festim.
Colhe minha cera ao alvorecer,
E esta página te contará um segredo:
Como chorar e onde ser orgulhoso,
Como distribuir o último terço
De prazer, e tornar fácil a morte,
E então, ao abrigo de um teto qualquer,
Brilhar, como uma palavra, com luz póstuma.


ARSENI TARKOVSKI

sábado, 27 de junho de 2009

INVESTIGAÇÕES



O ângulo acima, muito além da estesia provocada simplesmente pela beleza que impõe, sintetiza todo o universo criado por Bruno Dumont em A Humanidade (1999), seu filme de maior público e retorno crítico até o momento. Nele, temos o protagonista (um policial envolvido no caso de uma menina que com apenas 11 anos foi encontrada estuprada e morta) dentro de um museu que está organizando uma exposição com os quadros de seu avô. Não por acaso, parado em frente de uma tela com uma inocente menina... Mas não é para o quadro que ele olha. E ainda que sua cabeça esteja voltada para o chão, não hesito em afirmar que também não é lá que sua atenção está concentrada.

Um crime.

Ponto de partida para uma intriga policial que ultrapassa em todos os aspectos a qualquer convenção de gênero. Pois nele se encontra o motivo para questionamentos maiores, que não se importam com a necessidade de justiça, vingança, ou outras conseqüências emocionais que não estejam ligadas a uma inquietação metafísica de conhecimento humano. É assim que o personagem sempre está. Olhar perdido, corpo exaurido, suportando uma mente que se desespera ante a violência da vida. Em plena descoberta.

Impossível não perceber como os protagonistas de Dumont parecem alheios, bobos mesmo, num retardo em aceitar as circunstâncias disponíveis para enfrentar o correr dos dias e tudo que eles trazem consigo, seja bom ou ruim. Chega ser sufocante acompanhar em A Humanidade o desenrolar de uma investigação que está confiada a um homem aparentemente palerma, fraco e constantemente passivo. Mas há um equilíbrio, um alívio, sempre que a intriga é abandonada (quase o tempo todo) para que acompanhemos aquilo que eu já venho falando dos outros filmes de Dumont: personagens que simplesmente vivem. Que se contentam em contemplar.





Nessas horas, corrijo-me, não há um abandonar narrativo, um desinteresse pela trama estabelecida, ao contrário, há um intensificar, um desdobrar de percepções que significa os mistérios a um domínio epifânico de deslumbre. Talvez seja em momentos assim que a investigação realmente avance.

Não quero cair no lugar comum e óbvio de dizer que a investigação do crime é apenas uma metáfora para a investigação do humano. OK, acho até que eu já disse isso, mas não posso encerrar o trabalho de Dumont em uma alegoria. O fato é que se fosse somente isso, mesmo assim eu não poderia usar o termo “somente”, porque já seria grande. Mas é ainda mais. Mais do que uma pré-disposição filosófica, o olhar de Dumont sobre as coisas, diretamente refletido na maneira como seu protagonista também olha, interessa-se sobretudo pela capacidade que o cinema tem de ver, de sentir e perceber o mundo.

Antes de representar,
O cinema também vê.

Emblemático é o momento em que o investigador precisa, durante um interrogatório com um suspeito (vejam: excepcionalmente narrativo e centrado na intriga), parar de perguntar, debruçar-se e cheirar o acusado. Mais adiante, no fim do filme, frente ao verdadeiro culpado, ele precisará beijá-lo...

Não há fraqueza aí.

O que Dumont possibilita com cenas assim é uma reação visceral do homem diante das coisas e das situações que lhe envolvem. Retira o persona de sua aparente passividade igualando-o ao espectador que já não se satisfaz em assistir o filme sem desejar um maior contato com o mundo (o primeiro ângulo dá margem justamente ao interesse pelo interpretar, pelo reagir diante da obra). São essas reações que conduzem o investigador ao desfecho, à resolução do caso. E nesse sentido posso encontrar um avanço espiritual em relação ao filme anterior de Dumont: A Vida de Jesus (1997).

Se naquele, toda a atividade reflexiva era iniciada pela câmera e pela elaboração formal que não contava com grandes contribuições dos indivíduos representados (mesmo assim com brilhantismo), neste, homem e câmera se unirão para perceber o redor, para atravessar os contornos espaciais e experimentar no âmago (de si e das coisas) aquilo que lhes permitirá vislumbrar a resolução do problema.

Mas não se enganem.
Não esperem uma resolução satisfatória.
Ou melhor, não se satisfaçam com o que pode ser esperado.
A única saída é voltar ao pó.

quinta-feira, 25 de junho de 2009

ARQUIVO DISSENSO

Invariavelmente os posts de divulgação das sessões do Cineclube Dissenso ficam tão bacanas que termino deixando-os permanentemente por aqui. Mas acontece de vez em quando de eu não ter nada para informar sobre o filme a ser exibido, seja porque eu ainda não o assisti, seja pelas sessões surpresas que realmente não pedem comentários, seja porque eu simplesmente fico às vezes sem palavras. Por isso, e para não esquecer os lindos flyers que estão cada vez mais caprichados, vou reservar esse post para arquivar os referidos cartazes após a exibição das sessões divulgadas.













terça-feira, 23 de junho de 2009

EU PRECISO SER












A Humanidade, Bruno Dumont, 1999.

segunda-feira, 22 de junho de 2009

MEUS OLHOS VÊEM

No debate pós-filme da última Sessão Dissenso, o amigo Gerard disse uma coisa muito linda, e eu sei que ele nem imagina como me atingiu com sua reflexão. Ao mencionar a beleza das caminhadas em Béla Tarr, especificamente uma em que o protagonista corre sobre os trilhos de um trem que não surge, ele lembrou que esse ato de se movimentar sempre em frente, numa linearidade impossível de romper, relaciona-se intimamente com o próprio desencadear de imagens que resulta na impressão final do movimento cinematográfico. O prazer da CINEMATOGRAFIA, como ele tanto gosta de enfatizar: Cinema/Grafia (escrita do movimento de imagens). O meu prazer...

Que leitura brilhante! Nas caminhadas sem fim de Gerry e de todos os demais filmes que têm me encontrado, reveste-se uma significação direta da constituição cinematográfica em si, pura. Ao mesmo tempo um reflexo de todo o anseio do humano que não desiste de seguir em frente, de avançar, ansioso por encontrar e tocar a verdade das coisas, possibilidade atingida dentro do cinema através da precisa (re)apresentação do mundo e dos corpos que nele seguem em frente, em frente, em frente...

E é no ritmo das palavras que se repetem que voltamos aos trilhos.

Os trilhos vazios na paisagem vazia que o já vazio personagem insiste em desbravar.

Pressa.

Movimento.

E como não se lembrar dos trilhos primeiros?


As Harmonias de Werckmeister, Béla Tarr, 2000.


A Chegada do Trem na Estação, Auguste e Louis Lumière, 1895.

No lugar da locomotiva um homem.

Sobre ele outro transporte, mais contemporâneo, mais veloz.

A ameaça é maior.



E se no mesmo debate também nos remetemos às referências bíblicas que inundam o cinema de Tarr, com a evidente associação do grande peixe de Jonas e a baleia de Werckmeister, pois ambos (o peixe e a baleia) cumprem o papel de transformação interna do personagem, para o bem ou para o mal, não posso deixar de mais uma vez citar a Bíblia, nas palavras de Jó (livro que nos capítulos 40 e 41 também se refere a um grande monstro marinho, do hebraico beemote, popularmente lembrado como o Leviatã):

“Eu te conhecia só de ouvir, mas agora os meus olhos te vêem.”

São as palavras de um homem que após um longo martírio compreende a grandeza de Deus. Palavras que poderiam ser proferidas pelo protagonista de Tarr, ainda que todo seu trajeto tenha apenas o aprofundado ainda mais no sofrimento. Palavras que eu posso sim declarar após uma experiência cinematográfica como essa.

Pois na baleia do filme a manifestação de Deus.

Um Deus que no final é esquecido, abandonado em praça pública sob a névoa da guerra (assim como os trilhos dos Lumière), mas que não se permite morrer na memória de quem o viu.

O niilismo de Tarr ironicamente me traz esperança.

Pois não há expectador de cinema que não possa ser Jó, que não possa repetir suas palavras sob o mesmo deslumbre, a mesma graça de enfim contemplar o que não poderia ter alcançado de outra maneira.

Graças ao cinema meus olhos vêem.

sábado, 20 de junho de 2009

CONTROLANDO AS EMOÇÕES

Caramba! Como eu ía saber que hoje cedo estava acordando para viver o dia mais lacrimoso do ano???


As Harmonias de Werckmeister, Bela Tarr, 2000.


Marley e Eu, David Frankel, 2008.

Ah, esse negócio chamado cinema... Que como Arte ou Entretenimento sempre consegue me arrancar de mim para me trazer até eu mesmo...

quinta-feira, 18 de junho de 2009

SESSÃO DISSENSO



Neste sábado (20), às 14h, em continuidade as atividades do Cineclube Dissenso, na parceria com a Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), será realizada mais uma sessão de filme com entrada gratuita seguida por debate aberto ao público.

A idéia, que é sempre apresentar obras raras, de difícil acesso e ausente do circuito exibidor, criando mais uma opção aos amantes do cinema na cidade, contempla dessa vez uma das peças-chave do cinema europeu contemporâneo: o cineasta húngaro Béla Tarr. Conhecido pela lendária obra-prima de sete horas e meia Satantango (1994), Béla Tarr tem nos apresentado nas últimas décadas um universo cinematográfico extremamente pessoal e desafiador. A sessão contará com a exibição de um de seus filmes mais recentes, As Harmonias de Werckmeister (2000), um misterioso retrato de uma pequena cidade do interior da Hungria transformada com a chegada de uma baleia gigante empalhada.

A IMAGEM FINAL

Como encerrar uma obra?
Como se decidir pela última nota de uma composição?
Como elaborar a última página de um romance, o último verso de um poema?
Como saber que a escultura não precisa de mais um tocar das mãos?
Como encontrar a imagem certa para encerrar um filme?



Passado o entusiasmo urgente por Twentynine Palms (ou melhor: nele para sempre), experimento o primeiro trabalho de Bruno Dumont: A Vida de Jesus (1997). E com esse segundo toque constato uma coisa: o moço sabe valorizar sua última imagem como pouquíssimos cineastas já conseguiram fazer. Sim, até os mestres (posso incluir meu Hitchc sem peso na consciência) têm dificuldade nesse sentido, pois muitas vezes a força de uma obra-prima é tamanha que praticamente nenhum final pode satisfazer a sensação da desprezível necessidade do fim. Mas esse não é o caso de Dumont.

Espanta-me perceber que uma de suas particularidades como Autor (A super maiúsculo no caso dele) é marcar seus filmes com uma potência catártica após bons minutos depois do clímax (se é que se pode identificar um clímax em seus filmes). Bem diferente dos recursos convencionais que cercam o filão de filmes que apelam desesperadamente para um final surpresa, super impactante e tremendamente enganador, os finais em Dumont recorrem a um impacto que aposta na força do inesquecível a partir de uma rigorosa composição de totalidade, de plena consciência em tudo que foi abordado antes do fatídico último minuto. Assim, se há algo que incentive seus filmes ao status de obra-prima é justamente a elaboração da última imagem, ou para sermos mais justos e lógicos, da última cena filmada.

Por mais que hesitemos durante a projeção, perguntando-nos o porquê de determinados elementos, achando uma ou outra cena excessiva na duração ou duvidosa na intenção, não há como não se render ante o último minuto de seus filmes. O último fôlego, a última iluminação de uma obra que ao se apagar parece estar apenas soltando suas primeiras faíscas. E não adianta eu contar. Nem os mais ricos detalhes narrativos podem descrever a sensação que me invade ao terminar um Dumont, pois nesse momento (o fim do filme), ao invés de uma explicação final, sou assolado pelas mais cruéis dúvidas, não apenas sobre a vida e a difícil realidade vivida pelos personagens acompanhados, mas questionamentos que se referem principalmente ao aparato cinematográfico, sua história, sua linguagem, seu valor, sua ética, sua função e a negação de tudo isso.



Um filme sobre juventude.

Em nenhum momento a tentativa de julgamento, o risco do caricatural. Os personagens são simplesmente acompanhados, e se sensações desagradáveis são sentidas pela antipatia que provocam, qualquer juízo sobre eles será totalmente subjetivo (a antipatia é minha mesmo). Os temas habituais estão lá: descoberta/aprofundamento da sexualidade, o embate com o luto e a iminência da morte, fraternidade, desavenças com a família, e todo o arsenal de elementos que tão facilmente viram clichê por aí. Talvez o que impeça esse risco seja a sensação de que antes de mostrar acontecimentos da vida juvenil, o filme se interesse primeiramente, e de forma digna, em apenas captá-los vivendo.

Deixar o tempo passar, alguns diriam.
Conscientizar-se do que é viver, eu prefiro.

Caminhar nas planícies (deliciosamente fotografadas).
Passear de motocicleta e sentir o vigor do movimento.
Descansar no fim da tarde.
Sair com o carro e contemplar.





“Não tomarás o nome do teu Deus em vão: porque o Senhor não terá por inocente o que tomar o seu nome em vão.”

Realmente não consigo entender a necessidade de Dumont em afrontar o terceiro Mandamento e se utilizar de maneira tão arbitrária do Nome dos Nomes: Jesus.

Fiz de tudo para tentar enxergar a analogia entre o filme e a vida de Jesus, mas não consegui encontrar nada além de uma ínfima cena no início que mostra o deslumbre de um dos jovens , em um quarto de hospital onde um moribundo agoniza seus últimos minutos, diante de um pequeno quadro com uma cena que remete a história de Jesus. Ah, por favor, se essa minúscula cena for a única justificativa para o título... Tá, nem tudo poderia ser perfeito.

Os jovens desse filme podem ser apontados de tudo, menos de espirituais. Qualquer questionamento dessa ordem parece passar bem longe da cabecinha deles, o que me acentua ainda mais a incongruência do título. Na verdade, a espiritualidade da obra se concentra toda na própria forma final, no tratamento das imagens, na maneira como seu autor se debruça sobre o mundo e seus personagens. Apesar de toda minha fé no cinema não acredito que o olhar santificado de Dumont consiga espiritualizar qualquer um dos rapazes em jogo. Há casos em que realmente isso é possível. Como se o olhar bastasse para impregnar a imagem original de sentimentos e reações outras, mais profundas e esperançosas. Mas esse filme dificilmente se enquadraria nessa perspectiva.

Mas esperem.
O último minuto permanece lá.
E talvez seja ele o instante redentor.
Aquele quem conseguirá me calar e fazer aceitar.

O êxtase
Existe.

segunda-feira, 15 de junho de 2009

GRATOS VERSOS

leio
escrevo
rasgo tudo
e vou ao cinema!

Torquato Neto



Versos carinhosamente deixados num comentário ao último post pela amiga profª Gláucia Machado. Muito obrigado. Aproveito para divulgar a todos seu belo e sensível blog:

Dia Sem Previsão.

ESSA NOVA COISA



Um casal vai passear em Twentynine Palms.

É isso.

Toda a trama do arroubo de Bruno Dumont se concentra/dispersa nisso.

Não há conflito narrativo, crise dramática, nada que impulsione o espectador a continuar assistindo o filme por mais de 10 ou 15 minutos. Mas no âmago da coisa, o conflito de simplesmente viver.

A região é desértica (meu tesão particular), as estradas constantes (parece moldado pra mim), os corpos abandonados no espaço e à deriva do tempo para que vislumbremos suas reações.

É isso.

Um filme de reações. Do nada ela começa a chorar. Do nada ela começa a sorrir. Do nada ele precisa descer do carro apressado para observar a paisagem. Do nada ela precisa descer do carro para tocar numa vegetação. Do nada eles precisam transar. Do nada eles precisam brigar. Do nada eu me descubro enquanto assisto tudo isso.
Pessoas em reação à vida.

Ao respirar.



Um filme de terror.

Se me obrigarem a enquadrar Twentynine Palms em um gênero (absurdo e tentador), não hesitarei: é um filme de terror.

São diversos os momentos no decorrer da vivência em que se pressente um medo, um assombro que talvez seja o responsável por me atrair com todo meu fôlego ao universo pintado por Dumont.

Na piscina. Justamente a cena dos mais belos cartazes. A desconfiança pelo quase afogamento. A dolorosa aproximação por trás. Ela tensa. A imagem desconfiada. Minutos que se prolongam em busca do retorno da confiança arranhada. Até que ela se rende. Flutua em seus braços. Mais penetrada pelo amor de acreditar do que em todas as transas do filme.

O acidente com o cachorro. A discussão noturna. O carro que vai e vem enquanto ela está só na madrugada. São tantas as coisas que me despertam o medo... Até que o final chega. E me deixa covarde até mesmo para falar sobre (assistam, é melhor)...
Um epílogo amargo.

Crepúsculo dos mais dolorosos que o cinema já mostrou.

E justamente nele minha certeza da ignorância. De não saber nada.

O que é cinema mesmo???

Não posso me perguntar outra coisa depois de um filme assim.





Ainda enquanto eu assistia Gerry e era tomado por aquele arrebatamento que fiz conhecido por aqui, eu me imaginava no lugar de um deles, andando, errando/errante por um deserto, sentindo a dor do sol queimando, a fadiga do corpo esgotando, mas no fim de tudo um prazer sem par, felizmente sentido apenas por assistir o filme. Qual não é minha surpresa repentinamente descobrir que realmente me tornei um Gerry, não num sentido físico, mas num interesse cinematográfico...

Errar por entre filmes. Tocar num e noutro, comer uma pipoca, entreter-se, descobrir raridades, ampliar coleções, filmes, filmes, filmes, filmes... Um deserto de filmes... Ir ao cinema tem sido realmente desértico. Por mais que eu tente tocar, encontrar, ver, é sintomático que minhas mais marcantes experiências com filmes se dêem no recôndito de meu quarto, nas 17 polegadas de meu computador.

Foi no mesmo artigo que me indicou The Brown Bunny (Vincent Gallo, 2003), pela associação com o deserto de Gerry (Gus Van Sant, 2002), onde soube pela primeira vez de Twentynine Palms (Bruno Dumont, 2003).

[percebem que essa errância cinematográfica tem sido muito coerente?]

Outra coisa aconteceu em minha vida.

Assim como em Gerry a coisa estava lá e foi alcançada, também há uma coisa que ainda precisa ser alcançada no cinema, e desde Gerry eu tenho chegado cada vez mais perto dela.

Alguns filmes preciosos têm me conduzido por um caminho sagrado. Twentynine Palms me ajudou a dar um grande passo nesse sentido.

Se ao tocar Gerry tive a sensação que tinha vivido até ali com o objetivo de um dia tocá-lo, como se naquela hora e meia eu tivesse enfim entendido o significado dessa minha insistência em continuar respirando, ou pelo menos do porquê ter respirado tanto até Gerry chegar; com Twentynine Palms pareço ter descoberto qual o motivo para minha respiração futura, no quê posso esperar tocar mais ou como devo deixar que me toquem daqui pra frente. Nele eu descobri o propósito:

EU PRECISO CONTINUAR RESPIRANDO.

sexta-feira, 12 de junho de 2009

O CORPO SACRIFICADO

Relembrar minhas pesquisas sobre a semiótica da tatuagem a partir do filme de Cronenberg e exibir (sadicamente) algumas lindas cenas dele ao público desavisado no Seminário Intersecções foram o ponto alto desses últimos dias. A seguir, uma parte de análise que não foi publicada no livro, numa relação com o texto de Franz Kafka, Na Colônia Penal (1914).


Senhores do Crime, David Cronenberg, 2007.

Nesse lugar, sua nudez (tatuada) o denunciará aos inimigos e um embate mortal se dará. É o corpo denunciado. Portador não mais de um sinal de honra, mas de uma maldição que poderá levá-lo à morte, assim como na história kafkiana. A tensão dos corpos atinge nessa seqüência um clímax que beira o sensorial. A nudez desinibida do ator não chega a provocar um esclarecimento de seu corpo, pois a todo o momento fica a impressão de que a totalidade do ser não pode ser vista, não se permite apreender por olhos externos à pele marcada. Ainda que as tatuagens se ofereçam aos nossos olhos, elas parecem manter em oculto um misterioso significado vital, que se for revelado trará a imediata morte do sujeito.

O desnudar é um tema recorrente na pintura e na literatura. É o momento em que o corpo se faz objeto de arte viva. Para alguns autores, o ‘pôr a nu’ é como ‘pôr à morte’, como se o corpo, desvestindo-se, se abandonasse às vertigens do nada e se separasse de toda aparência de ser ainda um sujeito. É o momento em que o corpo, na visão e no ato de ser visto, faz desaparecer a distinção sujeito/objeto. O desnudar é o momento atemporal da soberania do desejo na epifania das imagens corporais.
(Henri-Pierre JEUDY, O Corpo Como Objeto de Arte)


Curiosamente, durante a entrevista com os membros do clã, Nikolai afirmou: “Já estou morto. Morri aos quinze anos. Agora, vivo em torpor o tempo todo.” A negação de si confessada por ele, ecoa no corpo seminu exposto ao clã e culmina na trágica luta em que sofre mesmo sendo inocente; à beira da morte por um crime que não cometeu, no lugar de alguém, sem nem saber a razão. A relação Nudez/Morte proposta na citação de Jeudy é plenamente visualizada nesse momento de cuidadoso apuro cinematográfico, confirmando o abandono do corpo ao nada, entregando-o a disposição da única certeza que o corpo humano possui: seu fim.



A revelação final de que Nikolai era, na verdade, um espião infiltrado na máfia para investigação dos crimes, intensifica a sensação de que seu sofrimento foi realmente imerecido. Novamente o conceito de sacrifício ganha lugar. As violentas imagens do corpo ensangüentado, sacrificado, mutilado sobre a pele tatuada, também nos remetem mais uma vez aos acontecimentos de Na Colônia Penal. Assim como Kafka não poupou detalhes para descrever a tortura sobre o punido, Cronenberg não economiza em sua capacidade imagética de chocar e causar polêmica.

Ambos os autores encontram nesse castigo uma provável sublimação, reflexo da dor/prazer que a pele sofre/goza ao ser queimada por uma tatuagem. Neles, a reflexão sobre uma ‘Semiótica da Tatuagem’ torna-se não apenas possível, mas imprescindível de ser feita, pois a cada mudança que o homem realiza em seu corpo, novas motivações podem ser encontradas, novas significações e sentidos, num natural ciclo de desenvolvimento da vida que se promete infindável.

A compreensão de que a carne tatuada sobrevive em constante subjetivação eleva o estatuto do corpo a uma dimensão simbólica peculiar ao processo desenvolvido pelo conceito de imaginário. Assim, no universo criado por Kafka e Cronenberg, encontramos um desdobramento do humano em ser mítico, mas que não se limita à diegese artística e fictícia somente. Cada corpo tatuado, mesmo dentro de uma materialidade concreta e ‘real’, entra na ordem de um novo ser, uma nova mensagem, uma nova possibilidade de vida a ser lida e apreendida.

quarta-feira, 10 de junho de 2009

OTOSHIANA



Novo post no MAKING OFF.

Esforçado minerador vive à procura de emprego, conseguindo serviços rápidos em diversos locais. Aonde vai arrasta seu filho, criança silenciosa, acompanhante de todos os seus passos.

Certo dia, recebe a recomendação de uma mina e ao se guiar por um mapa vai parar num vilarejo abandonado, cujos habitantes fugiram sob o perigo de um desabamento. Nesse estranho lugar apenas uma mulher ficou. Aguardando notícias de seu amante desaparecido. Nenhum deles sabe que o lugar permanece assombrado por espíritos de pessoas mortas...

Continuando à procura da mina, o homem passa a ser perseguido na desértica região por uma misteriosa figura vestida de branco com uma mala de couro: ninguém menos que a própria morte.

“Existem coisas que não devem ser descobertas.”

Eis a fala de um dos espíritos ao protagonista numa cena do filme. E ela me explica tudo. Me explica que o inexplicável é o objetivo central da primeira parceria entre o diretor e o escritor/roteirista naqueles idos dos anos 60 (milagrosos), que contariam com mais 3 criações conjuntas entre eles.

Em Otoshiana, uma aproximação do fantástico como raras vezes a linguagem cinematográfica conseguiu obter, com segurança e consciência em pleno equilíbrio com a inventividade e a necessidade da descoberta de novas possibilidades para o domínio da imagem audiovisual. Em Otoshiana, uma reflexão sobre o indivíduo, seu lugar na sociedade e no mundo, seus recursos de sobrevivência, sua luta contra o próprio destino, igualmente cruel. Em Otoshiana, um cinema submetido ao corpo (como numa prévia do que explodiria em A Mulher das Dunas), à pele, aos poros que não cessam de transpirar, em todos, em tudo, num espaço que aparenta existir apenas para abrigá-los, consolá-los da dor, do fim.

ATENÇÃO: próximo sábado (13), esse filme será exibido no Cinema da FUNDAJ, às 14h, como sessão do Cineclube Dissenso. Entrada franca.

sábado, 6 de junho de 2009

IGNORÂNCIA

Eu não sei nada sobre o amor.



Eu não sei nada sobre o ódio.



E como é duro descobrir,
De repente,
Que eu não faço a mínima idéia do que seja CINEMA.

sexta-feira, 5 de junho de 2009

O FESTIM NOS TEMPOS DA PESTE


O Espelho, Andrei Tarkovski, 1974.

Houve um tempo em que prosperava
Em paz a nossa terra;
Aos domingos, a igreja
De Deus vivia cheia;
As vozes de nossos filhos
Ressoavam pela escola,
E cintilavam pelos campos radiantes
A foice e a gadanha ligeira.
Hoje a igreja está deserta;
A escola, fechada e em silêncio;
O campo ocioso e sem colheita;
O bosque, escuro e vazio;
E o povoado parece
Uma casa depois do incêndio:
Tudo é silêncio, e só o cemitério
Está cheio, e não se cala.
A cada instante trazem os mortos,
E os vivos gemem
E amedrontados pedem a Deus
Que dê paz às suas almas.
Cada vez falta mais espaço,
E as tumbas, por sua vez,
Como um rebanho assustado
Vão se apertando umas nas outras.

Alexander Púchkin

EVANGELIZANDO

Pois é, desde o início de Esculpir o Tempo tinha planejado revisitar a filmografia de Tarkovski... Bem, acabei revendo apenas o primeiro longa (A Infância de Ivan), e constatando que o tempo de Tarkovski não é o meu tempo, que ele não pode ser medido ou agendado por convenções humanas tão simplórias como o relógio ou o calendário (nenhuma arte verdadeira pode).

E se hoje eu venho vos falar brevemente desse livro é para confirmar minha suposição inicial de que eu estava lidando com um ‘Evangelho Cinematográfico’. Tarkovski soube como poucos, refletir sua arte a um nível de entrega e submissão (submisso e missionário), e eu não tenho dúvidas de que essa será uma leitura que vou carregar com toda a intensidade por toda minha vidinha. Pela primeira vez encontro um livro que não seja propriamente literário com potência suficiente para entrar no meu Top Livros (vocês já conhecem das minhas bobagens particulares), na verdade, mais do que aos romances que formam essa minha lista, o texto de Tarkovski é, sem dúvida, o que mais se aproxima do Livro dos Livros, a Bíblia Sagrada (primeira do Top, claro). Ele não apenas cita diretamente textos do apóstolo Paulo como se refere constantemente ao amor cristão, aos ideais de criação em semelhança divina, e (gênio), termina suas últimas dezenas de páginas sem sequer falar de cinema para falar de humanidade, sociedade e os problemas e ausências do mundo contemporâneo. Religião, Arte, Filosofia, uma obra que não dá pra botar defeito...

Nos últimos meses nem foram poucas as vezes em que eu trouxe trechos de sua obra para cá e os últimos versos (Arseni Tarkovski, pai do cineasta, e Puchkin), por exemplo, foram colhidos de lá. Por sinal, o nome de Púchkin parece ser outra descoberta que vai marcar meu 2009... Há inúmeras referências ao escritor russo em Tarkovski, e aqueles versos que registrei em P(r)O(f)ETA me atingiram de uma forma que eu não posso descrever (por isso a necessidade de Gerry). Curiosamente, no último sábado, passeando na livraria, um livro do autor cai na minha mão como por milagre... Um volume com 4 tragédias que, não resisti, adquiri na mesma hora.

É... pelo visto Tarkovski está cumprindo sua missão em mim não através de ângulos, mas de letras... Confesso que nenhum de seus filmes surtiu em mim efeito semelhante ao de seu livro e se dentre todos os artistas citados em suas reflexões, onde a maioria eram nomes de cineastas, eu ouso pescar outro escritor, isso comprova que meu destino com Tarkovski está essencialmente ligado à palavra.

Que se cumpra o chamado.

COMO ME ESCONDER ATRÁS DE QUEM SOU?


Partner, Bernardo Bertolucci, 1968.

EURÍDICE


O Espelho, Andrei Tarkovski, 1974.

Uma pessoa tem um corpo,
Um só, sozinho.
A alma já está farta
De ficar confinada dentro
De uma caixa, com orelhas e olhos
Do tamanho de moedas,
Feita de pele – só cicatrizes –
Cobrindo um esqueleto.

Pela córnea ela voa,
Para a cúpula do céu,
Sobre um raio gélido,
Até uma rodopiante revoada de pássaros,
E ouve pelas grades
Da sua prisão viva
O crepitar de florestas e milharais,
O troar de sete mares.

Uma alma sem corpo é pecaminosa
Como um corpo sem camisa –
Nenhuma intenção, nem um verso.
Uma charada sem solução:
Quem vai voltar
Ao salão depois do baile,
Quando não há ninguém para dançar?

E eu sonho com uma alma diferente
Vestida com outras roupas:
Que se inflama enquanto corre
Da timidez à esperança;
Pura e sem sombra,
Como fogo, ela percorre a Terra,
Deixa lilases sobre a mesa
Para que se lembrem dela.

Então continua a correr, criança, não te aflige
Por causa da pobre Eurídice;
Continua a rodar teu aro de cobre,
Corre com ele mundo afora,
Enquanto, em notas firmes
De tom alegre e frio,
Em resposta a cada passo que deres,
A Terra soar em teus ouvidos.

ARSENI TARKOVSKI

P(r)O(f)ETA



Gerry, Gus Van Sant, 2002.


Cansado da fome espiritual
Em meio a um deserto triste meu caminho fiz,
E um anjo de seis asas veio a mim
Num lugar onde havia uma encruzilhada.
Com dedos leves como o sono
Tocou as pupilas de meus olhos
E minhas proféticas pupilas abriu
Como olhos de águia assustada.
Quando seus dedos tocaram meus ouvidos,
Estes se encheram de rugidos e clangores
E ouvi o tremor do céu
E o vôo do anjo da montanha
E animais marinhos nas profundezas
E crescer a videira do vale.
E, então, pressionou-me a boca
E arrancou-me a língua pecadora,
E toda a sua malícia e palavras vãs,
E tomando a língua de uma sábia serpente
Introduziu-a em minha boca gelada
Com sua mão direita encarnada.
Então, com sua espada, abriu meu peito
E arrancou-me o coração fremente,
E no vazio de meu peito colocou
Um pedaço de carvão em chamas.
Fiquei como um cadáver, deitado no deserto,
E ouvi a voz de Deus clamar:
“Levanta, profeta, e vê e ouve,
Sê portador da minha vontade -
Atravessa terras e mares
E incendeia o coração dos homens com o verbo.”

Alexander Puchkin
(1826)

FIM DE JOGO

Lendo um apanhado dos pensamentos estéticos de Michel Foucault deparei-me com o curioso ensaio A Pintura Fotogênica (1975). Ao relembrar a magia do início da fotografia e seu flerte com a prática da pintura, onde uma arte auxiliava a outra e experimentações das mais variadas resultavam das tentativas, ele expõe:

“Por volta dos anos 1860-1900, houve uma prática corriqueira da imagem, acessível a todos, nos confins da pintura e da fotografia: os códigos puritanos da arte a reprovaram no século XX. Mas divertia-se muito com todas essas técnicas menores que riam da Arte. Desejo pela imagem por todos os lados e, por todos os meios, prazer com a imagem.”

OK, mesmo conhecendo o desenvolvimento da história que a imagem (e aqui já incluo o surgimento da cinematográfica) tomaria, numa freada sisuda e temerosa, pelo menos naquele começo de século XX, amedrontado e deslumbrado com as novas formas de registro artístico, não consigo conter o riso diante dessa transcrição. Riso que demora a entender a lógica do aparente retrocesso apontado por Foucault, principalmente quando ele pontua: “Os jogos da festa se extinguiram.” Riso que imagina aquele prazer incontido e festejado e que se compadece com o inevitável retraimento encontrado posteriormente.

É diante desse quadro que o teórico questiona:

“Como reencontrar o jogo de outrora? Como reaprender não simplesmente a decifrar ou a alterar as imagens que nos são impostas, mas a fabricá-las de todas as maneiras?”

Perguntas feitas para imediatamente em seguida vermos o próprio Foucault sorrindo em seu texto ao comemorar o amor pela imagem reencontrado nessas pós-modernas (pretensas...) atitudes do pop, do hiper-realismo e de outros movimentos que contemporaneamente poderíamos identificar como prosseguidores desse prazer ressurreto.

Fico aqui me perguntando se Foucault ainda estaria sorrindo hoje...

E apesar de acreditar (pena) que ele sorriria (baseio-me tão somente nos pontos de vista que ele demonstra nesse ensaio e em outros), continuo me perguntando que resposta ele teria encontrado para seus questionamentos diante do cenário em que a imagem sobreviveu desde os idos de 1975. E sobreviver, não tenho dúvida, é o verbo mais adequado para refletir o lugar da imagem, ao menos aquela ancorada no diretamente visual, desde então.

Os jogos voltaram. O prazer, o desejo, a diversão... O fim de qualquer puritanismo... A imagem corriqueira, a possibilidade de acesso criativo a todos... Imagens por todos os lados, por todos os meios...

E por isso minha pergunta urge:

Como extinguir o jogo novamente?...

CINEMA DE FACES


Frost / Nixon, Ron Howard, 2008.

Eis: o melhor dos 5 finalistas ao Oscar desse ano! E ninguém imagina os preconceitos que tive de vencer pra afirmar isso... Preconceitos contra esse diretor de meia tigela que é o Ron Howard. Ô, cara chato! Quem viu e reviu clássicos acadêmicos como Apollo 13, Um Sonho Distante, Uma Mente Brilhante nas infindas sessões da tarde, estampando aquele modelo-família feito para ser consumido com pipoca, extrair uma provável lágrima no final e fingir que um bom elenco é suficiente para fazer um bom filme (sim, gosto de todos os atores desses filminhos), sabe bem do que eu estou falando. E quem sofreu se arriscando em O Grinch e O Código da Vinci, sabe que eu estou sendo até generoso em dizer que Howard é apenas um chato...

Óbvio que o nome do moço nos finalistas desse ano já me deixou todo alarmado, pensando: taí, o pior de todos. Por isso comecei apostando nos outrora grandes Fincher, Daldry e Boyle... Sem saber que essa renca de nomes seria a chatice do momento... (não incluí o nome de Van Sant porque o cara conseguiu se sustentar, sem muito brilho, mas ficou de pé)

Não à toa, sequer Frost / Nixon foi exibido aqui em Recife, sinal que me deixou antenado, afinal coisas boas costumam não alcançar o circuito comercial (e o trailer também me instigou). Até que eu consigo assisti-lo no recôndito de meu lar (valeu Rodrigo) vendo toda minha desconfiança levar uma rasteira e perceber que todo ser humano merece crédito, porque sim meus caros, Howard arrasou...

O resultado desse filme, além de contar com o elenco impecável e o texto deliciosamente bem escrito (coisas esperadas), vai muito além dessas particularidades destilando, pela primeira vez, personalidade no diretor em questão. A temática do filme ajuda: como a mídia televisiva julgou o presidente Nixon pelo episódio de Watergate através de um simples apresentador de entretenimento que conseguiu destruir a invulnerabilidade do político, ou melhor, do homem que errou e custou a assumir seu pecado. Isso, porque o julgamento não foi feito por ninguém menos do que a própria imagem do rosto desse homem, numa expressão intransferível de culpa e quase arrependimento. Prato cheio para Howard enfim aprender a tratar a imagem não apenas manipulando seus espectadores inocentes, mas refletindo o poder que a mesma traz em sua aparência e influência sobre os que atinge. Hummm... Talvez Howard tenha sido julgado por sua consciência na preparação desse filme e percebido que cinema exige mais do que sua costumeira média anterior era capaz de fazer.


Dúvida, John Patrick Shanley, 2008.

O lindo cartaz acima sintetiza em si praticamente tudo que eu poderia falar sobre o notável exercício de tensão que Dúvida me ofereceu. Eu poderia mesmo discorrer aqui a respeito de uma inúmera variedade de lugares-comuns (excelentes) em que o filme se alicerça, pois (assim como Frost / Nixon) temos aí mais uma espantosa equipe de atores a serviço de um milagroso texto. Mas eu acho que falar bem de Merryl Streep (deusa) e Seymour Hoffmann (o chato tá me reconquistando), ou mencionar o desabrochar de Amy Adams (linda, linda, linda), seria permanecer num blábláblá típico do que filmes assim conseguem levantar. É... reconheço que ao mesmo tempo em que estes dois filmes são grandes, eles podem sim ser facilmente reduzidos a satisfatória ordenação dos dois elementos citados (elenco + roteiro), mas como eu venho em defesa deles, prossigo em direção a um aspecto que se destaca como central em ambos e pode, em definitivo, defendê-los como obras dignas de atenção.

Quando eu sinalizei o cartaz de Dúvida como uma síntese do filme, poderia também me valer dele como uma síntese de todo esse post e do que me levou ao título “Cinema de Faces”. O cartaz se estrutura visualmente (e obviamente) nos 3 atores principais do filme centralizando toda nossa atenção para o rosto de cada um, ao mesmo tempo à mostra e ocultos, visíveis e escondidos, numa evidente antecipação de toda ambigüidade que levará à dúvida central do filme em si.

Em Dúvida, o que temos em cena não são corpos.

Cada ator, aprisionado pelas vestimentas religiosas e pelo rigor ético aí imposto também se vê podado em suas possibilidades corporais, restando apenas ao rosto e muito raramente às mãos, a potência de seu trabalho e o impregnar de sua emoção. Todo o filme é atravessado por faces que vigiam, mentem, sofrem, castigam; faces que sobrevivem e encontram na imagem final o melhor lugar para existir. E não por acaso, depois de constatar isso em Dúvida, percebi que o mesmo pode ser atribuído em Frost / Nixon (aliás o cartaz deste também pode ser objeto de análise nesse sentido). Dois homens em combate, sentados em suas poltronas, corporalmente em repouso, mas facialmente em ininterrupto contrair de sentimentos, duelando através dos olhos, dos lábios, das linhas que lhes contornam e são imortalizadas pelo registro televisivo, pela imagem.
Um cinema de faces. Um cinema de corpos ou parte deles. Um cinema de vida em erupção emotiva, cujo clímax da ação pode residir no movimento de uma ruga ou no brilho de um olhar.

É bom sair do cinema vendo que isso ainda existe. E apesar de saber que tanto Howard como Shanley poderiam ter aproveitado melhor essa abertura das faces, nutrindo seu material com uma duração de closes mais acentuadas no tempo, é bom sentir a esperança (ou ao menos desejar que ela exista). Tenho certeza/esperança que se esses moços fizerem a lição de casa direitinho com o professor Dreyer, qualquer dia eles podem estar assinando uma obra-prima.

ÁGUA VIVA

Um milagre.

Não tenho outra palavra para o acontecimento desse livro em minha vida. Nunca tinha lido nada da autora na época (confesso, ainda faltam muitos pra ler, ótimo, outros milagres me aguardam), e pegar esse pequeno livro, pequeno mesmo, me atormentou o espírito por mais de um mês. 100 páginas que poderiam ter sido consumidas em uma tarde me incomodoram por mais de um mês... isso mesmo. Eu não conseguia passar de um parágrafo quando iniciava ou retomava a leitura. Clarice me aprisionava na brevidade de uma linha, de uma palavra, de um verbo (é) como nunca uma experiência literária tinha feito comigo (e nunca mais fez, eu acho).

Eu me achei ali.

Isso. Eu me vi. Todo.

Até hoje digo: a quem quiser me conhecer um pouco, basta ler Água Viva. Eu estou todo lá. Não preciso de teorias, de profundas racionalizações (tudo que ela não deseja é isso), se a existência da obra me basta para significar tudo que eu sou.

Cada dia me convenço, em sentidos práticos mesmo, que vale demais dedicar a vida ao prazer da possibilidade artística. Consumir arte, se gastar nela, não se envergonhar de externar essa força que pulsa e parece querer explodir no peito, e olha que eu sei como eu corro o risco por aqui de ser tomado por piegas, leviano, dramático, pois eu constantemente me exalto com os filmes e os livros da minha vida... Ah, mas se não fosse isso, do que mais eu iria falar? Por que eu insistiria em viver? Eu prefiro correr todos os riscos...

Ler muitos livros aumenta a possibilidade de um encontro assim acontecer e eu torço para que isso ocorra mais e mais no meu futuro. Até hoje, entre as inúmeras grandes obras que já toquei, adianto (repetindo) que a única que chegou perto do milagre clariceano foi a dessa outra grande mulher: Hilda Hilst, A Obscena Senhora D. Essa é recente, ainda nem completou um ano, e já falei um bocado por aqui. Mas permanecendo em Água Viva acho que posso concluir que o principal motivo do favoritismo foi ter encontrado no livro o mais fiel espelho ao qual eu já me refleti. Ver a própria face, não essa feiosa que todo mundo enxerga, mas a face de dentro, daquilo que me constitui, do meu fôlego original, isso é um milagre que por mais que eu escreva não conseguirei transmitir por completo.

Que a graça e as consolações clariceanas sejam com todos, que suas palavras e epifanias acompanhem a humanidade agora e para sempre. Amém.

UM POUCO DE PAZ...


Condenação, Bela Tarr, 1989.

Desesperança.

Ruínas.

Envelhecimento.

Desintegração.

Uma janela com o vidro manchado pela incessante água da chuva a escorrer... escorrer... E o prazer de ver o fluir das águas distanciando o raciocínio, ignorando o pensamento... escorrendo...

Não dá pra dizer.

Como das outras vezes, minha terceira experiência com Bela Tarr prossegue no inexplicável prazer de simplesmente existir e gozar...

Viver...

São tantas as vezes em que suas imagens escurecem até o desaparecimento total da luz (obsessão com o último capítulo de Sátántangó), são tantas as vezes em que os diálogos e as músicas são rompidos pelo cair da chuva... o cair... o cair...

Tudo é negro.

O homem é bicho.

A terra é lama.

Sobreviver é covardia.

Ah, se eu pudesse ficar... No limiar da imagem ficar... Desde a primeira, onde já sou capturado e lançado numa hipnose dolorosa, onde a névoa me penetra as cavidades e assenta em minha alma... Ficar...

Eu fico.

(IM)PERFEIÇÕES


O Crime Perfeito, Alfred Hitchcock, 1957.

Para que um artista chegue perto da perfeição criativa é preciso enfrentar alguns baixos, escorregar um pouquinho, para sondar o terreno em que pisa, experimentar e descobrir as possibilidades que tem em mãos. Cumprindo essa obrigação da qual nem os gênios podem escapar, Alfred Hitchcock também viveu seus dias nublados, suas tentativas frustradas, principalmente no início da carreira britânica, acho que mais na primeira metade dos anos 30 do que na década muda em si. Seria absurdo imaginar que na sua espantosa carga produtiva americana, principalmente com o início do seriado televisivo ele não fosse pisar na bola nenhuma vez... Pois é, encontrei o escorrego do mestre...

O Crime Perfeito, 8º episódio do Hitchc para TV é uma iniciativa que não merece muito de nossa atenção. Aqui sim, completamente televisivo em termos de limitação de linguagem, o mestre fez apenas remoer alguns de seus temas prediletos. De Festim Diabólico a O Homem Errado, as citações são explícitas e inúmeras, mas acho que pela primeira vez não vejo algo consistente ser acrescentado à sua obra. A repetição temática na filmografia de Hitchcock, sob a impressão de que toda sua carreira se dispôs a filmar apenas um filme em suas infinitas variações, pode muito bem ser apreciada sob o conceito de repetição deleuziano, onde a repetição faz parte da própria ontologia do tema em questão, num interminável processo de (re)significação dos sentidos. Mas aqui, não posso de forma alguma aplicar essa interpretação, pois o faria levianamente.

Pensei até em não escrever nada a respeito, mas percebi que estaria sendo injusto, já que abracei a idéia de comentar episódio a episódio. Reconhecer uma falha entre tantos acertos não é nenhum mal, ainda mais quando me lembro da enorme quantidade de coisas irrepreensíveis que Hitchc fez nesses idolatrados anos 50. Sem dúvida, aqui uma das notas mais baixas de toda sua produção, o que talvez me faça admirar ainda mais esse homem que foi antes de tudo, um homem.

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Os 8 episódios até aqui comentados são o total do que foi disponibilizado no Making Off, referentes às 3 primeiras temporadas da série. O amigo PARENTE, responsável por essa ação redentora, está dedicado aos demais episódios agora, feitos pelos outros diretores contratados para o programa. Não pretendo cobrir esses outros por aqui (a não ser que valha de verdade), por isso suspendo temporariamente (espero que por pouco tempo) a continuidade desses deliciosos posts hitchcockianos...

Faz um tempo que consegui completar a filmografia do mestre por aqui (lágrimas), mas confesso que com o tempo limitado, ainda falta experimentar uma meia dúzia de filmes, o que certamente me fará voltar em breve com um pouco mais de suspense...

POR UMA IMAGEM PURA

Um casal. Uma briga. Um marido que num impensado ato de violência fere sua esposa mortalmente. Um cadáver. Como se livrar dele?

O 7º episódio dirigido por Hitchcock para o seriado televisivo não se preocupa em contar nada além do que o descrito nas linhas acima. Não há sub-tramas, preocupações secundárias, absolutamente nada que ultrapasse o interesse desse monstruoso marido em se livrar de sua mulher morta. Sequer há a preocupação em criar empatia por qualquer dos personagens. Nem mesmo pela esposa!!! Isso mesmo. A danada parece ser tão inconveniente que chega pensamos ser merecido o castigo... OK, mas nada justifica a violência de uma morte, então nem ela nem ele merecem nossa identificação.

Foi diante dessas constatações que eu me perguntei: o que Hitchc quis mostrar com esse filme???


Uma Milha a Mais / One More Mile to go, Alfred Hitchcock, 1957.

Incontestável: esse é um dos episódios mais visualmente impressionantes que Hitchcock poderia ter feito. Não acredito que valha o esforço de contá-lo em palavras, mas sou obrigado a fazer isso para que vocês possam entender o que quero dizer. Abrimos o episódio observando o casal pelo lado de fora da casa, pela janela. Não podemos ouvir a briga. Somos condenados apenas a olhar, impunes, cúmplices. Permanecemos por 10 minutos submersos nos mais rigorosos princípios do cinema mudo, acompanhando o colocar do corpo no porta-malas do carro, e a fuga do assassino para um lugar distante. Até que o policial surge. Impedindo o prosseguimento da viagem por causa de uma lanterna apagada na traseira do automóvel...

A partir daí Hitchcock joga com todas as possibilidades narrativas para criar seu caro e querido suspense, conseguindo nos fazer até simpatizar com uma criatura abominável como a desse marido. Bem, acho que pela primeira vez nos meus comentários aos episódios não vou contar o desfecho, pois me parece coisa desnecessária. O próprio Hitchc me parece não ter desejado que tal episódio acabasse, e por isso talvez ele tenha feito de Psicose uma variação direta de toda essa cena com o carro.


Psicose, Alfred Hitchcock, 1960.

Incontestável: a cena em que Marion Crane foge no início de Psicose é uma das mais bem trabalhadas situações de suspense da história do cinema. Os paralelos estéticos entre essa sequência e o episódio em questão são incontáveis. Os ângulos, os policiais, a duração do tempo, os recursos do roteiro, tudo parece existir em reflexo, como se o vidro do carro não almejasse a transparência, mas sim a capacidade especular de interligar esses personagens entre si, cada um culpado por seu crime, em uma terceira identidade com aqueles que os vêem olhos nos olhos: nós.

Eu não consigo deixar de me questionar sobre a abertura que esse campo de visão oferecido por Hitchcock problematiza a respeito da posição do espectador. É infinito o número de filmes que apresenta o interior de um carro através do seu pára-brisa, mas o que Hitchcock propõe através dessas tomadas internas vai muito além de uma simples e elementar disposição cênica espacial. A aproximação ao volante, o auxílio musical (sempre assombroso), a intromissão a esses rostos contorcidos pela culpa e o medo, da forma específica como o mestre filma, transformam a janela do carro em uma abertura para o interior da alma, não apenas dos personagens envolvidos, mas da alma que impregna a imagem cinematográfica.

E aqui minha resposta: Hitchc não quis mostrar nada com esse filme...

Suas palavras ao fim do filme confirmam: “...o tipo de calma perpetrado somente em nossa mente. Um golpe suave. Um som de tiro. Sem balas, gritos ou feridas. Sem manchas, sem fumaça nem espirros. Nós usamos somente o assunto mais puro.”

A imagem em Hitchcock mais uma vez alcança uma autonomia com a relação narrativa que não permite identificar quem está submisso a quem. Pois realmente não é isso o que deveria interessar ao cinema. Ao mesmo tempo em que o pendor formalista do suspense hitchcockiano consegue limpar a imagem de interferências exteriores ao desenvolvimento emocional de uma cena, o assunto aí depositado também é conduzido ao extremo da pureza, num interesse que se livra das sobras e dos excessos e que provoca o equilíbrio entre forma e conteúdo, ainda que ambos estejam no limite de suas possibilidades.

Assim, o objetivo de um episódio como esse não consiste em movimentar um personagem adiante, mostrar uma situação cotidiana, ou sequer contar uma história. Nem deveríamos estar falando de objetivos. Se ousamos tentar compreender a lógica do que Hitchcock faz aqui, para além do efeito (e que efeito!) emocional proporcionado, precisamos nos aprofundar ainda mais na pureza do desespero da consciência em que todas essas imagens estão calcadas, ou seja, adentrar justamente na pureza das próprias imagens e de sua montagem, pois nada me parece completo além delas.