quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

MOSTRA YASUJIRO OZU - CINECLUBE DISSENSO


APRESENTAÇÃO

Ter a oportunidade de assistir a uma série de filmes, em sequência, de Yasujiro Ozu, traz a inabalável convicção de que este foi um diretor empenhado em construir, no decorrer da carreira, um único filme. Constatar os pontos de ligação de seus trabalhos, na abundância de conexões temáticas e estilísticas, é como orientar-se naturalmente a encarar cada novo título desta obra como espécies de refilmagens, de retomadas naquilo que já se viu, mas que novamente se oferece sob um desgaste inédito. Ozu nunca temeu a repetição. Do contrário, fez dela o alicerce de todo um projeto investigativo da humanidade e desta singular forma de abraçar o mundo pela imagem em movimento. Seu cinema, sobre homens e grupos sociais limitados por um cotidiano que não exclui a felicidade, é também um cinema sobre o cinema, sobre o que se pode fazer com ele e, principalmente, sobre o que ele não pode fazer.

Na trajetória percorrida pelo diretor, de seus primeiros filmes mudos, quase todos destruídos pelo tempo, até seu primeiro exemplar falado (Filho Único, filme abertura da Mostra), Ozu aprendeu cedo que não poderia confiar no ofício escolhido para sua vida. Daí a inevitável elaboração de uma gramática própria, de uma consciência do fazer cinematográfico pautada pela aceitação da fraude, do engodo. “O filme não representa o mundo como ele é”, diz o cineasta, que assumia ser este meio de expressão um destruidor da realidade, uma “ferida brutal” contra um mundo naturalmente corrompido. E por isto a confrontação. Um estado de descrença contra tantos elementos (montagem, narrativa, lógica de roteiro) constitutivos de um cinema que, já em sua época, agonizava uma evidente impotência de autonomia; um cinema que aprisionava o mundo e assim também se condenava ao silêncio.

Até que alcançasse o reconhecimento unânime da crítica (por filmes como Pai e Filha), e fosse celebrado internacionalmente como um dos maiores diretores do Japão (o caso específico de Era Uma Vez em Tóquio), Ozu desenvolveu um estilo muito peculiar de trabalho com as câmeras e os eventos que habitualmente escolhia filmar. Por mais que hoje reconheçamos um ‘estilo Ozu’ de se fazer cinema e toda uma escola de seguidores – que incluem nomes dos mais célebres, de Kiarostami a Hsiao-Hsien – venha retomando seu imaginário em prol de questões que de fato tocam a contemporaneidade, o próprio Ozu sempre foi avesso à identificação de uma estética para o seu legado. Da mesma forma, as situações selecionadas para composição de seus enredos, ainda que emanem uma tonalidade universal de abrangência, sempre foram feitas sem pretender grandes interpretações ou filosofias; até por isso ter sido Ozu um diretor que enfrentou não somente o cinema, desde sua formação técnica e tecnológica, mas a maneira como sua nação e as principais nações do mundo encaravam o discurso possibilitado pela sétima arte.

Se cada um de seus filmes surge como repetição de algum anterior, seja pelos atores, personagens, ações e diálogos; e se dentro de cada filme também é efetuado um abismo de reflexos, com mesmos planos, enquadramentos, durações e cortes, é porque não há repetição, em Ozu, que não venha acompanhada primeiramente de um deslocamento, de uma instabilidade organicamente associada à passagem do tempo e das transformações que ele discreta ou explicitamente realiza sobre a materialidade das coisas. Os filmes finalizados pelo diretor em sua última década de vida, hoje devidamente reconhecidos como dentro de um autêntico ciclo de remakes, ou antiremakes, do conjunto geral de sua obra, atestam uma amarga maturidade de alguém que lutou para sobreviver íntegro para com o que acreditava e que, ironicamente, concluiu com sua própria vida. Nesse sentido, seus dois últimos filmes (Fim de Verão e A Rotina Tem Seu Encanto) dão perfeito exemplo de um cinema que não se fecha, mas que continua ‘flutuante’, para recorrer a um termo aplicado à descrição da característica montagem de Ozu, uma montagem aberta, antisemântica e paralela ao estado caótico do mundo.

Finalmente, consideremos uma reflexão oferecida pelo cineasta Kiju Yoshida, em seu livro O Anticinema de Yasujiro Ozu: “É difícil definir sem hesitação o princípio que norteia a relação basilar de Ozu com sua obra, mas o certo é que não há outro meio de encontrá-lo a não ser por um conceito que expresse o caos do mundo. Talvez seja necessário dizer que Ozu considerava o mundo um lugar de caos infinito e, tendo isso como premissa, firmou um pacto secreto segundo o qual fazer cinema significava incorrer em falsificar a realidade.” E daí decorre o anticinema de Ozu, este lado avesso que hoje buscamos com a reunião dos cinco filmes selecionados para a Mostra no Cineclube Dissenso. A oportunidade de vê-los em conjunto, no que pesa uma qualidade específica de projeção (16 mm), não deixa de ser em absoluto uma experiência avessa; contrária aos parâmetros da própria linguagem do cinema, contrariedade que é inerente a Ozu, e oposta a toda uma prática de difusão e veiculação de filmes num mundo cada vez mais digital e individualista. Voltar a Ozu, mais do que voltar a um estilo, a um período histórico ou a um conjunto específico de códigos culturais, é voltar ao que um filme pode oferecer dentro da simplicidade de ser filme, se luz e sombra, ser a certeza de uma ilusão. Voltar ao cinema, é o que podemos dizer.


PROGRAMAÇÃO

25, Quarta, 16:20h

Filho Único (Hitori Musuko, 1938)
Primeiro filme falado de Ozu. Sobreposição de episódios a respeito de uma mãe solteira, operária de uma fábrica, que sofre para poder criar o filho com dignidade. Passados os anos, ela decide ir visitar seu filho, já adulto, esperando encontrar um médico bem sucedido. Termina por deparar-se com um cenário de miséria e desemprego, muito semelhante ao que sempre viveu. 84 min. P&B. 16mm.

26, Quinta, 16:20h

Pai e Filha (Banshun, 1949)
Com este filme, Ozu ganhou notoriedade internacional, inaugurando uma série de projetos sobre a desagregação dos valores familiares e os conflitos entre as gerações. Nele, uma jovem dedicada a cuidar do pai viúvo, apaixona-se, mas não sabe o que fazer de sua vida. Somente com um falso casamento que seu pai fingirá contrair, ela poderá considerar o caminho de sua própria felicidade. 108 min. P&B. 16mm.

27, Sexta, 15:50h (Novo Horário)

Era Uma Vez em Tóquio (Tôkyô Monogatari, 1953)
Considerado por muitos como a obra-prima do diretor, este filme celebrou uma espécie de nova maturidade para Ozu, que na época de seu lançamento completava 50 anos. Nele, um casal de idosos visita os filhos após uma ausência de duas décadas, mas são desprezados por seus descendentes, encontrando abrigo na hospitalidade de uma jovem nora que já está viúva. 135 min. P&B. 16mm.

28, Sábado, 14:00h

Fim de Verão (Kohayagawa-Ke No Aki, 1961)
No pós-guerra, patriarca de uma família em crise financeira revive uma antiga paixão. Enquanto isso, ele tenta casar sua segunda filha, bem como sua nora. Filme que representa a derrocada da família tradicional japonesa e do próprio indivíduo que, confrontado com uma realidade em transformação, tem como única certeza a existência da morte. 103 min. Cor. 16mm.

29, Domingo, 14:00h

A rotina Tem Seu Encanto (Sanma no Aji, 1962)
Último filme de Ozu. Um viúvo de idade avançada preocupa-se em arranjar o casamento de sua filha. Militar, ex-combatente na Segunda Guerra, ele sente com seus amigos fuzileiros o peso dos anos, de uma história que assola o Japão até mesmo em suas relações mais íntimas. 113 min. Cor. 16mm.

16:00h - Palestra Sobre Yasujiro Ozu, com Luiz Soares Jr.


Entrada Franca
Cinema da Fundação

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

DOSSIÊ INFÂNCIA


Ora, esta é uma edição há muito planejada, leitor. É como se tivéssemos arquitetado, com antecedência demoníaca, uma alegre data específica para nossa overdose proposital, para nosso retorno algo improvável às imagens que compuseram e transtornaram a tênue linha de paz, estabilidade e calmaria que vivíamos na infância. Junto a isso, chega-se também à “missão” complexa de comunicar determinadas experiências que tais imagens souberam destacar em nós quando crianças ou até mesmo agora, no final de 2011 / começo de 2012, nos registros de nossas vidas atuais. Reminiscências, permanências, intelectualizações. Nosso extrapolamento aqui presente, ainda que a princípio “espontaneizado” somente a partir do ato de revisão dispensado a todos estes filmes decepados e reagrupados pela rememoração afetiva e intelectual, é um perigo consentido e até mesmo desejado. De algum modo, tocando a ideia inicial de cobrir o maior número de filmes das velhas sessões de cinema da TV – Sessão da Tarde, na Globo, e Cinema em Casa, no SBT, em especial; mas também algumas outras e certamente as insuperáveis exibições em VHS – que dominavam as tardes (e noites) dos anos 90, talvez nos direcionemos contra nosso último editorial (mas talvez não: quase todos os filmes abordados vivem a sua própria unidade de filme isolado da noção de “obra”), desejando atingir aqui um esgotamento e uma hemorragia mortais que, acreditamos, é essencial para compreensão do fenômeno profundo que essas imagens projetadas e gravadas em nossas TV’s causaram a título de trauma – quando a palavra “cinefilia” nada significava – em nossos primeiros contatos com o mundo através da representação.

É portanto neste número que a angústia persiste na alegria do questionamento a respeito de como podemos reencontrar um olhar antigo, ou, mais ainda, sobre como podemos reencontrar a cegueira primordial, a grande clarividência. Como voltar a algumas impressões concretizadas da infância sem pervertê-la? Como a infância pode ser revivida em nós, agora que já vimos demais? Sabemos que um cinéfilo carrega sua identidade dentro de olhos transfigurados em corações insones. Então voltemos à infância desde órgão, voltemos às imagens que o desvirginaram para sempre. Voltemos às imagens que parecem dizer, afinal, com ou sem exagero, tudo ou quase tudo sobre quem nós hoje somos. Bom novo ano a todos.

Edição Especial - #08 Infância

ACESSE AQUILink