quarta-feira, 29 de agosto de 2012

FILME INÉDITO DE HERZOG NO CINE PASÁRGADA!


Nesta quinta-feira, dia 30, às 18:30h, o Cine Pasárgada exibirá Meu Filho, Olha o Que Fizeste! (EUA/ALE, 2009), uma produção de David Lynch assinada por Werner Herzog. O filme, inédito no circuito brasileiro de exibição, foi sonhado por Herzog durante quase 15 anos, a partir de um crime verídico que lhe inspirou o enredo. Lançado em 2009 como uma sessão surpresa do Festival de Veneza, segundo os curadores do Cine Pasárgada, o filme tem potencial para possibilitar um diálogo entre o cinema e outras formas de representação, como o teatro e a literatura, pela inspiração que busca numa tragédia de Eurípides. A sessão contará também com um debate realizado por Fernando Mendonça (que divide a curadoria do evento com Raquel do Monte), crítico de cinema que participou da recente elaboração de um dossiê sobre Werner Herzog, para o site Multiplot! (http://multiplotcinema.com.br/). Um trecho da reflexão de Fernando sobre o filme dá bom indicador do que o Cine pretende discutir a partir do mesmo:

“Muito adequada a explícita referência ao Orestes, interpretado pelo protagonista numa peça dentro do filme, jogo de espelhos, acentuação no caráter labiríntico da loucura, desta diluição/desintegração interior que o jovem filho atravessa. Mais do que um exercício de mise en scène, o que vemos nas belas sequências negras, literalmente mergulhadas em escuridão, do teatro, é um complexo desenvolvimento de mise en abyme, como raras vezes Herzog terá tão claramente explorado. Apropriar-se da tragédia grega, como ele aqui o faz, instaura um abismo que nos permite uma compreensão não só das angústias sofridas por suas personas — emoções e reações míticas, originadas num estado primitivo do humano e que para sempre serão universais —, mas que também ilumina um aspecto de seu trabalho enquanto filmografia, enquanto conjunto de filmes que orientam-se sob uma espécie de ‘política do trágico’.

É bem verdade que as preocupações de Herzog no cinema, especialmente estas que encontram no mundo físico um contraste para o realce do sublime, são constantemente motivadas dentro de um princípio muito próximo ao da tragédia: exploração subjetiva de indivíduos que agem no mundo e se transformam independente de sua vontade. Se Meu Filho… estampa direta e frontalmente tal especularidade, o faz não de maneira leviana, como para truncar gratuitamente a estrutura do enredo; pelo contrário, encontra aí uma iluminação de questões que até aqui (em sua carreira) poderiam estar carentes de embasamento. É porque Herzog assume o trágico que seus filmes permanecem cristalizados, enigmas que não se rompem ao mero desfecho ou clímax, e nesse sentido, Meu Filho… torna-se exemplo máximo de uma concepção muito particular dentro da narrativa contemporânea.”


SERVIÇO:
CinePasárgada
Meu Filho, Olha o Que Fizeste! (Werner Herzog, 2009)
Quinta-feira, dia 30 de agosto, às 18h30.
Espaço Pasárgada – Rua da União, 263, Boa Vista
Entrada Franca

sábado, 25 de agosto de 2012

MINHA SEMANA COM NELSON

Toda Nudez Será Castigada (Arnaldo Jabor, 1973)

Esta semana vivi um mergulho abissal no imaginário cinematográfico de Nelson Rodrigues, nos tantos filmes nascidos de suas fontes literário-dramáticas. Revelou-se a mim uma nova perspectiva de vida, que ainda preciso amadurecer para lidar pacificamente. Mas talvez não seja possível a paz para o olhar que se contamina por Nelson. Porque tudo vai pelo ralo. As moralidades, as crenças, as seguranças, as imagens que guardo do mundo, dos outros (amigos, vizinhos, parentes), a imagem de mim, tudo escorre e se mistura para um esgoto do qual não se foge mais.

Muito especial e emocionante a participação na Mesa com Neville D'Almeida, no último dia 23, como homenagem ao centenário de Nelson, dentro do Festival A Letra e A Voz. Ele comentou detalhadamente o processo de criação de "A Dama do Lotação" (escrito com o próprio Nelson, nas madrugadas, ao silêncio quebrado pela datilografia) e "Os Sete Gatinhos" (filme que guardo, a partir daqui, como a melhor adaptação do autor). Segundo o diretor, que sempre sonhou em fechar uma trilogia rodrigueana adaptando algum de seus romances, caso ele consiga vencer o tempo e todas as adversidades próprias ao nosso cinema, seu próximo filme terá grandes chances de ser rodado aqui no Recife. Como ele bem diz, Nelson precisa sair do RJ, ganhar o Brasil e o mundo em imagens que ampliem sua universalidade.

Esta semana Nelson me ganhou. E aqui começa o mundo (ou eu começo nele).

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

ALÉM DAS NUVENS

Além das Nuvens (Michelangelo Antonioni & Wim Wenders, 1995)


“Quando se copia um quadro de um grande artista, existe uma chance de repetir aí 
o ato desse artista e talvez de reencontrar, mesmo por acaso, o movimento exato.”

Uma revisão crítica de Além das Nuvens pode encontrar como ponto de partida um interminável número de questionamentos e opiniões presentes no filme e distribuídos entre suas quatro breves histórias, todas elas interligadas junto ao processo criativo vivido pelo personagem-cineasta de John Malkovich, alter ego explícito do próprio Antonioni; decidimos aqui um olhar mais atento apenas a um entreato destes enredos, independente de qualquer vinculação narrativa com as referidas histórias.

A frase acima citada faz parte de um diálogo que Marcello Mastroianni trava com Jeanne Moreau enquanto pinta uma paisagem da natureza. A aparição do casal em cena pode ser quase considerada figurante, sem nenhuma contextualização de personagem, sem retorno ou sequer menção no decorrer do filme em questão, ignorando apresentações, explicações ou qualquer tentativa de iluminação simbólica. Fugaz como um pensamento é sua participação, mas tão profunda como o mesmo é sua importância. Na verdade, a reflexão mencionada se dá após uma irônica observação feita por Moreau, quando esta indaga o porquê de a sociedade precisar de cópias das coisas, não apenas no caso da pintura, mas referindo-se a todo o leque de objetos de consumo em circulação. Ao abordar a ideia da cópia como um princípio do ato criativo, Mastroianni problematiza uma linha de pensamento que pode nos conduzir a compreensão de não apenas os objetos de consumo serem capazes de aprisionar a sociedade, mas de o objeto da arte em si, ser igualmente um aprisionador do artista, por seu enfoque tão modernamente capitalista, massificador.

Mas as intenções de Antonioni com esta seqüência parecem ir muito além de uma crítica ao sistema econômico vigente no mundo globalizado. O quadro que Mastroianni pinta não é produto comercial. Sua última frase já diz: “...Eu compreendo ser engraçado senhora, não vou vender de qualquer jeito...” Ele é mais. Transcende as necessidades financeiras e a realidade da natureza tendo como principal significado e objetivo proporcionar a satisfação de seu criador. Criador que é homem, que é essência. Criador que é Deus. É notável a necessidade do artista aí exposta. Encontrar o movimento do artista original, criador da vida natural e sensível, é o objetivo confessado por Mastroianni para o gênio repetido, possuidor do não mais exclusivo dom, que já pode ser encontrado num simples pintor a copiar o quadro da vida. 

Imediatamente após esse diálogo-reflexão retornamos ao personagem de John Malkovich e sua significação relativamente direta com a voz de Antonioni. Agora, ele se encontra no saguão de um hotel, vagando entre um cômodo e outro como sem nada para fazer. Admira uma pintura de paisagem que sugestivamente poderia ter sido feita por Mastroianni, até que se depara com um quadro que retrata um homem triste. Tenta imitar a posição do homem do quadro e acaba chamando a atenção de uma senhora que estava lendo, sentada. Ela o ajuda em seu objetivo, o de imitar o homem do quadro, com recomendações que direcionam: “...o outro braço por baixo... incline a cabeça pra direita... um pouco mais triste... assim.” A senhora é novamente Jeanne Moreau.


‘É’Jeanne Moreau, pois a essência do personagem para a narrativa total de Além das Nuvens é tão insignificante como aquele encarnado por Mastroianni, não possuindo dependência com os enredos (estes filmes de gaveta), nome ou funcionalidade na trama. Dessa forma, por Moreau e Mastroianni terem sido importantes atores na carreira de Antonioni, eles revestem essa obra com seus corpos e nomes, pois o mito que se tornaram os constitui personagens fictícios, ampliando e intensificando a introspecção o filme propõe. Como Mastroianni alcançou um diálogo sublime por sua simplicidade, Moreau representa em aproximados trinta segundos de cena um dos papéis metafísicos mais questionadores do cinema de Antonioni.

Ora, se o simulacro já é a cópia da cópia, ou seja, aquele quadro do homem triste que Malkovich observa, do que pode ser chamado o ato de cópia que Malkovich executa? O quadro é o terceiro nível do mundo platônico, mas em que nível se encaixa a imitação de Malkovich? A intensidade dessas indagações aumenta quando Jeanne Moreau entra em cena e se desvencilha do mundo em que estava, o da leitura (arte), para conduzir Malkovich ao mais próximo da verdade copiada. Qual o papel de Moreau?  Artista? Certamente não. A impossibilidade na contagem dos níveis platônicos torna-se mais perceptível se for levado em conta que todo este círculo de imitações é exposto no universo diegético do filme de Antonioni, produto, em si, já pertencente a um nível distanciado da verdade. Mas onde está a verdade? 

O percurso pelas histórias do filme é marcado por um elo muito tênue, por vezes não compreendido. Mas não entender a inexistente explicação para esse conjunto de ficções é sentir a sombra da urgência criativa. De um processo que, em Além das Nuvens, não se consuma. O alter ego de Antonioni não realiza nenhum filme, apenas se deixa consumir pela necessidade que antecede a criação, necessidade de um gesto, de um simples movimento que sempre insiste em fugir. Se nos perguntamos em dado momento ‘qual o papel de Moreau?’ sem encontrar resposta, é porque talvez ele esteja em nós. Cabe a nós completar o que se iniciou em arte. É de nós que o movimento sai e é para nós que ele retorna, resultando dessa troca o cinema enquanto intermediário entre a verdade e a vida.

[texto publicado no site Multiplot!]