quarta-feira, 27 de julho de 2011

TRÊS ACONTECIMENTOS

Respeite a você mais do que aos outros, respeite suas exigências, respeite mesmo o que é ruim em você - respeite sobretudo o que você imagina que é ruim em você - pelo amor de Deus, não queira fazer de você uma pessoa perfeita - não copie uma pessoa ideal, copie você mesma - é esse o único meio de viver.

Descobri as palavras acima, escritas numa correspondência de Clarice Lispector para sua irmã Tania, em 1947, na excelente biografia Clarice, organizada por Benjamin Moser - um dos três acontecimentos que provavelmente definirão meu resto de 2011, quem sabe, minha vida.

Depois de assistir Chantal Akerman, de Cá (Gustavo Beck & Leonardo Luiz Ferreira, 2010) e também conferir o último trabalho de Woody Allen (Meia-Noite em Paris, 2011), concluir a biografia de Clarice era o último passo para a nova necessidade. Se não posso ser muito claro quanto ao que ocorreu, isso se dá por nem eu mesmo saber a dimensão em que estas três obras me lançaram. Apenas sei que há algo novo em meu peito. No pulso.

A bem da verdade, isso nem seria o tipo de anotação que eu faria num espaço como esse, cada vez mais estranho a mim, por mais que eu lute. Mas talvez seja esta minha urgência: retomar meu lugar, restituir o que é meu, ou mesmo encontrar aquilo que em mim e de mim ainda não toquei.

É preciso voltar ao ângulo.

segunda-feira, 25 de julho de 2011

O DRAMA MAQUIADO







Três motivos despertaram em mim a presente reflexão:

1. A atual edição do site Filmologia, no foco específico ao tratamento do Feminino pelo cinema;

2. A recente e simultânea exibição, nos cinemas do Recife, de três filmes com três atrizes afetivamente importantes para mim;

3. A leitura do ensaio Amor às Mulheres, Amor ao Cinema, de Antoine de Baecque, em seu livro Cinefilia (recentemente lançado no Brasil pela CosacNaify).

Deparar-me com o mesmo gesto nos três filmes distintos (a saber Minha Terra África, de Claire Denis, 2009; Reencontrando a Felicidade, de John Cameron Mitchell e Cópia Fiel, de Abbas Kiarostami, ambos de 2010) foi encontrar um elo para o exercício comparativo de narrativas que, cada uma à sua maneira, reposicionam o lugar do drama no cinema contemporâneo.

Isabelle Huppert, Nicole Kidman e Juliette Binoche configuram nestas obras o núcleo de ação para o olhar, não apenas pelo que realizam a favor da unidade nos respectivos filmes, mas no que trazem em seus nomes e nos corpos nomeados de memórias intrínsecas ao cinema das últimas décadas, pois mulheres do cinema, mulheres do tempo presente e que pelo presente se ofertam enquanto registros de uma passagem que deixa marcas.

Dificilmente um coração cinéfilo da atual geração não encontrará em alguma destas atrizes um legado de emoções, lembranças que definam filmes amados (ou não) assim como a particular relação nutrida para com filmes do coração, uma relação de amor com o cinema em geral. Pois amamos alguns movimentos a partir dos corpos que vemos, da erótica que deles emana estabelecendo uma continuidade somente possível através do amor. Pergunto-me se, caso não amasse Isabelle, Nicole e Juliette, eu teria sido tocado pelo lugar comum da encenação de seus gestos, o simples ato de passar um batom, da forma como fui. A concentração do olhar, aqui, confirmaria assim uma espécie de exemplo prático para o que De Baecque problematiza em sua abordagem como uma identificação proveniente da Erotomania Cinéfila.

A ‘poética do detalhe eleito’, nas palavras do crítico, ganha contornos conceituais: O amor pelo cinema é consubstancial ao amor dirigido às atrizes. Esse laço entre o que se vê na tela, o que se faz na vida e na cinefilia arrasta esta última para o lado da iniciação, da descoberta conjunta dos filmes e do desejo. O poder cinematográfico das mulheres na tela é frequentemente descrito como uma cena original, uma revelação do próprio cinema e do cinéfilo para si mesmo. Vem daí a potência com que um movimento quase banal ousa tocar-me por sua singularidade. O detalhe de uma representação feminina (passar batom), no que ele permite fazer do gesto um vetor de excesso para a memória visual, ocuparia o ponto de partida para uma descoberta do próprio cinema colocado pelos diretores em questão, profissionais que conduziram o trabalho destas atrizes e, de certa forma, aceitaram ‘dividir a autoria’ com elas.

Os três filmes, sob inúmeros aspectos, partilham anseios presentes em boa parte do cinema atual, questões próximas ao lugar dos gêneros, dos direcionamentos narrativos e da reposição dramática num mundo cada vez mais desdramatizado. Uma questão de sobrevivência para o narrar, poderíamos deduzir a partir dos rumos tomados em cada um na maneira como submetem seus enredos – e mulheres neles – a domínios incompletos, pouco definidos, errantes. A pergunta comum poderia, com isso, ser apresentada sob o teor: Como encontrar o drama de uma ação ausente? Ou melhor, como fazê-lo viver num estado de representação que ainda atenda as necessidades do olhar? Afinal, ainda é preciso olhar?

Vem daí o gancho possível pelo elo das imagens acima. Há nos três filmes um evidente deslocamento provocado pelo (erotômano) gesto de passar batom. Não quero dizer com isso que a encenação deste detalhe ganhe destaque em nenhum deles (talvez se sobressaia com Juliette), mas não dá pra ignorar o fato de que passar um batom, para as três protagonistas, seria o último ato esperado nas circunstâncias de suas vidas: Isabelle, uma mulher no meio de uma guerra; Nicole, vítima de um profundo luto pela perda do filho; Juliette, em dúvida sobre a própria existência ao lado de um homem que já não sabe conhecer. Mulheres que também se unem pela importância das lágrimas: Isabelle, que ao chorar desperta para a crise de uma família-nação; Nicole, a quem somente o pranto provocaria uma última e necessária catarse; Juliette, que por uma lágrima revela o abismo, expande a fissura, rompendo com todas as perspectivas de um estado de ser narrativo.

O lugar dramático desses filmes não se ergue de outro modo senão pela figuração da ausência, pela incerteza do movimento que delimita o início e o fim de cada um deles. Tanto Isabelle quanto Nicole são postas em cena após o acontecimento dramático central de suas novas vidas, infilmável, e se Juliette não sofre da mesma posição na abertura de Cópia Fiel, é porque veremos no decorrer do filme uma definitiva neutralização do drama (a acção dos gregos), especificamente após sua lágrima, seu instante-já.

Pois quais seriam as possibilidades para a sobrevivência do drama na contemporaneidade senão através dos recursos próprios à ilusão? Falsificar o mundo, maquiá-lo, ainda é uma das maneiras de abri-lo ao indivíduo humano e identificar nele um espaço maior do que o reduzido por sua aparência. Ficcionalizamos verdades para que alguma delas se prove concreta, fingimos, alteramos determinadas formas pois somente sob a ordem da diferença a matéria pode ser plenamente experimentada. Para as mulheres acima, não importam as circunstâncias, sempre será preciso encontrar o tempo para o batom (que não se denote ser esta uma prerrogativa do Feminino), assim como para a representação do mundo sempre será imperativo o lugar ao drama.

Situar a permanência da narrativa a partir de mulheres que não só interpretam, mas que são em si mesmas uma face do cinema, me tem sido uma possibilidade de compreender melhor algumas inquietações que levam determinados filmes a sempre procurar a mais eficiente forma de eternizá-las. Nos fios de cabelo ao vento de Isabelle, no rigoroso corte sobre o corpo de Nicole para um flashback ou no sutiã arrancado por Juliette para um maior conforto, há algumas variáveis que continuam fazendo da mulher filmada um ente de revelação e encontro para o olhar cinéfilo. E se há verdades que só pertencem ao Feminino dentro do registro cinematográfico, que somente por ele podem vir à luz e dar origem ao movimento desejado, é porque, como diria Truffaut, um sutiã não mente.

terça-feira, 12 de julho de 2011

O IMPOSSÍVEL TEMPO PRESENTE















O Vento da Noite, Philippe Garrel, 1999.

segunda-feira, 4 de julho de 2011

MILDRED PIERCE



Voltamos com mais uma edição de Filme em foco. Nela, trazemos algumas questões particularmente curiosas, que provavelmente norteiam a quebra de uma certa sequência imposta pelo nome desta seção do Filmologia: o que é que faz de um filme, um filme? É somente este tipo de expressão o que acaba por nos abarcar em sua intensidade legalizada de sentimentos? Um filme é aquela obra concebida para ser exibida apenas numa sala de cinema, espaço milagroso, mas delimitado? “Filme” é uma palavra adequada aos “filmes”? Depois da sugestão de Rodrigo Almeida para empreendermos um olhar curioso sobre essa deslumbrante obra de Todd Haynes produzida para a HBO, ficamos entrelaçados ao poderoso e reorganizado curto-circuito do mais puro melodrama, e ainda, da mais pura encenação dramática, algo que eventualmente sentimos falta de evidência no cinema norte-americano talvez desde Douglas Sirk. Não se trata de uma forma apropriada de se “fazer televisão”, mas de (re)constituir o poder de uma obra que, para além de qualquer formato, é de extrema profusão de sentimentos que extrapolam as composições de seus expressivos quadros e luzes, mas que nascem, entretanto, aí. O que é um filme? É o que nos convulsiona, pois, e essa é apenas uma das bilhões de respostas possíveis a essa questão. Se é que tais respostas precisem existir de fato.


ACESSE AQUI