quinta-feira, 29 de outubro de 2009

UMA FRONTEIRA PARA O NADA


O Deserto dos Tártaros, Valerio Zurlini, 1976.

Simeon: Vê-se bem o deserto apenas do posto de vigia.

Drogo: Mas o que se vê?

Simeon: Pedras...
Areia...
Poeira...
E quase sempre nevoeiro.

Drogo: Mas para Norte, mais longe, talvez se veja alguma coisa, não?

Simeon: Nada mais que nevoeiro.
Verão e inverno...
Inverno e verão...
Apesar disso, há quem afirme ter visto alguns cavaleiros em cavalos brancos.

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

INABITUAL

No romance inicial, os objetos que serviam de apoio à intriga desapareciam completamente para deixar avultar apenas o seu significado: a cadeira vazia só queria dizer uma ausência ou uma espera; a mão sobre o ombro, um sinal de simpatia; as grades da janela, a impossibilidade de sair... E eis que agora se a cadeira, o movimento da mão, a forma das grades. O seu significado continua evidente, mas, em vez de absorver a nossa atenção, é como dado a mais; mesmo em demasia, pois o que nos atinge, o que subsiste na memória, o que aparece como essencial e irredutível a vagas noções mentais, são os próprios gestos, os objetos, as deslocações e os contornos, aos quais a imagem restituiu de uma só vez (involuntariamente) a sua realidade.

Pode parecer estranho que estes fragmentos de realidade bruta, que a narrativa cinematográfica naturalmente não pode deixar de nos dar a conhecer, nos impressionem tanto, enquanto cenas idênticas da vida corrente não bastariam para nos abrir os olhos. Com efeito, tudo se passa como se as convenções da fotografia (as duas dimensões, o preto e branco, o enquadramento, as diferenças de escala entre os planos) contribuíssem para nos libertar das nossas próprias convenções. O aspecto um pouco fora do habitual deste mundo reproduzido revela-nos, ao mesmo tempo, o caráter inabitual do mundo que nos rodeia: ainda inabitual na medida em que recusa sujeitar-se aos nossos hábitos de percepção e à nossa ordem.

Alain Robbe-Grillet










Assassinato, Alfred Hitchcock, 1930.

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

PAIXÃO DE BRAVO



Paixão de Bravo, Nicholas Ray, 1952.

Novo Post no MAKING OFF.

As reflexões abaixo originaram de um diálogo com o amigo Ranieri Brandão.
Não deixem de conferir outras considerações dele, aqui.

A Cor

Um ano antes, em Horizonte de Glórias (1951) Nicholas Ray estreava um cinema factualmente colorido; mas é em Paixão de Bravo, filme abençoado pelo pequeno orçamento, que ele nos apresenta através de uma autêntica fotografia em P&B, um vigor que flerta com a essência do cinema a cores e por isso lhe revela um algo a mais. A cor em Paixão de Bravo, muito além do eficiente trabalho de um fotógrafo (Lee Garmes), encontra o lugar certo para vibrar, habitar a cena e conferir a autonomia devida aos cenários, aos personagens, ao próprio estado de espírito da imagem, permitindo uma espécie única de autonomia que o cinema encontra somente na mão de homens como Nicholas Ray. É numa cena imprevista, num rompante desses que se marcam a fogo em nossa memória, que Susan Hayward penetra a imagem em seu estonteante vestido preto, segundo ela “o único decente para sair”. Talvez o cinema nunca tenha gerado um preto tão cheio de cor, tão reluzente e potente, sem dever nada ao inesquecível vermelho de Bette Davis ou o lilás de Natalie Wood, em seus vestidos antológicos, cinematográficos por excelência. Na verdade, se com Bette e Natalie somos conduzidos ao recôndito de suas personalidades através de cores vivas, pela aliança simbólica da cor e suas associações conceituais, em Susan o preto faz muito mais do que expressar um caráter individual, pois ele se impregna para além do corpo feminino, absorvendo o erotismo selvagem da cena e contaminando todo o espaço com outra espécie de selvageria, mais bruta, próxima do irracional, apaixonante. É com o preto que Susan poderá enfim enfrentar o mundo fantástico que Paixão de Bravo nos apresenta e nos convida incessantemente a participar e amar; um mundo sem rédeas, onde as mulheres são laçadas como éguas, mordem os seus machos para se acasalar e são marcadas no traseiro; onde os homens, para serem bravos, fecham os olhos aos riscos e entregam-se de corpo e alma ao erro, como touros raivosos, jamais rendidos. Diante disso, somos liberados para sentir em Nicholas Ray uma factualidade da cor que também é liberada de vínculos externos, num P&B que colore mais que tudo a alma de uma arte, e que exemplifica o que um dia seria tão belamente refletido por Tarkovski: “Por mais estranho que pareça, embora o mundo seja colorido, a imagem em preto e branco aproxima-se mais da verdade [...].”



A Bravura

É enquanto dividem o plano com um homem que, ao fundo, hasteia a bandeira americana, que Jeff e Wes conversam sobre o medo do peão num rodeio. O medo do ridículo. O medo diante de um público desconhecido que nunca mais será encontrado. O medo que diz respeito mesmo à existência do esteta, do cineasta que em seu filme arriscará sua vergonha, sua verdade, sua necessidade em se fazer ouvir e ver. E por que não o medo de uma nação? De um lugar que se aproximava naqueles anos dos limites da superexposição, marcando na imagem fílmica o símbolo de um orgulho, de uma coragem que no fundo nutria o mesmo medo, a mesma fragilidade primeira do próprio cinema. Sim. Nicholas Ray reconhece o poder e o perigo de ser um americano, consequentemente de lidar com uma tradição clássica desse cinema. O primeiro touro a aparecer em Paixão de Bravo, devidamente apresentado pelo locutor do torneio como um temível e selvagem espécime (brahma) de sua raça, se aproxima da câmera (nós) a uma distância ameaçadora. Sentimos seu fôlego em nossa face e imediatamente nosso coração começa a pulsar no ritmo desejado por Ray, a partir daí em plena condução de nossos sentidos até o fim da projeção. Mas o touro também suspira em seu pescoço. Quando Nicholas Ray aceita o desafio, desde seu primeiro filme (Amarga Esperança, 1948), de filmar americanos, num enredo americano, mas não exatamente como um americano faria, ele está dizendo: “Eu aceito montar no touro!” Assim, Paixão de Bravo representa a consciência do risco do ridículo, pois monta não apenas num gênero caro ao cinema da América (western), como aborda todo um imaginário de aparência quase exclusiva à cultura daquela nação. Não importa a posição final do concorrente, assim como não importará a condição em que Jeff McCloud terminará sua última prova. Nicholas Ray, ao extrair dessa brutalidade a sinceridade de uma poesia, ao conduzir seu touro/cinema com a virilidade e a delicadeza necessárias para que o tempo de montaria extrapole os limites do previsível e do suportável, conquista a posição de um autor, vence o ridículo, torna-se um bravo.



“Sujeitos Como Eu Duram Para Sempre”

Apesar de sermos tentados a uma associação rápida entre a grande frase proferida por Jeff McCloud e o próprio filme Paixão de Bravo, ou mesmo seu diretor, Nicholas Ray, não podemos pretender que a frase exista para massagear o ego de um artista que mesmo mestre, não demonstra se crer eterno. McCloud, persona-mito de um gênero, de uma geração, de uma arte, poderia muito bem ser substituído pelo igualmente mítico Robert Mitchum, que lhe encarna e se encarna para todo um sempre. E não apenas ele, mas também por Susan Hayward e Arthur Kennedy, assim como cada integrante da equipe responsável pela concepção de Paixão de Bravo. Tudo nesse filme parece aspirar à eternidade. E diante do sublime conceito, não podemos ignorar que algo eterno é algo que dispensa tanto um fim futuro como um fim inicial. Por isso não captamos a ontologia de Paixão de Bravo. Assim como é impossível resgatar o passado que não vimos dentro do filme, diante dele, somos assolados pela sensação de que há mesmo uma ausência de passado e de lugar para o próprio cinema. É inevitável assistir Paixão de Bravo e não sentir em algum momento que se está diante de um filme pela primeira vez na vida, tamanha a novidade do movimento, e do efeito causado por ele em nós. Mais do que a impressão de um P&B inédito em sentido e a certeza de que há um gênero aí contornado de forma pioneira, o que nos constrange é o amor presentificado, palpável, o pulsar de uma paixão. É assim que Paixão de Bravo nos revela – a nós, que vivemos em dias onde cineastas se proclamam os melhores do mundo – que para um filme alcançar o sempre não é preciso muito (ainda que aqui se faça mais do que o muito), pois o para sempre não é conquistado como uma medalha de rodeio, antes, ele existe e habita uma condição que é anterior, instaurando na imagem uma bravura que era, é, e para sempre será.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

ALERTA

Alerta, artista, alerta,
Não te entregues ao sono...
És refém da eternidade
E prisioneiro do tempo.

Pasternak

terça-feira, 13 de outubro de 2009

AOS VERDADEIROS MESTRES, MINHA GRATIDÃO


Clarice Lispector.


Arnold Schoenberg.


Jackson Pollock.


Alain Resnais e Alain Robbe-Grillet.

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

SESSÃO DISSENSO



Neste sábado (10), às 14h, o Cineclube Dissenso, em parceira com a Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), promove uma sessão especial com o lançamento do documentário Balsa, o primeiro média-metragem de Marcelo Pedroso. A sessão será seguida de debate aberto ao público com o diretor. A entrada é franca.

Vencedor do concurso de roteiros Ary Severo/Firmo Neto, Balsa fez sua première na I Semana dos Realizadores (ocorrida no Rio de Janeiro em setembro último). O filme busca uma escrita cinematográfica que tenta traduzir em imagens e sons sensações ligadas à lentidão e à rotina de uma balsa em Japaratinga (AL). Trata-se de uma estética que dialoga com o ideário de desdramatização do cinema, ao mesmo tempo em que busca referências na contemporaneidade pela forma de trabalhar o espaço e o tempo.

Para o lançamento do média, uma nova proposta de distribuição está sendo posta em prática e pode ser acompanhada através do blog http://www.docbalsa.blogspot.com/. O objetivo é levar o filme a outros públicos que não apenas o dos festivais de cinema: haverá lançamento tanto nos circuitos alternativos de salas quanto em DVD, cujas cópias serão distribuídas em locais como livrarias, videolocadoras, cineclubes e exibidas em escolas públicas. É nesse contexto que o filme será lançado no Dissenso.

Pedroso - Marcelo Pedroso dirigiu curtas como 15 centavos e co-dirigiu com Gabriel Mascaro o longa KFZ-1348. É um dos membros fundadores da Símio Filmes. Seu novo longa-metragem, Pacific, estréia este mês no II Janela Internacional de Cinema do Recife.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

ANTI-CINEMA

Prólogo:

Não é meu hábito vir gastar palavras com filmes que estejam em cartaz, muito menos gastar meu tempo falando de filmes ruins. Quero deixar bem claro que o presente post, como todos, é uma impressão absolutamente pessoal, de um pequeno cinéfilo decepcionado, que não agüenta mais ver o público render-se a polêmicas vazias...


Anticristo, Lars Von Trier, 2009.


"Como caíste do céu, ó estrela da manhã, filho da alva! Como foste lançado por terra, tu que debilitava as nações!
Tu dizias no teu coração: Eu subirei ao céu; acima das estrelas de Deus exaltarei o meu trono e no monte da congregação me assentarei, nas extremidades do Norte;
subirei acima das mais altas nuvens e serei semelhante ao Altíssimo.
Contudo serás precipitado para o reino dos mortos, no mais profundo do abismo.
Os que te virem te contemplarão, hão de fitar-te e dizer-te: É este o homem que fazia estremecer a terra e tremer os reinos?"

Bíblia Sagrada, Isaías 14:12-17, descrição da queda de Lúcifer.



Capítulo 1: A AMBIÇÃO

Não há dúvida que o título Anticristo chame atenção, principalmente quando inserido no espantoso cartaz, sobre a emblemática relação sexual nas raízes de uma árvore que poderia remeter à árvore do Gênesis, portadora do fruto do bem e do mal. Mas será que realmente Lars Von Trier inseriu em seu filme alguma referência ao personagem apocalíptico cristão que permita um mínimo grau de pertinência ao título?

Não consigo me desfazer da sensação de que Trier tenha recorrido à Bíblia apenas como artifício retórico, utilizando algumas figuras míticas comuns a imaginários religiosos dos mais diversos, como o jardim original, a trindade divina e a necessidade humana por uma ascendência espiritual baseada na manifestação de Deus pela materialidade e beleza da natureza. Como dito, questões que longe de filiarem-se ao cristianismo, perpassam as bases de credos das mais distintas culturas; o que me faz insistir na pergunta: no quê o filme de Trier dialoga com a figura bíblica do Anticristo?

A histeria coletiva da imprensa diante do homem Lars Von Trier no último Festival de Cannes chamou muita atenção para a entrevista onde ele se proclamou o melhor cineasta do mundo. Cá entre nós, achei essa declaração extraordinária! Acredito muito que toda pessoa, para lidar bem com seu ofício (não apenas no âmbito artístico), precisa sim esmagar sua modéstia, confiar em seu potencial e dedicar seu melhor, estando mesmo propensa a acreditar que ninguém poderia fazer seu serviço melhor que ela mesma. Mas é importante entender: essa é uma prerrogativa humana, o que me leva a admirar o homem Trier, mas não o trabalho de suas mãos. Ora, uma coisa é um homem se proclamar o melhor cineasta do mundo; suas palavras, no máximo serão lembradas como um dado curioso de sua carreira. Outra, completamente diferente, é que um filme ateste a validade de tais palavras e mais, que ele mesmo, enquanto objeto autônomo, se proclame como o melhor filme do mundo... Pois é essa a impressão que Anticristo me passa desde o início, como se suas próprias imagens e recursos técnicos repetissem em cada cena: espelho, espelho meu, existe no mundo filme mais lindo/chocante que eu?

Capítulo 2: A ESTÉTICA


A primeira cena de Anticristo, desde sua primeira imagem, é suficiente para entender a postura que Trier sustentará durante todo o filme. É evidente que a trama baseia-se numa carga emocional muito forte, protagonizada por personagens autodestruídos, que pedem uma básica identificação dramática com o público para que o enredo funcione, pelo menos é isso que se esperaria aqui. Sabemos bem que não é fácil conduzir um filme inteiro com apenas dois atores (ainda mais quando suas interpretações são tão limitadas), mas não é raro encontrar exemplos bem conseguidos de experiências que conseguiram se sustentar até mesmo com apenas um protagonista em cena. Não vou debulhar as referências porque Anticristo já fez o favor de explicitar sua intertextualidade justamente nessa maldita cena de abertura (o prólogo).

A comentada releitura de outro famoso prólogo do cinema (Inverno de Sangue em Veneza, Nicholas Roeg, 1972 – esse sim catártico) talvez tenha sido a grande culpada pelo meu instantâneo distanciamento emocional para com todo o filme de Trier. Assim como Roeg consegue em tão pouco tempo construir uma ambiência que se intensificará por toda a projeção, Trier faz o mesmo, mas substituindo o medo/paixão contagiante do primeiro por uma atmosfera de frieza calculada para não contagiar ninguém. Dizem por aí que um final ruim pode ser suficiente para destruir um grande filme; aqui, mesmo sem termos o ‘grande filme’, vemos toda uma experiência ser destruída já em sua abertura. A estética de propaganda de perfume (você brilhou com essa, Hermano) fazem do P&B e da câmera lenta de Trier, recursos que podem significar tudo, menos um cinema dramático, menos a possibilidade de uma tragédia, o que me levaria quase a perguntar: o que o filme de Trier tem a ver com cinema?

Capítulo 3: A PORNOGRAFIA

Também foi pela imprensa que o cineasta cansou de alardear estar realizando um projeto de gênero equilibrado entre o horror e o pornográfico. Mais uma vez palavras que chamam atenção, mas que não se respaldam pelo produto filmado. Assim como a emoldurada penetração do prólogo (sempre ele...) não tem nada a ver com o cinema pornográfico, as cenas de tortura e de mutilações que recheiam o último terço do filme não carregam nenhum resquício do ânimo que deve estar associado a uma experiência que deseje transmitir o medo.

Se há um gênero em que Anticristo possa estar inserido é unicamente o do vergonhoso filão de espécies proliferadas a partir dos Jogos Mortais, série de filmes e derivações que se baseiam no choque diante de torturas, vísceras, sangue e perversidades que sim, chegam a ser pornográficas para com o uso do suporte cinematográfico, destruindo não só um gênero e uma linguagem, mas até mesmo seu público. Infelizmente a tentativa hercúlea que Trier abraça na primeira hora do filme, de fazer sua obra ser mais do que um encadeamento de situações trash, além de não funcionar, acaba não permitindo que o filme simplesmente enverede pelo delicioso caminho que também pode ser trilhado por um cinema trash.

O que fica é um enorme desequilíbrio de gêneros, assim como uma insegurança sensível do cineasta diante do objeto que carrega nas mãos. E mesmo reconhecendo que o último terço do filme funciona e impressiona, custo a acreditar que eu vá me lembrar de tudo aquilo daqui a alguns dias, o que justifica a urgência de minhas palavras e termina confirmando o interesse de Trier pelo pornográfico, afinal, Anticristo não termina sendo mais do que uma gozada rápida e desapaixonada, um esporro de sangue indolor e patético.

Capítulo 4: A HOMENAGEM

Eu já estava até simpatizando com o filme. Ora bolas, o final é bem curioso, bastante legal e bonito, quando de repente surge o letreiro: DEDICADO A ANDREI TARKOVSKI... E todas as minhas esperanças são mais uma vez destruídas... Eu poderia falar um bocado sobre isso, mas como o post já está grande e cansei de reviver o desgosto de assistir Anticristo, serei breve.

Se Trier pretendia que Anticristo partilhasse semelhanças com o cinema do mestre russo, deveria ter feito um pouco mais do que imitar seus cenários e recriar suspensões gravitacionais com toscos recursos digitais. Ele precisaria ter entendido que o cristianismo para Tarkovski é mais do que uma âncora narrativa, pois nele reverbera a essência de uma motivação maior, de uma arte que não pretende impressionar, mas sim expressar e contaminar seu público com uma espiritualidade latente; ele deveria ter feito a lição de simplesmente visitar ou revisitar a obra do mestre e constatar que a linguagem do cinema está muito além da beleza publicitária, que a verdadeira estética é capaz de anestesiar com pouco, com o mínimo, com uma simplicidade que emana naturalmente, sem se deixar perceber o manipular dos meios; ele poderia ter ao menos respeitado a memória de um homem que entendeu sua arte como poucos, poupando a menção de seu nome em vão, livrando-nos de uma heresia final contra o próprio cinema.



Epílogo:

Não tenho dúvidas que Lúcifer seria o título mais apropriado para o novo filme de Trier (uma bela e reluzente carcaça a esconder um duvidoso caráter). Só não digo que também seria um adequado vocativo para o próprio cineasta porque provavelmente isso o agradaria. Para ele, deixo apenas a pergunta divina:

É este o homem que fazia estremecer a terra e tremer os reinos?

terça-feira, 6 de outubro de 2009

SOMOS FEITOS DE MEDO


Entardecer, Angela Schanelec, 2007.

FRITZ: Não acho que medo seja algo para se envergonhar.
Nada é mais fácil de se entender do que o medo.
Somos mais ou menos feitos de medo.
Não só, claro, mas em parte.
Você não acha?

AGNES: Feitos de medo?

FRITZ: Talvez eu esteja exagerando, mas...
Às vezes não sinto nada além de medo.

AGNES: Medo de quê?

FRITZ: De quê?
De estar desperdiçando minha vida,
De não ser capaz de aceitar a dádiva de viver.
Medo do fracasso, de ser inútil, de tudo ter sido em vão.

domingo, 4 de outubro de 2009

O CINEMA E SEUS MEDOS


No Silêncio das Trevas, Robert Siodmak, 1945.

Novo post no MAKING OFF.

Há um assassino à solta. Um psicopata livrando-se de jovens mulheres que carregam em comum algum tipo de deficiência. Helen, criada na mansão dos Warren, carrega consigo um trauma que a emudeceu desde a infância. Isso a torna um alvo fácil, e só lhe resta uma noite para fugir e sobreviver...

Não é por acaso que Robert Siodmak abre No Silêncio das Trevas com um assassinato em pleno prédio onde são exibidos filmes mudos para a população local. O episódio, magnificamente filmado, muito mais do que exibir-se como um arrojado exercício metalingüístico, termina por revelar desde o início o interesse de Siodmak em aproximar-se da essência do cinema mudo, retornar a um momento da sétima arte que não pode morrer, pois carrega em si um potencial expressivo sem paralelos, agônico, em condições de se insistir vivo e com um longo fôlego.

A tradução nacional para o título deste filme (no original The Spiral Staircase), num raro lampejo de genialidade, condensa em seus dois conceitos uma forte oposição aos elementos que dão vida ao movimento cinematográfico: o Som e a Luz. Ainda que um cinema seja mudo, é impossível negar o poder de sugestão de um efeito sonoro, a capacidade que uma ambiência visualmente bem construída tem de evocar o domínio dos ruídos e das vozes, das melodias e até das pausas; assim como é indissociável a relação entre a imagem projetada e a própria luz, ou ausência dela, pois somente a partir desse binômio o aparato cinematográfico poderá gerar sua realidade particular. Quando Siodmak propõe a manipulação exatamente dos conceitos contrários – o silêncio e a escuridão – está na verdade, lidando com um medo que diz respeito ao próprio cinema, o medo de um desaparecimento, a constatação da evanescência da própria imagem fílmica, sua condição materialmente finita, pois num nível de distinta realidade.

É através de uma certeza, da inabalável convicção de que o cinema pode vencer tais medos, que o inventivo cineasta constrói esta impressionante jogatina, abandonando seus personagens a um majestoso cenário que servirá tão somente a sua câmera, a seu desejo de provocar, de ameaçar, de inflamar um suspense que beira mesmo o pânico, tamanha a magnitude de sua crueldade. A câmera deste filme, semelhantemente ao grande cinema mudo, almeja executar um som que está além do que é verbalizado pelos atores, pois aqui, muito mais do que os banais diálogos, são os ‘ruídos inaudíveis’ quem mais gritam. É o cair da chuva, a insistência dos trovões, as incessantes rajadas de vento, toda uma natureza a comportar o isolamento da arquitetura barroca e a expressar em alto e bom tom para nossa protagonista: “Fuja daqui!” E a câmera se torna vento...

O ameaçar de uma vela apagada, pouco antes de outro assassinato, entra para sempre como um dos momentos históricos da cinematografia de horror. Quase não há mais luz para sustentar nossos olhos. Consequentemente não haverá mais como segurar uma câmera que se deixa levar pelo vento, e que desliza sinuosamente atravessando o sótão empoeirado, penetrando teias de insetos esquecidos, numa suspensão de tempo, num apagamento de espaço condizente com o estado do esmagado espírito espectador que é obrigado a acompanhar tudo imóvel, em seu silêncio, no escuro de um cinema que permanecerá para sempre mudo, mas com muito a dizer. Há medos que vivificam, outros que apagam traumas; os de Siodmak eternizam uma vitória: a permanência do bom cinema.

sábado, 3 de outubro de 2009

UM CINEMA SEM INOCÊNCIAS


O Outro Homem, Carol Reed, 1953.

Novo post no MAKING OFF.

Ao visitar seu irmão, numa Berlim que sobrevive ao recente drama da Grande Guerra, Susanne termina envolvida numa complexa trama de espionagem, onde conhece o misterioso Ivo Kern. Também sobrevivente do conflito armado, Ivo é um homem que enveredou pelo obscuro caminho da criminalidade, perdendo toda a fé no humano, no senso de justiça ou mesmo num gesto de perdão. Sua aproximação com Susanne abalará suas convicções, fazendo-o perceber que ainda é possível viver um sentimento verdadeiro.

Mas será o amor capaz de instaurar a esperança de uma redenção?



Desde o final da Segunda Guerra, Carol Reed se especializou na elaboração de cuidadosos suspenses, muito próximos entre si por características centrais ao enredo e à investigação dos personagens como pela aposta num estilo próprio muito forte e facilmente identificável. O Outro Homem, dentro de sua carreira, destaca-se como uma obra em plena coerência com seu imaginário particular, mas também como um passo adiante, um novo olhar com perspectivas diversas dos feitos anteriores. Ao mesmo tempo em que enxergamos variáveis já presentes em O Condenado (1947) ou O Terceiro Homem (1949), também percebemos que há um nível de desenvolvimento latente, contornando todo o trabalho visual e a psicologia das relações aí existentes.

Sem dúvida, o elemento que mais pode nos ajudar a entender essa nova postura reside na potência que se revela a personagem de Susanne (Claire Bloom), caráter ímpar em toda a filmografia do cineasta, não apenas pelo poder de sua feminilidade como pelo desdobramento que sua identidade tomará no decorrer da trama. Nunca Carol Reed tinha nos apresentado uma mulher tão singular. Seus filmes, geralmente conduzidos por homens incautos, atormentados por culpas e erros não resolvidos, culminam aqui, mesmo através de uma mulher (e talvez somente por isso), num dos casos mais viris e impetuosos de amadurecimento, de confrontação com a realidade e a aceitação de caminhos duvidosos, porém necessários. Ficamos mesmo sem palavras ao nos depararmos com tanta força diante de um ser que aceita as terríveis condições de sobrevivência, por um amor que não oferece segurança, e que muito mal se afirma como amor puro, ideal. Pois já não há lugar para inocência.



Nesse sentido, Susanne é muito próxima do pequeno Phillipe (O Ídolo Caído, 1948), menino que amargamente descobre a diferença entre a verdade e a mentira, e que para alcançar o que é verdadeiro se verá obrigado a desfazer-se de sua inocência e fragilidade. Duas cenas de O Outro Homem interligam-se para testificar a transformação de Susanne. A primeira, quando numa fuga desesperada pela madrugada nas ruínas de Berlim, vê-se confundida com uma prostituta por devassos que lhe perseguem num carro; um pouco depois, também em desespero por um escape, aceitará ser tomada como uma ‘mulher fácil’ para confundir seus perseguidores. Numa mesma alma encurralada, um confronto de dois pólos. No fingimento de Susanne, uma chave para todo o cinema do próprio Reed.

Há muito Reed também já tinha aprendido seus truques. Revestir narrativas com mirabolantes reviravoltas, impressionantes cenas de ação física e humor inusitado, é coisa típica no cinema em jogo. E é muito bom constatar mais uma vez que a própria condição narrativa do cinema de Reed constitui-se como uma exuberante roupagem para a elaboração meticulosa de sua linguagem. Em O Outro Homem, assim como nos filmes anteriores, também encontraremos a tortuosidade dos ângulos, a simbiose entre personagens e espaços, mas teremos mais. Talvez porque o próprio poder simbólico da cidade em ruínas, comparável somente aos esgotos de O Terceiro Homem, vem representar não só a inquietação de um suposto amor ou a desintegração de uma alma perdida (Ivo Kern/James Mason), mas desafiar a própria razão de ser do cinema. Sob essa perspectiva, Carol Reed dá um passo adiante não apenas em sua carreira, mas através dela auxilia o próprio cinema a mover-se de lugar, de sua segurança clássica, da certeza de uma imagem. O novo lugar do cinema, movediço e incerto, também já não encontrará espaço para inocências e esperanças vãs, pois talvez a única esperança seja fingir. Não fingir para fugir. Mas para enfim viver.