sexta-feira, 14 de maio de 2010

OS AMANTES DE MONTPARNASSE


Os Amantes de Montparnasse, Jacques Becker, 1958.

Novo post no MAKING OFF.


Os Amantes de Montparnasse, dentre as incontáveis referências diretas e indiretas ao universo das artes plásticas, lembra-nos que Van Gogh afirmou preferir pintar os olhos dos homens à suntuosidade das catedrais. Modigliani (1884-1920), o protagonista aqui biografado, numa das observações do roteiro, também coloca que a possibilidade de pintar o mundo concretiza-se no simples ato de desenhar o rosto da mulher amada. Na mesma escala de sensibilidade situa-se o cinema de Jacques Becker; cineasta que consegue no tratamento de um personagem abarcar o complexo humano ao nível do essencial, que extrai da narrativa psicológica uma força tamanha, dando a ver o abstrato que compõe os sentimentos e paixões, que logra num detalhe de cenário, na intensidade de uma luz, na amplitude de um close-up, a totalidade do mundo, um universo próprio de limites invisíveis, mas quase palpáveis.

Sobre Montparnasse, Godard afirmou: “Não é um filme, é a descrição do medo de fazer um filme.” Um medo humano. Medo que desloca a posição romântica do autor e que se permite entrever na materialidade do filme-objeto, testificando que uma obra sobre o medo, significa, antes de tudo, uma obra sobre o artístico. As incertezas de Modigliani a respeito das reações do mundo (o retorno do amor, o retorno financeiro, o retorno do reconhecimento de seu talento), convergem ao ponto primeiro de reação da vida na maneira como a arte enfrenta o último retorno: a morte. Nesse sentido, a morte de Max Öphuls, cineasta que originalmente conceberia Os Amantes de Montparnasse (atrasado sempre por questões de produção e pela maneira que esta costuma enxergar um filme como um dado estatístico dentro do orçamento), torna-se uma espécie de emblema, como se parte fizesse do núcleo narrativo desenvolvido por um Becker que trabalha seu filme à beira da morte (e que realmente morreria em apenas dois anos), inquieto, angustiado, elegante, lírico, nervoso, atormentado, para ficarmos apenas nos adjetivos que Jean Renoir lhe dedicou quando de sua colaboração como diretor assistente (além do suporte técnico, Becker também figurou diversos filmes do mestre francês).

Não por acaso o próprio Modigliani reconhece estar sendo abandonado pela vida, numa encarnação desesperada de Gérard Philippe, acentuada pela mansidão de Jeanne (Anouk Aimée num momento de beleza digno da Musa). Desespero que perpassa cada detalhe de encenação, cada dificuldade enfrentada e sublimada pela irreversível convicção que o filme insinua, num crescendo agônico, da inevitabilidade da morte. Pois falar de medo é falar de arte, assim como fazer arte é morrer.

A verdade dos olhos vazios, típica deste pintor – que recorria ao signo das máscaras em seus desenhos, esticando os corpos retratados em medidas muito singulares –, é captada por Becker tanto na fixidez dos extraordinários rostos do elenco como na maneira que ele os faz permanecer em quadro mesmo após sua ausência. O reencontro de Modi e Jeanne, por exemplo, ao terminar numa fusão que substitui os corpos pelo céu, na verdade, não se deixa terminar; como se o afastamento dos corpos pela imagem não pudesse excluí-los, diluindo a ausência aparente de maneira especular à condição primeira do objeto de arte, de fazer viver aquilo que já se foi, ou que talvez nunca tenha sido para além da obra.

Mais do que um filme sobre arte, Os Amantes de Montparnasse, no tratamento que dá ao amor e à morte (talvez os mais caros entre os temas artísticos) sobrevive naquilo que vive, que emana e apreende da vida. E justamente por nem todos os filmes que se baseiam na vida serem filmes sobre vida, o feito de Becker amplia o próprio conceito de escrita (grafia) da vida (bio), na maneira como ele é habitualmente tomado pelo cinema. Vida, Amor e Morte: núcleos indissociáveis de uma mesma dimensão; mais do que tudo: indissociáveis da Arte, do Cinema.

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