sábado, 19 de setembro de 2009

NÃO CONFIEM DEMAIS...

Ah, meus senhores, não confiem demais! Basta apenas um sopro para levar embora essa realidade! Não vêem que ela muda dentro de vocês continuamente? Muda assim que se começa a ver, a ouvir e a pensar um tantinho diferentemente de antes; de modo que, o que antes lhes parecia ser a realidade, agora percebem que era uma ilusão. Mas será que há outra realidade fora dessa ilusão?
Luigi Pirandello



Um Retrato de Mulher, Fritz Lang, 1944.

A ambigüidade.

Uma das maiores características do cinema Noir. Seja pelo caráter de seus personagens ou nas ações que eles provocam, a ambigüidade é o núcleo de toda as narrativas desse escorregadio estilo cinematográfico. E é através dela que pelo Noir tocamos no núcleo do que se entende por intenção artística, sempre imbuída de uma abertura que não permite a certeza pelo certo ou o errado, o direito ou o avesso, a verdade ou a ilusão. No Noir, tais contornos se diluem.

As inquietações de Pirandello, homem que externou como poucos o desespero pela incerteza da arte, ao se dirigirem àquilo que move um objeto estético, alcançam muito apropriadamente o interesse do Noir, e porque não afirmarmos, o universo específico de Um Retrato de Mulher, filme que centraliza diversos dos aspectos do gênero, sendo capaz de subsistir como um referente ímpar do mesmo.

O filme de Fritz Lang (autor de quem venho me aproximando com mais intimidade e que tem se revelado uma verdadeira mina de ouro para se entender o Noir) é impulsionado por um irresistível ponto de partida: a paixão de um homem por uma obra de arte em que figura uma belíssima mulher e seu conseqüente encantamento com a modelo que inspirou o retrato. Desde o início fica estabelecido o domínio da ilusão, do amor não pela carne, mas pela imagem desta; do fascínio não pela realidade, mas pela verdade que sua representação origina.

É a partir desse pathos que seremos conduzidos a uma intrincada teia que culminará num crime. Mas não é exatamente no enredo que eu pretendo me fixar aqui, pois ele deve ser bem guardado para os que escolherem ser cúmplices de Lang. O que me interessa, na verdade, é destacar alguns elementos que justificam o lugar de Um Retrato de Mulher, não apenas como exemplo maior do Noir, mas como catalisador de questões centrais ao obscuro lado ilusório da arte.



O Ângulo acima, pelo cenário que abriga o momento do crime, indica algumas recorrências estruturais da própria diegese filmada. Aliás, não posso conter o espanto diante da construção espacial que Lang confere à totalidade dessa obra, que eu não poderia jamais conseguir sintetizar em tão poucas palavras (nem mesmo em muitas...)

Primeiramente, numa leitura que almeja pelo que nos é mais próximo dentro da imagem, vemos a averiguação do corpo abatido, a verificação de que há realmente uma passagem da morte nesse lugar. Muito mais do que o próprio ato sobre o cadáver, vemos o reflexo direto no espelho em frente do vulnerável professor apaixonado, que por sua paixão nos parece inocente, um ser deslocado no lugar e na hora errados. É a especularidade daí surgida que nos leva a perceber com maior ênfase o labiríntico e sedutor contorno da grande lareira que emoldura toda a situação. Figura (labiríntica) que não abandonará a visualidade até o final do filme e que concentrará em si, muitos dos significados enganosos e ambíguos que nos envolverão a partir daí. Por fim, na extremidade da imagem, a sobrevivência da mulher apavorada, paralisada não mais para inspirar uma pintura, mas para inspirar em nós o mais profundo medo pelas conseqüências do assassinato.

É engraçado, cruelmente engraçado, como a presença da mulher orienta toda nossa emoção no decorrer da intriga. Alguns minutos antes dessa cena, a vemos entrar nesse ambiente pela primeira vez, contornando toda a dimensão da sala para acender continuamente três abajures que iluminarão o lugar (nenhum ângulo daria conta do poder que sua presença emana ao movimentar-se pelo cenário). Agora, passado o momento da violência, ela permanece acuada, impotente, cedendo ao próprio espaço o poder que outrora pertenceu ao seu corpo. E é dessa forma que seremos conduzidos até a última imagem de Um Retrato de Mulher, num desequilíbrio entre os corpos e os soberbos espaços Languianos, desequilíbrio especular à própria alma de seus personagens, que pendem entre o crime e o castigo, sem nenhuma esperança de inocência.

O labirinto da imagem, por nunca mostrar seu início e seu fim, ou seja, o ponto de contato entre o chão e a lareira, centraliza toda a configuração narrativa de Um Retrato de Mulher, obra que parece mesmo ser desprovida de um início e um final, já que ambos são relegados a um segundo plano diante de todo o entreato em que o filme vigorosamente se sustenta. Assim como nunca sabemos qual o caminho para o fim de um labirinto, a certeza de uma saída e de uma luz apaziguadora não é o objetivo de Fritz Lang, por mais que seu final tente nos enganar. Seus personagens, como nós, habitarão para sempre um entre-lugar que toca o sonho e o despertar, a ilusão e a realidade, comprovando a ambígua apreensão que o Noir abstrai do mundo.

Sem tirar o pé da ilusão, ancoro-me nas palavras da profª e amiga Maria do Carmo Nino, quando ela afirma que “mesmo que sem dúvida haja uma angústia do labirinto, pode-se falar também do prazer da sensação de perda. Existem labirintos que também são felizes.” O de Lang é um deles.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Algo para mim?