sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

O MESMO OLHAR (?)



1º Ângulo: Ela desce as escadas em feminil espontaneidade, inconsciente da presença que espreita, que gruda em sua carne com o olhar. Aproveitando-se de um momento descontraído, Stephen observa sorrateiramente sua empregada, investe na escuridão, tenta forçá-la a um desejo não compartilhado. Reação. E ao lhe conter os gritos com uma força não planejada, ele a sufoca até a morte.

Não será fácil livrar-se do corpo. Mas com o auxílio do generoso irmão, consegue fazê-lo antes que sua esposa retorne.



2º Ângulo: Ela desce as escadas em feminil espontaneidade, mas já não é a primeira; agora é a esposa, observada pelo mesmo olhar, que acabou de livrar-se de um cadáver, ficando possuído pelo pânico da situação imprevista.

Não. Não é o mesmo olhar.
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Poucas vezes pude perceber dentro de um mesmo filme como um mesmo ângulo pode suscitar sentimentos adversos, contrários, em oposição plena de significado e possibilidades. Esse ponto de partida, desenvolvido durante toda a primeira parte de Maldição (1950) serve assim como um clarificador não somente da intriga que se forma (muito rapidamente), mas de todo o cinema desse homem que a cada dia me surpreende mais: Fritz Lang. Meu terceiro Lang em 2009 me indicou que 2010 será um ano precioso de aprofundamento na obra de um dos maiores criadores que o cinema teve, que infelizmente costuma ser lembrado apenas pelas obras-primas do período alemão. Conhecer a faceta noir de Lang não só tem me satisfeito pela necessidade do gênero que venho vivendo recentemente, mas tem me indicado um caminho que me afeta muito em particular por ser tão próximo e tocar tão forte naquele que é confessamente meu mestre maior: Alfred Hitchcock.

Não é segredo que Hitchcock se afirmava como um discípulo do cineasta alemão, mas enganam-se aqueles que se deixam levar por seus comentários quase exclusivamente voltados ao período expressionista de sua filmografia. Pois é, eu me enganava. Hoje, após somente três exemplares do Lang americano, fico imaginando a alegria que devia tomar o coração de Hitchc ao assistir os lançamentos daquele a quem admirava, produzidos exatamente na mesma época em que Hitchc também crescia na América. Pois há uma alegria enorme em meu coração. Afinal, deparar-me com um cineasta que produziu quase tanto como Hitchc, e principalmente, também fez do suspense o meio para sua arte e toda uma construção metafísica particular é motivo mais do que suficiente pra me fazer comemorar sem nunca dizer chega! Assim, uma observação sobre os ângulos acima é o que me permite traçar uma primeira aproximação entre os cinemas desses dois gigantes.

As imagens das pernas, apesar de serem uma o espelho da outra num plano formal, não possuem a menor semelhança naquilo que elas objetivam causar no espectador. Tanto que o próprio voyeur do filme não reage da mesma maneira. Se eu optei mostrar o contraponto do observador, não foi para lembrar de Kulechov, mas para testificar que a constituição do cinema se efetua num lugar além da imagem única, naquela espécie de entre-lugar formado pela associação de imagens que mesmo iguais manifestam uma diferença potencialmente maior.

E quando penso nessa retomada do corpo feminino, do ente aparentemente idêntico ao anterior, mas dotado de uma carga emocional absolutamente diversa; que agride a aparência da forma e lhe expõe uma fragilidade ruída pelos olhos que verdadeiramente vêem, não me vem outra coisa na cabeça:



Apesar de as primeiras e as segundas pernas não nutrirem o mesmo objetivo narrativo que a primeira e a segunda Kim Novak têm em Vertigo (1958), não posso evitar uma comparação ao refletir sobre a capacidade desses diretores de transmutarem sua matéria-prima dentro de um domínio que ultrapassa a mera narrativa e que subsiste no âmago do que costumo pensar por cinematográfico. Para permanecer em Lang, pensemos nos efeitos dos dois ângulos:

1º [Atração]: desejo involuntário, inevitável, mas permitido pelo olhar, incentivado, disposto a ignorar os limites...

2º [Repulsão]: a surpresa do susto, a ameaça do desconhecido, o olhar que também não consegue se desviar, pois agora possuído unicamente pelo medo...

Sob vários aspectos, o olhar de James Stewart sobre Novak também acompanha essa progressão, mas lá o ato manipulador por parte do olhar entra em jogo e subverte a narrativa em outra direção. De qualquer forma, a manipulação também nos interessa aqui. Afinal, até que ponto Lang e Hitchcock se permitem ir, em sua manipulação, ao instaurarem o medo como lugar central de suas narrativas? Ou melhor, quais os limites, estéticos e morais, enfrentados por eles durante o simples ato de contar uma história?

Se Hitchcock é um cineasta da crueldade, pergunto-me qual o melhor jargão para descrever Lang... Pois não consigo ver situações tão ou mais cruéis, em nenhum dos cineastas da crueldade Bazinianos, como tenho visto em Lang. Enquanto a crueldade hitchcockiana nos é servida como um grande e suculento molho, a recobrir toda a superfície extraordinariamente cuidada de cada um de seus planos, em Lang ela figura como o prato principal, como aquilo que não podemos de jeito nenhum engolir sem mastigar, sem sentir a exata consistência de seu mau.

Enfim, um e outro, em suas distintas intensidades, alcançam o raro feito de não ficar somente com o primeiro ângulo, o do desejo, aquele em que a quase totalidade dos cineastas confortavelmente se assentam, obcecados por uma manipulação que atraia, seduza, conquiste. É preciso saber repelir, oferecer um mundo que não tenha medo de incutir o medo e correr o risco de não ser desejado, ou que cruelmente seduza o olhar por aquilo que há de vil e desprezível no mundo; pois como na assertiva aristotélica, o que nos repugna, atrai.

É só uma questão de olhar.

Um comentário:

  1. Fernando,


    Estou te mandando abaixo o link de uma Tese de Doutorado, do Bertrand de Souza Lira, ligado a Universidade Federal do Rio Grande do Norte, UFRN, com o Título:

    'Luz e Sombra: uma interpretação de suas significações imaginárias nas imagens do cinema expressionista alemão e cinema noir americano', do ano de 2008, com 326 pp.

    Acho que você vai gostar do Capitulo 4 [fls. 214/291], que tece comentários sobre os filmes 'Maldição' e ‘Almas Perversas' do Lang.

    ***
    link:

    http://ftp.ufrn.br/pub/biblioteca/ext/bdtd/BertrandSL.pdf

    abrx

    mrl-x

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