domingo, 21 de fevereiro de 2010

MOISÉS E ARÃO


Moisés e Arão, Jean-Marie Straub & Danièlle Huillet, 1975.

Novo post no MAKING OFF.

Um milagre. A primeira cena do primeiro ato de Moisés e Arão pode muito bem ser considerada assim. Talvez nunca o cinema tenha dado maior prova de que, como o homem, ele também possui um espírito. E em sua vida própria, também comunga um ideal de divindade, que pode habitá-lo, comovê-lo, manifestar-se através de seu corpo: da Imagem.

Há uma espiritualidade no plano que abre sobre a cabeça de Moisés – no momento de seu chamado divino, quando ele é conclamado a libertar Israel – e que prossegue ininterruptamente em direção ao derredor, atravessando o espaço circundante e perscrutando em sua trajetória cada elemento natural disposto (vegetações, pedras, terra, formações geográficas, até o delineio da linha do horizonte, seu contato com o céu, as nuvens e tudo que compõe o mundo físico); neste plano, um dos raros momentos em que o cinema de fato se encontrou com Deus.

Em oposição à idéia rasa de que a imagem de cinema – e estética em geral – é capaz de suscitar sentimentos num espectador, Straub sempre defendeu que todo o sentimento deve estar materializado na própria imagem, permanecendo nela e evidenciando uma profundidade que não abstrai o material filmado, não se desloca dele, pois ele todo subsiste como a própria abstração e o deslocamento plenos, agora sensibilizados pela imagem. Assim, a continuidade espacial contida neste primeiro plano subverte toda expectativa de espaço e daquilo que se espera do que convencionamos chamar de movimento, para, num só fôlego, fazer do espaço a própria voz de Deus, enquanto tomamos o centro das coisas e, no lugar de Moisés, recebemos pessoalmente O Chamado. É impossível não perceber que o repouso da câmera no final da cena, diante do nublado céu rasgado e fundido pela linha dos montes terrenos, manifesta um movimento maior que o anterior (quando a câmera se movia sobre seu eixo), pois aí, o que temos, não é o hábito da impressão de movimento, mas sim a verdade do sentimento de movimento.



Moisés e Arão, muito antes do cinema de Straub & Huillet, institui-se como uma das experiências estéticas fundamentais do séc. XX, originalmente composta como ópera pelo criador do dodecafonismo, Arnold Schoenberg (1874-1951). Um dos episódios marcantes da música erudita naquele século, a ópera gerada por Schoenberg inaugura um procedimento de criação sem precedentes em toda história lírica, pois o compositor opta por suspender a tradicional submissão da música ao texto, concluindo o libreto antes da composição musical. É curiosa a maneira como Schoenberg defende o conceito de Idéia Musical, já discutido em sua produção anterior, na elaboração desta obra. Numa carta escrita ao aluno Alban Berg, em 1931, no período de composição da ópera, ele revela: “[...] isto só é possível quando temos de antemão uma idéia muita precisa, e a arte consiste não somente em manter esta visão em estado vivo, mas ainda reforçá-la, enriquecê-la e aplicá-la no decorrer da realização dos detalhes.”

É muito difícil imaginar nomes melhores que os de Straub & Huillet para um tratamento do feito de Schoenberg dentro do domínio da sétima arte. Isso porque o próprio conceito de cinema tende a ser questionado sempre que o casal decide filmar algo, em semelhança ao que o compositor se dedicou a fazer com a música – haja vista que o dodecafonismo, proveniente da atonalidade, foi o núcleo de problematização que desconstruiu toda a compreensão de princípio harmônico e melódico da música ocidental presente nos séculos anteriores. A lapidação que os cineastas fazem sobre o objeto original da ópera (importa lembrar, já lapidada a partir de outra origem, bíblica) ecoa em todo o trabalho imagético empreendido, não apenas em sua autoridade sobre elementos básicos como o espaço e o tempo, mas a respeito de condições primeiras do ser cinemático – como vimos, o movimento – que, nas mãos do casal, revelam-se ainda em mistério. O debate entre Moisés e Arão a respeito de questões fundamentais que envolvem a materialidade das formas (através dos ídolos pagãos), daquilo que pode ser visto e do que pode ser sentido, do embate original entre a Imagem e a Palavra, enfim, da própria condição de visibilidade das coisas (do Verbo, da divindade e do propósito divino), são todos problemas-chave de todo o cinema legado pelo casal.

A visão em estado vivo exigida por Schoenberg (a si próprio), em sua carta, faz aliança com o projeto dos cineastas à medida que a sua disposição primeira de filmar coaduna-se com as mesmas inquietações que Moisés e o povo de Israel encontraram para manter sua fé no Deus Invisível. As palavras de Moisés ao povo incrédulo são proferidas em tudo que Straub & Huillet filmaram, não apenas aqui, mas em toda sua vida:

Fechem os olhos. Parem de ouvir.
Pois é desta forma que devem ouvi-Lo e vê-Lo!


É isso que os cineastas pedem em cada passo de sua filmografia: esqueçam o que vocês entendem por cinema, ignorem tudo que já viram em filmes, pois é desta forma que devem chegar a Ele! A resistência de seu cinema (em referência a histórica leitura de Serge Daney ao trabalho de Straub & Huillet) é a mesma resistência de Moisés diante de um povo que não sabe crer, diante de homens que precisam ver, cheirar, tocar; homens limitados pelos sentidos, pior, homens que limitam seus sentidos e encarceram seus corpos, sacrificando-se em vão – em equivalência ao que a quase totalidade dos filmes existentes fazem com o corpo cinemático.



A última imagem de Moisés e Arão, pertencente ao Ato inacabado de Schoenberg (o compositor nunca conseguiu concluir a ópera), também possui um caráter de mistério. Nela, brevemente, e pela única vez em linguagem falada (pois foi na música que o compositor parou), temos a repreensão final de Moisés a Arão, pela sua inconseqüente atitude de construir um ídolo para o povo enquanto o profeta recebia os Mandamentos. Nela, os fatos bíblicos não são fidelizados, pois Arão recebe a culpa por falhas de Moisés (como o episódio da pedra que se torna em fonte de águas limpas), deixando a dúvida sobre o caminho que Schoenberg tomaria se tivesse concluído a ópera. Nela, uma espécie de jogo com a reprimenda de Moisés; pois assim como ele reclama a traição de Arão ao seu Deus, notamos uma traição de Schoenberg a detalhes bíblicos, assim como uma traição de Straub & Huillet ao Ato inacabado operístico, pois se ele não existe na música, para quê prová-lo no cinema?

Mas a quase traição dos cineastas – que de tão breve quase furta a existência – assim como no primeiro plano do filme, também termina por tornar-se um ato de fé, num quase milagre. O espelhamento da montanha na água em meio ao deserto (sinal de que talvez a Terra Prometida tenha sido alcançada), dá forma ao espelhamento que Straub & Huillet possibilitaram a partir de Schoenberg. Elementos de um mesmo mundo, a imagem da montanha e seu reflexo ressaltam o contorno de Moisés ao mesmo tempo em que rompem o último clamor do profeta, feito aos céus no final do segundo ato e conivente com a condição autoral de Schoenberg: “Ó Palavra, Palavra que me falta.”

Se a palavra ou a imagem não faltam ao universo de Straub & Huillet, ao contrário, o inflamam num ímpeto que destaca seus feitos acima de todas as convenções; o fazem para reclamar uma angústia muito mais profunda por parte dos cineastas. Pois neles descobrimos que cinema não é feito de imagens e palavras, não é feito de câmeras, de atores, de espaços ou iluminações. Como refletido pelo próprio Straub: “Não é com palavras poéticas que se faz poesia.” E como proferido por Arão: “O Infinito revela, portanto, não a Ele mesmo, mas o caminho à Ele.”

Em Straub & Huillet uma certeza: o caminho não falta.

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