segunda-feira, 14 de junho de 2010

A NOÇÃO DO INVISÍVEL

Um ano atrás, quando comemorei o primeiro aniversário do blog, o fiz com posts referentes ao filme Twentynine Palms, meu primeiro Bruno Dumont. Desde então assisti o restante de sua filmografia e compartilhei muitas impressões por aqui (ver marcador ao lado). É no mínimo curioso que exatamente neste segundo aniversário tenha sido exibido o mais recente filme do cineasta francês: Hadewijch (2009); no Festival Varilux, e claro, lá estava eu na primeira sessão. Minha recente viagem à Maringá foi o que me impediu de dividir a experiência imediatamente, mas eis-me aqui para cumprir o que não posso mais calar.



Sinto que o fundamental, a partir deste filme, é finalmente não estar mais lidando com uma continuidade tão evidente, tão declarada, do diretor em sua caminhada autoral. Ao reler minhas postagens antigas sobre o cinema de Dumont percebo que Hadewijch avança numa contra-mão, indo de encontro aos primeiros dias de A Vida de Jesus, para a partir dali, seguir um novo caminho. Importa esclarecer que Hadewijch é o nome de uma religiosa do séc. XII que mantinha experiências estáticas com Deus e manifestava literariamente sua fé e amor (leiam aqui um breve e belo comentário biográfico). Assim, o enredo de Dumont consiste numa atualização desta persona em uma jovem noviça que, nos dias atuais, também experimenta de uma diferenciada comunhão divina.

Como dito, a proximidade deste com o primeiro filme do cineasta já se impõe pela tematização do êxtase num domínio religioso. A fragilidade do corpo da jovem (uma naturalmente iluminada Julie Sokolowski) diante do rigor na fome de seu jejum ou do frio e da chuva, logo no início da obra, testifica uma situação equivalente a que o protagonista de A Vida de Jesus vive em seus minutos finais. Aliás, revisitando minhas reflexões diante daquele filme, encontro um trecho que merece ser revisto: “[...] a espiritualidade da obra [A Vida de Jesus] se concentra toda na própria forma final, no tratamento das imagens, na maneira como seu autor se debruça sobre o mundo e seus personagens. Apesar de toda minha fé no cinema não acredito que o olhar santificado de Dumont consiga espiritualizar qualquer um dos rapazes em jogo. Há casos em que realmente isso é possível. Como se o olhar bastasse para impregnar a imagem original de sentimentos e reações outras, mais profundas e esperançosas.”

Em Hadewijch essa ação da câmera não chega a se fazer necessária pela abertura que a própria personagem carrega em seu discurso, em suas lágrimas, em seu gozo imediato pelo que ela não pode ver, mas crê existir. Assim, aquelas constantes de Dumont (Sexo + Violência) passam agora a não mais serem vistas, apesar de permearem toda a duração do filme, num outro plano. Semelhantemente ao conceito discutido pela jovem com seus novos amigos de fé islâmica: a noção divina do invisível.

Dumont pode muito declarar aos quatro ventos sua descrença em Deus, mas nenhuma palavra sua dirá mais do que seus filmes naquilo que eles provocam de indagação ao divino. Além de estarem textualmente problematizadas, em Hadewijch, questões profundamente teológicas, as mesmas dizem respeito em igual medida a uma maneira de crer o cinema enquanto um canal de possibilidades espirituais para o homem. Ora, acompanhar um diálogo que discorre sobre a presença de Deus pela ausência, sobre sua voz revelada pelo silêncio, sobre a diversa noção de visibilidade não como constatação de algo, mas como conseqüência de sentidos anteriores, é justamente adentrar em noções de reprodutibilidade da imagem, representação do mundo, noções finalmente cinematográficas.

Num determinado momento, sem eloqüência, vemos o sol abrir-se por entre as nuvens e tocar o corpo da protagonista de maneira especial. Não há ênfase, nem vemos propriamente o sol; tudo numa duração de aproximados 5 segundos, perdidos pelo filme, mas testemunhas de imagens que podem, por si, experimentarem do êxtase. Nesta cena, ao contrário de tantas outras em que a jovem demonstra claramente ser possuída pela comunhão, não há reação ou percepção que ultrapassem a simplicidade da imagem filmada. Talvez por isso uma das mais convincentes, mais próximas de Deus.

E é num exemplo assim que sinto a contra-mão de Dumont. Pela primeira vez seu cinema não carrega o peso de uma preocupação com a sutileza ou as extravagâncias do explícito; sua nova fluência parece caminhar com maior independência, justamente por demonstrar que o material visível filmado não é exatamente o que o impulsiona, mas o que chega a incomodar. Não posso afirmar preferir a novidade, pois o tratamento anterior do cineasta, todos sabem, me agrada demais; mas também não dá pra ignorar que um novo passo foi dado, de avanço ou recuo não sei ainda, mas um passo, um deslocamento que, no mínimo, se direciona para o alto, um pouco mais perto do céu, um pouco mais consciente de Deus.


Obs: enquanto não posso rever o filme e capturar meus ângulos favoritos, os cartazes com a graça de Sokolowski têm me bastado...

Um comentário:

  1. Tudo Beleza Nando? faz tempo que não nos falamos, mas passo sempre aqui no blog, parabéns pelos 2 anos hehe

    Não conhecia esse diretor (as usual), bem interessante!

    Grande abraço!

    ResponderExcluir

Algo para mim?