quarta-feira, 7 de julho de 2010

EDVARD MÜNCH


Edvard Münch, Peter Watkins, 1974.

Novo post no MAKING OFF.

Provavelmente o melhor tom pra um texto que deseje entrar na categoria "Crítica" é um enfoque neutro, mais distanciado e imparcial. Eu partilho dessa premissa e, vocês já sabem, sempre termino escrevendo de acordo com os conformes. Mas chega um momento que não dá, ou melhor, chega um filme que não permite a desobediência aos sentidos, ao afeto deixado, e que precisa, independente de regras, se fazer ouvir e sentir por outros, tantos quanto possível.

Já não me importam as conseqüências. Pois o que ficou em mim é maior que a letra, que a reflexão, maior que a tola concentração do querer fazer direito, se o que vale agora é subverter, romper o tempo e a lógica para encontrar algo muito mais puro, mais condizente com o estar vivo. Hahaha, como acho graça no que eu conhecia por biográfico, naquilo que o cinema me vendia e vende, rotulado, algemado, aprisionado sob o nome biografia. Vida? Ora, o que sabe o cinema da vida? Qual foi a capacidade que o século XX teve de tornar sua arte-estandarte uma dimensão do viver? É triste saber da resposta. Dói. Mas hoje a tristeza não é mais solitária e definitiva, pois encontro um representante errante do biográfico que não se atém ao registro, mas o cumpre com a liberdade de uma respiração, com a necessidade dela.

Assistindo Edvard Münch percebo que o cinema ainda está aprendendo a respirar. E ai daquele que pensa ter sido o aprendizado da fala ou da coordenação motora os maiores dos primeiros desafios de se estar vivo. Antes de tudo foi preciso respirar. Mas esqueceram de avisar isso ao cinema... E por anos, décadas, muitos o puxaram pela mão, tentando fazê-lo sair do lugar, quando a verdadeira necessidade era mantê-lo onde estava, dar um tapinha nas costas e liberar os pulmões inchados e sufocados pelas belas artes. Coisa que Peter Watkins fez. Sem precisar da arrogância de muitos que fingem ignorar as contribuições que as artes plásticas, o teatro e a literatura dão ao cinema, como se confrontá-los fosse sinônimo de vanguarda. Não. Watkins usa justamente essa matéria prima comum às artes para provar que uma imagem respira, para dar vida a ela, encontrando assim uma espécie de fôlego original, verdadeiramente criador, vivo.

E a cada minuto filmado, em cada detalhe que faz o século XIX reviver não como um artefato de vitrine, mas como uma realidade encarnada e palpável, a cada encontro do meu olhar com o dos não-atores flagrados em seus trajes de época, num constrangimento mútuo, sinto a minha respiração esvair. E o sufocamento me traz um prazer que assombra. A morte e a enfermidade, constantes que acompanharam Münch desde seus primeiros anos, alcançam-me, e não posso continuar assistindo o filme senão num luto feliz. Feliz porque compartilhado pela arte. E quanto mais inspiro, na inconsciência dos outros sistemas corpóreos que insistem em funcionar conjuntamente, mais o filme se comprova orgânico, sobrepondo os tempos, os planos, as realidades de um homem que não soube viver o presente sem o fardo do passado.

É como o tempo perdido que continua lá, não mais buscado, mas perene. Numa só cena o beijo, a morte, a dor, a inspiração, a técnica, a memória, a tela realizada! Pois em cinema não posso aceitar o tempo das horas, da sucessão! Aqui o tempo é enrolado, espiralado, e o é, o sido e o será são um! Numa só imagem, numa só cor. O expressionismo dos sentimentos do pintor, sua força entre a lembrança e o esquecimento, só ganham vida em Watkins, diante dessa destruição do tempo, de seu domínio pleno. E assim como Münch ousou ferir suas telas para atingir novas texturas e tonalidades, Watkins rompe toda a constituição tradicional da montagem, sangrando a imagem, granulando-a, eternizando nela um sentimento em estado total. Cada verso lido, cada discurso proferido, até mesmo a onipresença do arriscado narrador, causam o fluxo, a continuidade, a permanência de um nível que ultrapassa a mera representação pela defesa de uma revificação, não dos fatos ocorridos com Münch, mas das emoções descobertas, gozadas, temidas, mantidas por suas telas.

E eu gozo. Pois na dimensão real do biográfico a vida em jogo também é a minha. E hoje, com os olhos finalmente abertos, consciente de que não passo de um pântano, vejo que este filme já estava em mim antes que o tocasse.

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