quarta-feira, 23 de novembro de 2011

NOS CONTORNOS DO VAZIO



[extraído de minha publicação no livro XII Estudos de Cinema e Audiovisual SOCINE – vol.2, organizado por Laura Cánepa, et al. São Paulo: Socine, 2011, p.170-179]
O deserto, região natural de difícil acesso para o habitat humano, ao contrário do imaginado, revela-se como um lugar de intenso movimento, principalmente quando é formado por solos arenosos. A incessante ação eólica sobre a areia faz com que o relevo desértico seja natural e perpetuamente renovado, gerando formações diversas a todo instante, incidindo até mesmo sobre as mais resistentes rochas, ecoando o princípio heraclitiano da água num lugar onde ela é escassa. Cenário de narrativas artísticas das mais diversas no decorrer da história, o deserto se destaca como um lugar marcado pelo vazio, adequado à reflexão como se ele mesmo se debruçasse ao pensamento, pois é inevitável que, pelo seu potencial significativo, o cenário se torne personagem da narrativa e influencie diretamente as questões levantadas na diegese em que impera.
O cinema, em pouco mais de um século, já conta com um painel particular de obras que manifestam o deserto mais do que como um lugar, atribuindo-lhe uma significação narrativo-formal que identifica a paisagem não apenas em suas possibilidades metafísicas, mas encontrando nela uma analogia para a própria constituição da linguagem cinematográfica. A imagem de cinema, formada por grãos em movimento, torna-se o lugar da reflexão do mundo, o espaço vazio a ser completado por uma realidade que é sempre nova e que ele mesmo ajuda a renovar. Não há imagem fixa. Todo e qualquer fragmento fílmico é dotado de uma dinamicidade interna que articula sua ontologia do vazio, lugar onde nada mais há do que a luz e a sombra, para originar um novo mundo em permanente transformação. Pois uma imagem nunca é a mesma em si. O tempo e o espaço cinematográficos, agora desvinculados do exterior que os gerou, configuram a imagem como um lugar de origem, como se a terra que formou o homem agora encontrasse o lugar ideal da criação.
É quando a imagem se torna areia.
Poucos lugares são capazes de abrigar uma variedade tão diversa de formas de vida como o deserto. Se nos esquecemos tão facilmente de verdades assim sobre a região é porque ela própria tem por condição ocultar tais verdades, construindo-se por uma aparência enganosa, ilusória. O deserto esconde sua vida. A existência infiltra-se sob a areia, entre as rochas, fugindo das condições climáticas e subsistindo somente por elas, surpreendendo observadores mais atentos e fazendo ver que um deserto é um lugar de plena atividade orgânica.
A associação entre cinema e deserto, pode, sob esse viés, iluminar uma característica também essencial da imagem cinematográfica. Imagem que, como a areia, subsiste pautada pelo princípio da ilusão de vida, condensando em seu interior uma pulsão nuclear criadora, mas permanecendo sempre num equilíbrio entre o real e o imaginário. Há fertilidade na imagem de cinema. Ao nos lembrarmos da força centrífuga da imagem cinematográfica, força que difere da tela pictórica por não fazer o olhar convergir apenas para o centro figurativo, mas liberá-lo para um além-tela, como se a imagem prosseguisse após suas margens, constatamos o mesmo movimento do deserto, na indefinição da fronteira, em sua capacidade de portar e afastar tipos de vida distintos, desafiando todo e qualquer ser que nele adentrar a uma adaptação que transcende o corpo.
Em Gerry (Gus Van Sant, 2002), não sabemos qual é a coisa procurada pelos jovens protagonistas, mas juntamente com eles, passamos a acreditar nela, a precisar vê-la, como se fosse necessária para a manutenção da vida não apenas dentro daquele deserto, mas além dele. E mesmo além ele vive. Impossível encerrar o filme e não carregar a sensação de que o deserto continua. Sem fim.
Quando os dois jovens se lançam ao inóspito ambiente desértico, no início de Gerry, percebemos imediatamente que não poderemos acompanhar sua jornada com os parâmetros externos àquele novo mundo desbravado, anteriores ao filme, paralelos a qualquer compreensão prévia. Todos os elementos empregados (iluminação, música, movimentos de câmera, interpretação dos atores, entre outros) indicam que o tempo deixou de ser algo em jogo para eles, os dois jovens de nomes idênticos, faces de uma mesma moeda humana. O caráter mítico de sua busca, alçado por Gus Van Sant até as últimas consequências, veste-se de um interesse que se apoia claramente numa compreensão metafísica do espaço, mas que não permite ao nível da representação um estado alegórico em suas imagens – como aquele encontrado no deserto de Zabriskie Point (Michelangelo Antonioni, 1970). Pautado por uma poética do esvaziamento, o filme de Van Sant encontra seu potencial dramático justamente no exacerbar da ausência, da falta não suprida. A plenitude pelo vazio aí proposta, longe de corresponder-se a um projeto desintegrador, niilista ou meramente conceitual, aproxima-se muito mais de uma arguição filosófica, na maneira como ela pode ser nutrida pela juventude contemporânea.
Já sabemos a importância que a obra de Van Sant possui para a representação do jovem; toda sua carreira concentra-se coerentemente nos anseios e questionamentos de uma juventude que não espera por respostas científicas, indiscutíveis, mas que encontra no desejo pela dúvida um prazer que só pode ser apreendido sensorialmente. Fazer seus protagonistas perderem-se numa jornada introspectiva retoma constantes que de certa forma já se encontravam presentes em sua filmografia pregressa (Mala noche, 1986; Garotos de programa, 1991), mas, ao mesmo tempo, pela maneira como diferencia sua abordagem estética, abre caminhos para um novo posicionamento de seu cinema diante dessa “busca do Eu”.
O deserto enquanto método. Artifício de investigação, ilusão de um infinito presente, assim o deserto se configura como um ponto de travessia do Eu, uma passagem de sua angústia rumo a efeitos que catalisem pulsões específicas do desejo. As caminhadas intermináveis de Gerry, a desarticulação dos diálogos travados entre os dois jovens, a errância a que eles se condenam perpetuamente; através disso, o caráter labiríntico do deserto devolve aos gritos dos jovens as respostas proferidas por eles mesmos (ecos), confirmando o objeto da busca como localizado dentro do Eu, pelo filme fendido e duplicado. Tudo que os dois jovens possuem na vastidão da paisagem (nome, corpo) encontra-se indiscernível pela maneira como Gus Van Sant os delimita dentro de suas imagens. Se seu deserto também pode ser vivido enquanto método, isso acontece porque em cada imagem de Gerry (importando a configuração de movimento empregada pelos recursos técnicos de filmagem – superabundância de planos-sequência, travellings) é instituída uma primeira ausência de sentido, simbólico, permitindo fazer do plano cinematográfico uma via de travessia, um espaço de passagem.
Muito mais do que (de)formar a identidade do jovem, ao confrontá-lo consigo mesmo, Van Sant o reposiciona à condição humana da decisão, da escolha, e faz isso lançando-o num espaço neutro, desprovido de subjetividades exteriores ou ideologias que interfiram no amadurecimento pedido por seu corpo. A solidão imposta aos personagens perdidos termina por fundi-los numa só carne, onde a morte, agora aceita e enfrentada como etapa natural da vida, revela-se como a única fronteira possível para o espaço devastado. Ao abandonar o deserto, o sobrevivente Gerry já não é o mesmo. Ainda que sua busca particular tenha culminado em seu próprio Eu, abrem-se novas possibilidades de se enxergar o horizonte. O deserto, que ficou pra trás, agora pode ser apreendido na totalidade do olhar, pode afirmar-se enquanto imagem, numa conquista decisiva para suas continuidades (do espaço e do sobrevivente). A transformação de sua postura, de ser observado para observador do espaço, reafirma o fim da travessia.
É quando a areia se torna imagem.

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