domingo, 14 de fevereiro de 2010

A MINHA ALMA É IRMÃ DE DEUS

Muito bem, se eu não consigo falar de outro filme que não seja A Viagem do Balão Vermelho é melhor eu falar de outra coisa que não seja filme...



Mais do que salvar meu blog do ostracismo, o novo livro de Raimundo Carrero salvou meu 2009 de uma seca literária, aquela mesma que já comentei ser proveniente do muito estudar Literatura sob o risco de perdê-la por entre tantas páginas teóricas. Há uns 5 meses atrás A Minha Alma é Irmã de Deus quebrou um jejum literário de quase 10 meses e me lembrou que o próprio ato de ler nos coloca em uma espécie outra de jejum, muito mais próxima da conotação espiritual de abstinência, de sacrifício, numa contração do indivíduo que aguça a consciência e os sentidos a uma percepção mais sensível do mundo.

Carrero, o prosador brasileiro em atividade que mais admiro, prossegue com esse livro desbravando temas que lhe são muito caros. Segundo o posfácio, o novo romance conclui a tetralogia Quarteto Áspero, composta por Maçã Agreste, Somos Pedras que se Consomem e O Amor Não Tem Bons Sentimentos. Como eu cometi a falha de não ter experimentado nenhum dos três anteriores, sendo impedido de saborear as intratextualidades ressaltadas por ele próprio, ative-me à unidade singular do texto, no prazer sempre relevante de encontrar em sua escrita um amor pelo combate com a linguagem, um prazer na busca pela palavra certa para o alcance do sentimento certo.

Como sempre (felizmente), reflexões sobre criação literária emergem no correr das páginas. De que maneira encontrar a melhor palavra? Como saber que a alcançou? Como fazê-la não se perder entre tantas? Como prosseguir sua ênfase no encadeado de outras e mais outras?... Aqui, a busca pela palavra é a busca da e pela personagem principal. Uma de suas epígrafes já anuncia a problemática:

Cinco imagens diferentes da mesma pessoa. Se fosse possível, tentaria descrever uma personagem assim, através de uma espécie de visão prismática. Por que será que não podemos ver mais de um perfil de uma só vez?
(Lawrence Durrell)


A procura do autor por sua personagem, por seu perfil, sua maneira de sentir, agir e reagir ao mundo, é o que justifica a existência do livro. Camila, que também é Raquel, Ísis, Mariana e Biba, é o ser que se descobre múltiplo e que faz de todo texto um processo de descoberta; descoberta do tempo, do espaço, do corpo, do divino, descoberta da palavra. Por isso ela não cansa de se construir, de imaginar e inventar sua própria memória, sua voz, aquilo que lhe faz ser: Às vezes desenhava a palavra no ar, com o dedo indicador, e só assim a palavra aparecia, primeiro no ar, as palavras nascem no ar, e depois na memória. (p.127)

Não é uma questão de papel. Carrero, feito Camila, caminha num terreno que não pode ser tocado com o corpo, por isso reveste sua protagonista de uma carne que lhe excede ao quase incorpóreo, indo além da habitual superfície que nos acostumamos em narrativas literárias. Sua preocupação, centrada sempre no interesse do verbo, ultrapassa a particularidade da angústia criativa procurando manter em seu texto o essencial do que ele mesmo sentiu ao ver a palavra nascer no ar, como se todo seu interesse ao escrever fosse o de registrar esse nascimento, o vir a ser da palavra, e através dele, vislumbrássemos outro de seus temas urgentes: DEUS.

Soletrou a palavra Deus – Deus. Uma palavra, foi no que pensou, é uma montanha. É preciso escalá-la, arrebentando-se para o Alto, para o Alto e para o Sagrado, e de lá, ao contrário, contemplá-la em sua face tríplice: o som, a cor e a forma. Deus. (p.70)

Trabalhar com o Verbo é aproximar-se de Deus, e Carrero sempre demonstrou saber isso e não temer as conseqüências. Pode machucar, abrir cicatrizes que de tão antigas nunca foram sentidas, pode levar a uma espécie de caos, como o que antecedeu a criação primeira, mas nunca, em hipótese alguma, deixará de portar e mesmo (re)criar a condição do Amor.

O encontro da palavra, soletrada e repetida à exaustão dentro de seu livro, é o encontro de Deus. E ele sabe que diante da renovada trindade nada resta senão contemplar. A dor de seus personagens, a presença luxuriante das ruínas do Recife, as peripécias multiformes de cada ação; é como se tudo fosse apenas Um. Pois não há alternativa: o mundo não pode ser maior que o tamanho de uma vida.

Eu só tenho essa vida. E só quero para ela o que me dá prazer. Uma vida. Tem coisa melhor do que uma vida? (p.128)

Então me lembro que não.

2 comentários:

  1. Fiquei super curiosa pra ler esse livro depois disso tudo senhor nandodijesus!!! Li pouca coisa de Raimundo, acho que só na época de vestibular e isso foi no século passado [abafa]!

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  2. Oi, Nando!

    Concordo com você, excelente leitura você faz! Depois de ler "Minha alma é irmã de Deus" a grande pergunta que me veio foi "quem somos nós?", quem é Camila? que ao mesmo tempo é tantas e não consegue ser nenhuma de verdade, morre como um ninguém, jogada pelas ruas desta cidade?
    bjos pra tu.

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