quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

CENAS SOBRE NICK

Na recente atualização feita sobre Nicholas Ray pelo site Multiplot!, tive a oportunidade de participar comentando as duas cenas que me são mais importantes dentro da carreira do cineasta. CONFIRAM NO SITE a listagem completa com 10 cenas sobre Nick. A seguir, minha colaboração:

Paixão de Bravo (1952)



Não seria por acaso que, em 1980, ao filmar seu Nick’s Movie, Wim Wenders escolheria justamente The Lusty Men como sessão a contar com a ilustre presença do já idoso cineasta Ray; ou coincidência que, especificamente, a cena clássica inserida dentro de seu novo filme (de Wenders) fosse esta: a do retorno de Robert Mitchum à casa de sua infância. O personagem de Mitchum, Jeff McCloud, protótipo mítico de todo um imaginário americano (masculino, mas também acima dos gêneros), vive nesta cena uma das mais belas reflexões sobre o tempo que o cinema já realizou. Do retorno ao lar, ou mais claramente, do desejo de um lar que os personagens do universo de Ray carregam — pois é pulsão que atravessa toda sua filmografia, de They Live By Night a The Savage Innocents, para não falar do próprio título We Can’t Go Home Again —, revela-se um desejo de posse impossível, de impotência da imagem em tornar matéria o que se perdeu no tempo, o que não se concretiza além do que uma emoção traz de abstrato. Na corrente que impede a abertura da cerca e no gesto de Mitchum ao saltá-la, a despeito dos novos donos que possam habitar a casa, Nicholas Ray fundamenta um cinema que reconhece o peso e aprisionamento do tempo para o movimento presente. Daí que na retomada da cena em Wenders, vemos um retorno do cinema ao próprio cinema, um encontro de memórias que já não significam enquanto autônomas, mas que juntas constroem novo paradigma de sobrevivência — pois esta é a luta de Mitchum em The Lusty Men e de Ray em Lightning Over Water, sobreviver ao tempo com a dignidade mínima de um homem. Voltar pra casa não é coisa que se decide pelo hábito, é força que situa a presença do mundo, a imagem do mundo e o ponto de vista que formamos. Voltemos ao cinema então. Ao lar.

Johnny Guitar (1954)



Quando nos deparamos com Joan Crawford ao piano, tocando tranquilamente enquanto um grupo de oponentes se aproxima para enforcá-la, reafirma-se a convicção de que Johnny Guitar é um genuíno exemplar de cinema surrealista. Para Nicholas Ray, parece não ter sido suficiente um contexto que, em si, já rompia todas as margens da verossimilhança — o saloon, cenário principal do filme, fica situado no meio do nada, do mais absoluto deserto e de suas ventanias implacáveis; os cowboys, como diria Truffaut, desmaiam e morrem como bailarinas, além de ‘perderem tempo’ lendo livros —, por isso ele fez questão de orquestrar cada cena de seu filme, pelos diálogos ou olhares trocados, como se colasse imagens e emoções impossíveis de se relacionar. Nada parece estar em seu lugar, ao mesmo tempo em que tudo se evidencia sob um extremo rigor lógico, intocável. O vestido branco de Crawford, que terminará em chamas após sua vertiginosa fuga ao lado de Johnny Guitar (Sterling Hayden), será apontado pelo amante enquanto elemento de perigo, por atrair os inimigos como uma lanterna; é exatamente esta a concepção da ameaça no cinema de Ray, realizador que imprime o medo nas cores de uma roupa, objeto ou cenário, que faz a matéria pulsar quase lacrimejante, melodramática. Da cena ao piano, Johnny Guitar faz-se vanguarda, arcabouço de gêneros, afronta. É a partir dela que não somente o filme em questão, mas toda a carreira de seu diretor confirmará o abandono das expectativas frágeis, do que narrativamente pode ser previsto, assumindo o caráter onírico enquanto único domínio possível de prosseguimento. “Todo homem tem o direito de ser menino”, é o que Crawford diz na pele de sua personagem Vienna, e com certeza, o cinema de Nicky, o menino que sonha, exerceu desse direito até as últimas consequências.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Algo para mim?