sexta-feira, 2 de novembro de 2012

A FEBRE DO RATO

A Febre do Rato (Cláudio Assis, 2011)

Das fodidas hipocrisias que apodrecem o olhar, precisamos nos despir para enfrentar A Febre do Rato. Público, crítica, nicho de realizadores, não há puto que saia ileso do grito de revolta dado por Cláudio Assis. E nem é preciso se preocupar com alguma postura prévia de observação (com aquela ideia imbecil de “bom, vamos nos preparar para ver um filme de fulano…”), porque A Febre, desde seus primeiros minutos, esfrega na cara de qualquer um que a gente não se prepara pra vida, que o estampado pelas imagens numa tela não é coisa que se previne, que não adianta insistir acreditando em códigos e padrões morais se a luz e a sombra estão aí para dar uma rasteira nisso tudo que convencionamos chamar de cinema, de expressão, de poesia. É, na verdade, muito propício falar por aqui, num espaço em que respiramos atualmente a busca por um grau zero da cinefilia, deste novo fôlego que Cláudio Assis traz para o audiovisual contemporâneo. 

Eu confesso, quando assisti ao filme pela primeira vez, não tive coragem de arriscar nenhuma palavra sobre a experiência que me foi impelida. Nem estaria escrevendo nada por aqui se não fosse a memorável noite vivida ontem (dia 10), na abertura do II Festival do Making Of, com um vídeo de bastidores editado especialmente para o evento (intitulado A Febre da Febre) e uma marcante presença do próprio Cláudio, emocionado em mais uma vez constatar que “a porra deu certo”. Não a porra do filme, do seu trabalho particular na direção, mas a porra de uma geração que finalmente faz nascer o olhar, de um público que justifica e pede a novidade, que também procura o seu lugar no mundo sabendo que o cinema pode compartilhar a dor de seu desamparo. Porque não estamos falando de outra coisa, ao se pensar na Febre, a não ser de uma profunda consciência do abandono humano, de uma existência que já foi esquecida por Deus, pelas leis, pela ciência, e que se debate e agoniza procurando no verso alguma margem de respiro.

Não arrisquei palavra antes porque simplesmente não achei parâmetros para fazer permanecer o filme em texto. Demorei a entender de pronto que a perspectiva crítica pedida por Cláudio não precisava ser especificamente concentrada em seu filme, por mais que ela o atravessasse. O grande problema — no geral, deste anti-ofício que é escrever sobre filmes — foi descobrir, ou mesmo compreender o que eu já carregava no íntimo, que pensar a superfície de um cinema tocado é ver refletido todo um contato emocional, uma afetividade que brota entre o corpo e a tela, entre o olho e a imagem. 

E se a cada dia eu me convenço mais de que não adianta pensar ou escrever sobre cinema sem o cuidado do gesto poético, vejo esta confirmação nas palavras do próprio Cláudio, dentro de seu Making Of, explicando para a equipe que a poesia de Zizo não está amarrada ao que ele diz ou escreve, mas se revela pelos gestos de seu corpo, do espaço que ele configura como morada, das cores que ele usa ou nega para retratar o mundo. A poesia está no mijo e na merda, no cheiro de mangue, no esgoto que se abre às ruas do Recife e no coração das autoridades que definem como criminosa a nudez de alguns atores diante de uma Assembleia Legislativa.

Se eu não posso dedicar o que se espera de um olhar crítico com o presente desabafo é porque não há expectativa que dê conta da enormidade que constitui A Febre do Rato. Meu olhar enfermo apenas reconhece que não dá mais pra abaixar a cabeça diante da ausência de movimento impregnada na produção que insiste em preencher o circuito das salas escuras. Como o sobrevivente que sou desta Febre, vivida dentro do templo Cinema São Luiz, reconheço que não se pode mais adiar a espera por um cinema que se desgarre do espetáculo, ou melhor, que reconfigure o espetáculo e faça dele não um remédio para a alma, mas o veneno que a desperte. Por um cinema que adoeça, que se espalhe como peste pelas ruas das cidades (sim, ao céu aberto, não pelos shoppings), por um cinema que faça do luto a força, da morte a vida, que berre aos ventos a urgência do novo, declaro minha luta e escrita, na certeza de que não estou sozinho. Se fazer um filme, ver um filme, escrever sobre um filme é o manifesto que nos resta, prossigamos então.

[Texto publicado no SITE FILMOLOGIA]

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