sexta-feira, 2 de novembro de 2012

O GRAU ZERO DA CINEFILIA


Ainda me lembro da ocasião em que, num diálogo com o amigo e editor Ranieri, soube de um leitor que escrevera para comentar alguns aspectos deste nosso site, elogiando, apontando equívocos, sugerindo alterações em detalhes de forma e conteúdo. No meio da conversa, o leitor abordara o design do Filmologia, os espaços brancos, vazios, a economia de cor. E numa recomendação bastante sincera, ele declarou o que até hoje me parece a melhor descrição deste espaço: pediu para tomarmos cuidado com o layout e a disposição de tudo, pois do jeito que estava, o Filmologia mais parecia um site de poesia — mais do que de cinema, ele quis dizer. Completando nesta edição a marca de 2 anos em atividade ininterrupta (algo que nos parecia inalcançável), insistimos em não abandonar o perspicaz comentário daquele leitor. Pois nada nos define melhor: o Filmologia é um site de poesia. 

É com o cuidado do verso que nos aproximamos do cinema. Com a certeza de que nas imagens que amamos pulsa uma poética responsável pelo que nos leva a discutir, refletir, perpetuar tudo o que vemos e ouvimos nas sessões compartilhadas. Nossa postura crítica, que vai muito além do exercício da escrita avaliativa, fundamenta-se na certeza de que os filmes, quaisquer que sejam, não nos pedem uma explicação, um juízo de certo/errado ou a aplicação de fórmulas que os desgastem e esvaziem — tornando-os pratos frios servidos em bandeja, como ilustrava Bazin. Vivemos os filmes nas letras porque ouvimos neles um pedido de permanência, de continuidade ao que proporcionaram nas telas; escrevemos sobre eles, os revivemos na procura da imagem síntese (procedimento que já é marca das páginas do Filmologia, pois não só de textos vive a crítica) porque acreditamos numa cinefilia que não se encerra ao fim de uma projeção, ao término de um download

Visando este prolongamento do olhar e da compreensão poética que habita o cinema, dedicamos à edição atual um reflexo da alegria que nos toma pelo aniversário de dois anos: pela primeira vez, lapidamos um Especial que homenageia dois autores, coincidentemente (mas propositalmente), ambos donos de carreiras no Cinema e na Literatura, irmãos na Imagem e no Verbo. Alain Robbe-Grillet e Marguerite Duras, expoentes do estilo literário (Nouveau Roman) que mais longe foi no diálogo com o cinematográfico, dentro do século passado, preenchem a nova edição do Filmologia com o deslumbre de seus cinemas, seus filmes que assumem, diante do mundo e da própria linguagem audiovisual, um estranhamento muito particular, muito pautado pela busca do ‘novo’. Não falamos aqui de um certo cinema literário, ou mesmo um cinema francês; o que encontramos é justamente a motivação que fez no movimento do Novo Romance um fôlego de inventividade para a representação humana. Como bem demarcou Robbe-Grillet em sua publicação de Por Um Novo Romance — compilação de textos que situava sua literatura e a de seus amigos não como fruto de uma escola, de uma cartilha, mas produto e sintoma de um tempo que ansiava pela novidade, pelo renovo das formas: “O romance [e aí acrescentamos o cinema], desde que existe, foi sempre novo.”
 
Eis a novidade que perseguimos. Este fascínio quase infantil que faz Robbe-Grillet e Duras ‘brincarem’ com o cinema, montando e remontando filmes, desdobrando as imagens em camadas abissais, revirando toda uma ética e política da expressão a favor da liberdade que nos reconecta a um estado primário das coisas, cada vez que experimentamos ou voltamos a uma de suas obras. Inspirados pela declaração de Duras sobre a procura de um estado primitivo da linguagem, junto às câmeras, o desejo por uma espécie de grau zero do cinema (este grau zero da écriture barthesiana), comemoramos nosso aniversário sob o compromisso de continuar fazendo do Filmologia um encontro de vozes, nossas, dos autores refletidos, e de vocês, que leem e justificam o nosso esforço.

Conscientes do atraso (de exato um mês) em nossa edição, esperamos compensar a espera com um trabalho que mais uma vez envolvemos de afeto, feito em dias e horas que sempre vem desafiar o tempo preciso do pensamento, este mesmo que a poesia abraça. Ampliamos o escopo, ainda, com a feliz abertura aqui iniciada pelos ‘Extracampos’, pauta alternativa, sobre temas e filmes diversos, não vinculados ao rotineiro núcleo editorial, e assinada por autores que não compõem a equipe fixa do Filmologia. Os cinco textos agrupados ao fim de nosso presente sumário iniciam um histórico de colaborações que, esperamos, se prolongue e alargue o nosso olhar. A partir daqui, contaremos sempre ao lançamento das edições, com este espaço reservado, quem sabe à espera de sua própria colaboração, leitor, que de repente se interessa em participar do Filmologia de uma forma mais direta, e não sabia como fazê-lo. Não se acanhe em nos procurar, seja para opinar, corrigir, sugerir, ou simplesmente dizer que existe e lê conosco. O cinema, que é feito de muitas vozes no tempo e no espaço, guarda semelhança com a poesia e a crítica porque, segundo Otávio paz, estas nos revelam a ‘outra voz’. É isso o que desejamos aqui. Fazer do Filmologia não apenas o nosso lugar, mas o lugar do Outro, do Novo que nos espera sempre. Vamos a eles, então.

[Editorial escrito para a Edição #10 do SITE FILMOLOGIA]

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