[extraído de minha publicação no livro XIII Estudos de Cinema e Audiovisual SOCINE – vol.1, organizado por Gustavo Souza, et al. São Paulo: Socine, 2012, p.328-340. Disponível para download em PDF]
Figura
singular da moderna cultura árabe, Nacer Khemir é um homem das artes
que, honrando o título, não dedica privilégios a códigos ou linguagens
específicas. Seu princípio criativo parte de uma herança legada pelo
saber ancestral de um povo e um lugar que encontra na narrativa a
sobrevivência, a continuidade de uma sempre renovada tradição. Poeta,
romancista, escultor, caligrafista e arabista, o tunisiano Khemir
(nascido em 1950) encontrou no cinema mais uma vertente para este
exercício que lhe é tão caro: contar histórias.
Os
três longas que compõem sua refinada carreira, conhecidos em conjunto
como formadores da “Trilogia do deserto”, abarcam um repertório de
lendas, mitos e memórias da cultura árabe clássica que, pelo dispositivo
audiovisual, são atualizados e acrescidos de novos significados e
possibilidades de interpretação; são eles: Andarilhos do deserto (1986), O colar perdido da pomba (1992) e Baba Aziz – O príncipe que contemplou sua alma (2005).
Todos
ambientados numa onipresente paisagem desértica, característica da
geografia que toma quase metade da Tunísia com o Saara, os filmes de
Nacer Khemir fazem da virtualidade da areia a base para o entrelaçamento
de suas alegorias sempre labirínticas, dos mitos que impregnam as
imagens deste cinema com um caráter pictórico bastante estranho para os
referenciais estéticos ocidentais. Do cinema enquanto parábola, Khemir
configura um interesse pela imagem que ultrapassa as fronteiras de sua
geografia para desenvolver temas de alcance universal, desprovidos de
nacionalidade, mas pautados por uma língua (árabe) que precisa
permanecer como caminho para que suas histórias não morram.
***
O jovem professor que aceitou assumir a escola de um pequeno vilarejo é a figura central em Andarilhos do deserto,
curiosamente interpretada pelo próprio Nacer Khemir. Ao afastar-se dos
seus, de seu lar e do ambiente urbano a que deveria estar acostumado,
lançando-se ao contato de uma nova cultura e meio de sobrevivência, ele
não prevê o quanto este choque lhe será definitivo, transformador,
responsável por uma nova compreensão de seu destino. No povoado,
completamente cercado pela imensidão do deserto, o professor descobre
uma prática de vida enigmática, que à primeira vista assombra pela
aparente perversidade, mas que terminará por seduzi-lo: ali, alguns
homens são levados a abandonar tudo para se dedicar a uma interminável
errância pelo deserto, motivados por algo maior que lhes pesa como uma
vocação inquestionável, incontornável. Para os que ficam, suportar o que
se assemelha a uma maldição é tudo que resta, na esperança de que os
meninos de pouca idade não sejam também escolhidos e tomados futuramente
de seu convívio.
Hospedado
no quarto de um rapaz que também desapareceu junto ao grupo de
andarilhos, o professor começa a se interessar pelas tradições e mitos
que abundam o local. Na parede junto ao seu leito, encontra registrada
uma misteriosa forma, deixada pela mão do antigo habitante do lugar;
segundo sua mãe, a única imagem que ficou dele, antes de perder-se no
deserto. Estas revelações, assim como a irresponsável leitura de um
livro proibido, são o que levam o professor a desaparecer, arrastado por
uma inominável figura feminina em direção ao deserto.
Já refletida uma potencial relação entre a areia e a imagem de cinema,
vislumbramos agora um maior aprofundamento nas conseqüências de tal
especularidade, pelo que esta associação amplia do alicerce encontrado
por ambas (a imagem e a areia) nos fundamentos do tempo e do espaço. Em
suas considerações sobre a ‘palavra profética’, uma palavra que emana
naturalmente do deserto, Maurice Blanchot orienta-nos a um pensamento
elementar àquilo que aqui traçamos; ele afirma: “O deserto ainda não é
nem o tempo, nem o espaço, mas um espaço sem lugar e um tempo sem
engendramento.” Prerrogativas que também podem, mais uma vez, ser
aplicadas ao cinema e sua constituição imagética de expressão; afinal,
como trabalhar um conceito de visualidade pautado pelo tempo e o espaço
se não assumindo uma primeira ausência destes vetores? A imagem de
cinema não pode ser simplificada a um paralelo dos elementos que lhe dão
forma, porque, muito naturalmente, ela é anterior a eles. Na imagem,
assim como no deserto, o tempo e o espaço vêm configurar uma espécie de
falta, de algo a ser completado pelo que o Movimento traz de essencial,
de mundano e orgânico. Se Blanchot identifica uma ‘existência móvel’
para aqueles que habitam no deserto – o que não podemos deixar de
associar à própria existência do cinematográfico –, é porque o
‘não-tempo’ e o ‘não-espaço’ que originam a região desértica opõem-se
diretamente a qualquer tipo de estabilidade ou fixação das formas.
Lugares de errância, a imagem e a areia dependem de um constante
deslocamento. Alterações do ser. Mobilidades.
Mas
continuemos acompanhando o teórico: “Nele [o deserto], pode-se apenas
errar, e o tempo que se passa nada deixa atrás de si, é um tempo sem
passado, sem presente, tempo de uma promessa que só é real no vazio do
céu e na esterilidade de uma terra nua (…)”. De onde começamos a
compreender a importância de tais enunciados para a experiência que
vivemos em Andarilhos do deserto. O autor prossegue: “O deserto é o fora, onde não se pode permanecer, já que estar nele é sempre já estar fora.”
Em
seu primeiro longa-metragem, Nacer Khemir desarticula o tempo da
narrativa a partir da própria areia e da relação nutrida por esta não só
com a geografia, mas com os habitantes daquele contexto, com o drama
que os aprisiona. O que fica para trás – para os andarilhos, para o
professor que desaparece, para aqueles que continuam no vilarejo – é uma
anulação temporal, uma memória avessa. Assim como Blanchot identifica
uma impossibilidade de permanência dentro do deserto, Khemir provoca algo semelhante dentro
de suas imagens, pois como ignorar sua decisão de interpretar, por si
próprio, aquele protagonista que perderá o direito de um lugar ao corpo?
Seu personagem, dos mais intensos por ele já criados, é a própria
encarnação do enigma, tanto que chega ao ponto de abandonar sua
carnalidade/materialidade para favorecer o mistério, único elemento que
adentra livremente seu filme.
É
preciso ainda considerar o caráter espiritual que atravessa o trabalho
de Khemir. Além de ser um mantenedor das tradições culturais daquele
povo à beira do esquecimento, o deserto aqui representado não abandona a
inevitável relação que toda paisagem desértica mantém com a
santificação do corpo. Daí é possível concluir que o desaparecimento do
professor se manifesta como a única maneira de confrontar alguma
sacralidade com a imagem de cinema, imagem basicamente destituída de
aura (não apenas num sentido benjaminiano), de individualidade, de
privacidade, por assim dizer. Não é da narrativa que o professor foge,
pois a procura por ele movimenta toda a parte final do filme, mas seu
apagamento se dá no cerne da própria imagem, como indica a última cena
em que vemos o personagem de Nacer Khemir: num plano fixo, o professor
se afasta, de costas, caminhando contra a câmera, na contramão de nosso
olhar, rumo ao deserto que identificamos no horizonte oposto.
***
O título O colar perdido da pomba,
que dá nome ao segundo longa de Nacer Khemir, é o mesmo de um livro
procurado pelo protagonista do filme em questão. Hassan, jovem estudante
da arte da caligrafia árabe, deseja ardentemente conhecer o significado
do amor. Junto ao aprendizado com seu mestre, passa a colecionar
palavras que representem o nobre sentimento (pois no árabe existem mais
de 60 verbetes relacionados ao amor); valorizando devidamente a
importância de sua escrita, do que pode materializar aquilo que se sente
numa expressão única, conciliadora. Como lhe ensina seu mestre: a
palavra é o elo entre o visível e o invisível.
Surpreendido
com a descoberta do fragmento de um manuscrito, Hassan sai em busca das
peças faltantes, acreditando que a página em mãos faz parte de um livro
capaz de revelar os segredos do amor. Os poderes mágicos do manuscrito
colocam-no em contato com um mundo de seres e acontecimentos
inexplicáveis, e após saber de uma estranha viagem empreendida por seu
mestre, Hassan também decide abandonar-se em meio ao deserto, numa
desesperada busca que lhe fará encontrar a princesa descrita pelo livro,
assim como o restante do próprio livro, nenhum deles suficiente para
lhe desvendar as dimensões reais do amor.
Em
entrevista, Nacer Khemir declarou: “Este mundo [árabe-islâmico] é uma
parábola real, se tomarmos a idéia de que cinema é o espaço-tempo que
está localizado entre o ponto em que estamos parados e o ponto que
estamos olhando.” É por isso que cada um dos filmes do diretor vem se
constituir enquanto representação simbólica, consciente de seus efeitos e
intencionalmente colocada a partir de uma perspectiva muito próxima da
literatura. O caráter romanesco do cinema de Khemir, longe de qualquer
relação com o tipo audiovisual americano que vemos nascer desde o cinema
mudo, vem assim revestir-se, pelo tom hierático de suas imagens, de uma
configuração íntima à parábola, gênero mui caro ao realizador.
Para
um maior esclarecimento da proposta conceitual encontrada no cinema de
Khemir – aquilo que identificamos como um Cinema-Parábola –, importa
compreender melhor o que esta forma narrativa designa desde sua
estrutura. Segundo a teoria literária, a parábola é: uma narrativa
breve, de caráter universal, amimética, onipessoal, onigeográfica e
onitemporal; identificada com o apólogo e a fábula, mas distinta destes
por ser protagonizada por seres humanos; uma “metanarrativa”, passível
de ser encaixada no corpo de um discurso mais amplo; uma estratégia
comunicativa em construção; uma composição textual de fácil compreensão,
oferecendo resposta imediata ao estímulo dado; dotada da intenção de
provocar emoções no interlocutor, induzindo-o a tomar um partido
(declarado ou não) diante da situação representada, sem se dar conta de
que está julgando-se a si próprio.
Com
isso, não só identificamos uma série de características da ‘Trilogia do
deserto’, mas também adentramos numa clara percepção da maneira como
estes filmes vêm beber na tradição cultural que é herdeira das Mil e uma
noites. Na verdade, se a relação do Nacer Khemir cineasta, com sua
erudição literária, precisa ser evidenciada, ela não pode partir de
outro ponto senão desse tesouro da literatura universal, presente nos
ecos mais profundos de cada situação filmada pelo diretor.
A
formulação digressiva e fragmentária da narrativa, o encadeamento
lógico subversivo entre as cenas com a fusão de tempos díspares, o
contorno de tantos personagens lacunares e incompletos, são inúmeras as
referências nos filmes de Khemir ao imaginário literário que aqui
relacionamos. Se em O colar perdido da pomba temos um exacerbar
do interesse pela palavra, daquilo que leva o jovem caligrafista a
desacreditar de qualquer coisa que fuja ao verbo, não é somente nesse
filme em que Khemir vem assumir suas influências milenares.
Identificadas as interseções destes universos, elencamos alguns dos
elementos estruturais do Livro das mil e uma noites, refletidos por Mamede Jarouche, tradutor da obra para o português, em seu ensaio introdutório à publicação:
1)
Prólogo-moldura: quadro inicial em que se conta a ‘história das
histórias’, ou seja, os motivos por que as conversações nele contidas
foram entabuladas ou compostas; é a voz que lhes dá voz. 2) Histórias
exemplares: sua transmissão é dada pela repetição, incessantemente, no
interior de determinado quadro narrativo mais amplo; seu sentido é
moralizante e o objetivo, didático. 3) Ato narrativo noturno:
entretenimento de sentido ornamental também vinculado à transmissão de
experiência acumulada; adapta e atualiza narrativas do gênero histórico.
Cada
uma destas características literárias pode ser encontrada nos três
filmes de Nacer Khemir, manifestas explicitamente pelos enredos, de sua
estrutura à superfície das imagens. São operações narrativas que
acentuam a força dos símbolos e alegorias que neles abundam, orientando o
espectador a partir de uma distinta linearidade. Através delas (e mesmo
algumas outras que carecem de maior aprofundamento para serem
apontadas), a proposta de um Cinema-Parábola vem valorizar esta espécie
de tempo infinito da narrativa, vastidão do que não se pode terminar de
contar.
***
Todo
o cinema de Khemir nasce do deserto. Isso fica ainda melhor
representado pelo terceiro filme de sua Trilogia, que abre com os
personagens principais sobrevivendo a uma tempestade de areia,
esforçando-se por sair das entranhas da terra. Baba Aziz – O príncipe que contemplou sua alma,
narra a trajetória de um dervixe (monge de vida nômade) e sua neta
espiritual, que percorrem o deserto atrás de uma grande reunião de
dervixes que ocorre uma vez a cada trinta anos. O que os conduz é
unicamente a fé, pois nem sequer um mapa ou qualquer indicação
territorial eles possuem para chegar ao seu destino. No caminho, o velho
sábio se distrai contando estórias e ensinando lições à menina, que se
interessa profundamente por todo conhecimento transmitido.
Dentre
estas narrativas, que são entrelaçadas pelo contato com outros
viajantes, a menina se encanta particularmente por uma que descreve a
vida de um jovem e rico príncipe que, atraído por uma misteriosa gazela,
é levado a abandonar o seu privilegiado espaço para perder-se
solitariamente no deserto, onde fica a contemplar seu reflexo na
superfície de uma pequena poça d’água que não seca. Ali, ele enxerga a
própria alma, e não pode ser interrompido ou desperto do transe, sob o
risco de perdê-la. De tanto contemplá-la, ele deixa o mundo visível pelo
invisível, estando apto para tornar-se também um dervixe. Ao final do
filme, descobrimos junto com a menina, que seu avô é o protagonista da
lenda, e que toda a viagem foi um preparativo para sua morte, seu
casamento com a eternidade.
Uma característica que se amplia em Baba Aziz,
talvez o mais difícil dos filmes de Khemir a ganhar forma, em termos de
logística e produção, é o fluxo de nacionalidades que atravessa sua
narrativa e composição formal. Se o primeiro trabalho do diretor
resultava de uma parceria apenas franco-tunisiana, o terceiro já será
fruto de uma co-produção que envolve sete países distintos, acentuando o
sentido político do resguardo às línguas e tradições que nascem do
deserto e a ele parecem retornar perpetuamente. É o próprio deserto quem
primeiro justifica este caráter de produção transnacional, típico da
contemporaneidade no cinema e propício para o projeto pessoal nutrido
por Khemir. Na condição de fronteira em que a areia naturalmente se
encontra, o deserto é o lugar de contato cultural dos mais distintos
povos, situando-os dentro de uma plena igualdade que não ignora sua
especificidade e terminam assim refletidas pela imagem.
Considerando
o conceito transnacional de criação de filmes como uma das variáveis
agora presentes na Trilogia do deserto, observamos: “O
projeto do cinema transnacional rejeita totalmente essas zonas de
conforto e procura desemaranhar as maneiras não programáticas através
das quais a criação cinematográfica contemporânea opera.¹”
Do entendimento que a transcrição dá ao que chama ‘zonas de conforto’,
reside toda uma interpretação ainda formada seja pela romântica noção de
autoria ou mesmo por uma inevitável perspectiva teleológica de criação
que muitos insistem em manter diante do cinema – como da literatura. O
afastamento de uma tradição norteada por cinemas nacionais – objetivo
evidente de Nacer Khemir –, termina por compreender a prática
cinematográfica dentro de um caráter polifônico, não coesivo e
indeterminado, respeitando as condições econômicas e culturais em que se
deu a produção de um filme.
Um
entendimento transnacional “explora os mecanismos através dos quais os
fluxos culturais e ideológicos interagem uns com os outros além das
fronteiras territoriais e analisa textos cinemáticos diferentes de forma
dialógica e desterritorializada.” Ao mesmo tempo em que Baba Aziz
promove uma manutenção de tradições culturais, ele as renova,
inter-relacionando-as e confrontando a prática do cinema fora de um
sistema industrial majoritário. Não por acaso, também é própria do
deserto a noção ‘desterritorial’, constante de Nacer Khemir e de tantos
cinemas que encontram nesta paisagem o ponto de partida de suas imagens.
Tais cinemas desocupam territórios e tornam habitáveis, pelo movimento,
os lugares mais inóspitos da terra. São como espaços de luz. Imagens de
areia.
Para
Nacer Khemir, o deserto é, ao mesmo tempo, um campo literário e
abstrato. É um lugar onde o infinitamente pequeno (grão de areia) e o
infinitamente grande (vastidão do horizonte) se encontram. Segundo ele, o
deserto evoca de tal forma a língua árabe que em cada palavra subsiste
um fluxo de areia. Fonte da poesia e do amor, é neste deserto insondável
que processamos a maneira como Khemir adaptar todo um universo cultural
para a imagem de cinema, em seu movimento, dinamicidade e articulação
do tempo. Muito claramente, seria necessário um espaço maior para
aprofundar a série de questões que seus filmes problematizam, sendo
possível relacionar também os resultados de tal trilogia com o único
outro trabalho feito pelo diretor, até hoje, para cinema: o
curta-metragem O alfabeto de minha mãe (2008)².
Por enquanto, acreditamos que a abertura aqui proporcionada ao universo
deste artista, ainda pouco debatido entre nós, é mais um importante
passo não só para a divulgação de culturas específicas como para a
reflexão do próprio cinema enquanto veículo de narrativas que não podem
adormecer. Pois não se interrompe uma imagem. Não se aprisiona a areia.
1. ORTEGA, Vicente Rodriguez. Identificando o conceito de cinema transnacional. In: FRANÇA, Andréa; LOPES, Denilson. (org.) Cinema, globalização e interculturalidade. Chapecó, SC: Argos, 2010. p. 67-89.
2.
Filme participante do Jeonju Digital Project 2008, edição que investiu
no financiamento de três cineastas africanos. O trabalho conta com
direção e atuação de Nacer Khemir, trazendo no enredo uma construção
metalingüística em que o diretor aparece realizando seu ofício junto às
câmeras e editando cenas filmadas com sua mãe, uma velha contadora de
histórias que reclama a ausência do filho para morrer em paz. Filme de
memórias que atravessam as janelas da imaginação para formar um mosaico
de culturas.
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