terça-feira, 8 de dezembro de 2009

TIC-TAC + DREYER = CINEMA + VIDA


Você Deve Respeitar Sua Mulher, Carl Th. Dreyer, 1925.

Novo post no MAKING OFF.

Para mim é muito curioso, tendo provado as Páginas do Livro de Satã (1921) há pouco tempo, perceber que o último elemento disposto naquele filme é um centro motor de todo o presente Você Deve Respeitar sua Mulher. O pêndulo do relógio, em formato de coração, era o objeto que encerrava a epopéia de Satanás naquele outro ambicioso filme de Dreyer; aqui, ao contrário, ele ganha corpo em toda a duração fílmica, onipresente em um cenário restrito, com seu tic-tac devidamente narrativo, ao fundo do quadro em permanente constância. Acho inquietante, pois há um espaço considerável entre a realização desses filmes, preenchido pela existência de outras obras que não funcionam sistematicamente como um gancho entre eles. Mas é notável como ele se quis revelar pela referência, marcando a última imagem de ambos com um mesmo sinal, um mesmo lembrete do tempo que passa e não retorna, que se vai e arrasta consigo uma variedade de sentimentos invariavelmente envolvidos pela poética linguagem do coração.

O maior diferencial entre aquele filme e este, encontra na relação do tempo pelo pêndulo uma contigüidade espacial que delimita e define a capacidade de Dreyer em se experimentar num enorme leque de registros disponíveis para se trabalhar em cinema. Se no Livro de Satã, a narrativa envolve um tempo e um espaço universais, baseados no desenrolar da história humana, em Você Deve Respeitar tudo se limita ao espaço de um lar, ao tempo de uma crise, fundamentados por uma tragédia íntima que nunca deixa de partilhar interesse pelo universal, não mais pautado na história, mas no sentimento capaz de unir mais do que povos e gerações, o sentimento capaz de unir um simples homem a uma simples mulher: o amor. É bem verdade que muitos poderão apontar essa delimitação interior rígida como ancorada preguiçosamente nas possibilidades teatrais disponíveis (deliciosas), mas ninguém poderá acusar Dreyer de ‘filmar teatro’, pois pela rigidez provamos outra maneira de flexibilizar a imagem, de dilatar o registro da câmera em sensações fortes, que incomodam nossos sentidos e nos impelem a uma cruel identificação com a banalidade filmada. E é aqui que me lembro de um termo que pesou em minha breve reflexão do Livro de Satã, pois fundamental a todo cinema do mestre dinamarquês: o interesse pelo pormenor. A grandiloqüência das situações vividas naquele filme, já apreendidas por um viés subjetivo distinto da narrativa cinematográfica convencional, ganha aqui outras dimensões, ainda mais internas e particulares, condicionadas à vivência diária de qualquer indivíduo. É pela força do pormenor que Dreyer usará aqui seus elegantes e sutis movimentos de travelling para filmar a simplicidade de uma mulher preparando o desjejum de seu marido, ou outra esticando uma corda para varal de roupas; pelo mesmo pormenor veremos em plongée, pelos olhos da mulher, o marido redimido a lavar a louça... E emudecemos pela maioridade do pormenor.

Cada escolha de filmagem nesse ‘pequeno enorme lar’ torna-se uma revelação; uma luz não apenas sobre os personagens, naturalmente desenvolvidos com brilhantismo, mas sobre nós, espectadores, e em nossas emoções revolvidas pela continuidade da cotidiana trama. É muito fácil se encontrar dentro daquelas paredes, pois o que Dreyer faz com maestria é nos colocar dentro de suas imagens, dentro de seu tempo único, com movimentos únicos, movidos por um único e particular tic-tac existente somente no cinema de Dreyer. E se o tic-tac atesta uma espécie de assinatura autoral (lembremos seu assombroso ruído em A Palavra, 1955) é para que não nos esqueçamos do poder que o cinema tem de fazer o tempo durar numa dimensão paralela ao filme, muito mais próxima de nós do que o mundo circundante; dimensão que pulsa um novo batimento não apenas na imagem, mas origina um novo fundamento em nosso próprio pulsar, em nosso sentir, para sempre impregnado em nossa insistência por viver.

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