terça-feira, 8 de dezembro de 2009

UM CAMINHO PAVIMENTADO POR ESPERANÇAS MORTAS


Páginas do Livro de Satã, Carl Th. Dreyer, 1921.

Novo post no MAKING OFF.

É praticamente impossível deparar-se com um título forte como Páginas do Livro de Satã e não imaginar estar diante de um exemplar do mais pleno horror. Quando Dreyer intitulou sua ambiciosa obra com o nome de Satanás, sabia estar preparando o espírito do público em direção a inquietações das mais complexas, enraizadas em toda base da cultura ocidental como num alicerce de concreto inquebrável. Apesar de o cinema atual já ter conquistado a capacidade de representar episódios da Paixão de Cristo como numa verdadeira fábula de horror, não há como ignorar, mesmo com os olhos do século XXI, que a empreitada de Dreyer foi muito mais ousada, visionária e provocadora. Isso, porque ao invés de incentivar o caráter maligno de Satanás – pois o de Cristo não deixou de ser santificado – Dreyer virou o imaginário cristão do avesso, oferecendo ao Anjo Caído a possibilidade de uma Paixão, e o mais impressionante, sem desafiar a própria religião com entonações hereges gratuitas e de fácil polêmica.

Se o cineasta optou por sublimar o horror de seu protagonista (Satã) em narrativas que exacerbam o drama às últimas conseqüências, em nenhum momento podemos deixar de sentir o que seria o equilíbrio perfeito entre o horror e o drama, o medo e a lágrima. É inútil tentar descrever em palavras a potência emocional que cada imagem do Livro de Satã é capaz de evocar no espírito do espectador. Todos os quatro atos do filme são desenvolvidos numa plenitude de sensações que nos alterna o ânimo entre a piedade e o temor (sim, há um brilho aristotélico no olhar de Satanás), entre a paz e o desespero, a esperança e a desilusão. E quanto mais nos espantamos com as investidas de Satanás para tentar os homens, mais simpatizamos com o temível algoz, num contra-senso que intensifica a angústia e perturba nossa consciência impune.

A evidente aproximação de Dreyer com o colosso Griffithiano (Intolerância, 1916) pode até ser enxergada por alguns como uma resposta à América. Mas não partilho de tal opinião. Mesmo porque Griffith não pede respostas. O que Dreyer me parece fazer com seu épico, atravessando a história humana do ano zero (cristão) até o século XX, é um contraponto harmônico na construção de uma nova história, história de uma nova arte: uma viga a mais no alicerce do próprio cinema. Em nenhum momento Dreyer parece querer se opor à opulência de Intolerância – ainda que seja evidente o contraste –, pois ele também se vale de muitos cenários, figurantes, figurinos e todo um arsenal básico de informações visuais que contextualizem cada época encenada. A diferença de Dreyer se dá no pormenor. Na mobilidade dos corpos, na aproximação dos rostos (sim, os célebres closes do mestre passam aqui por uma primeira experimentação), nos raios de sol que atravessam a tela e lhe imprimem um calor de Verdade, que queima, e intensifica a dor. Não é possível apagar da memória o raio de sol que invade o quarto da moça deflorada, ao fim do segundo ato, talvez o mesmo que logo no início do terceiro, atravessa a guilhotina que executará Maria Antonieta. Pois é como se a aurora trouxesse consigo o horror. Na luz, o habitar do mal.

O último letreiro do filme afirma que a condenação e o juízo divino contra Satanás foram escritos com letras da eternidade. Nesse sentido, por hoje sabermos que Dreyer ocupa um lugar santificado na sétima arte, não é arbitrário constatarmos que cada uma de suas narrativas foi filmada com imagens eternas. Pois se há um nome condenado ao eterno, este nome é: DREYER.

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