“Quando se copia
um quadro de um grande artista, existe uma chance de repetir aí
o ato desse
artista e talvez de reencontrar, mesmo por acaso, o movimento exato.”
Uma
revisão crítica de Além das Nuvens pode
encontrar como ponto de partida um interminável número de questionamentos e
opiniões presentes no filme e distribuídos entre suas quatro breves histórias,
todas elas interligadas junto ao processo criativo vivido pelo personagem-cineasta
de John Malkovich, alter ego explícito do próprio Antonioni; decidimos aqui um
olhar mais atento apenas a um entreato destes enredos, independente de qualquer
vinculação narrativa com as referidas histórias.
A
frase acima citada faz parte de um diálogo que Marcello Mastroianni trava com
Jeanne Moreau enquanto pinta uma paisagem da natureza. A aparição do casal em
cena pode ser quase considerada figurante, sem nenhuma contextualização de
personagem, sem retorno ou sequer menção no decorrer do filme em questão,
ignorando apresentações, explicações ou qualquer tentativa de iluminação
simbólica. Fugaz como um pensamento é sua participação, mas tão profunda como o
mesmo é sua importância. Na verdade, a reflexão mencionada se dá após uma
irônica observação feita por Moreau, quando esta indaga o porquê de a sociedade
precisar de cópias das coisas, não apenas no caso da pintura, mas referindo-se
a todo o leque de objetos de consumo em circulação. Ao abordar a ideia da cópia
como um princípio do ato criativo, Mastroianni problematiza uma linha de
pensamento que pode nos conduzir a compreensão de não apenas os objetos de
consumo serem capazes de aprisionar a sociedade, mas de o objeto da arte em si,
ser igualmente um aprisionador do artista, por seu enfoque tão modernamente
capitalista, massificador.
Mas
as intenções de Antonioni com esta seqüência parecem ir muito além de uma
crítica ao sistema econômico vigente no mundo globalizado. O quadro que
Mastroianni pinta não é produto comercial. Sua última frase já diz: “...Eu compreendo ser engraçado senhora, não
vou vender de qualquer jeito...” Ele é mais. Transcende as necessidades
financeiras e a realidade da natureza tendo como principal significado e
objetivo proporcionar a satisfação de seu criador. Criador que é homem, que é
essência. Criador que é Deus. É notável a necessidade do artista aí exposta.
Encontrar o movimento do artista original, criador da vida natural e sensível,
é o objetivo confessado por Mastroianni para o gênio repetido, possuidor do não
mais exclusivo dom, que já pode ser encontrado num simples pintor a copiar o
quadro da vida.
Imediatamente
após esse diálogo-reflexão retornamos ao personagem de John Malkovich e sua
significação relativamente direta com a voz de Antonioni. Agora, ele se
encontra no saguão de um hotel, vagando entre um cômodo e outro como sem nada
para fazer. Admira uma pintura de paisagem que sugestivamente poderia ter sido
feita por Mastroianni, até que se depara com um quadro que retrata um homem
triste. Tenta imitar a posição do homem do quadro e acaba chamando a atenção de
uma senhora que estava lendo, sentada. Ela o ajuda em seu objetivo, o de imitar
o homem do quadro, com recomendações que direcionam: “...o outro braço por baixo... incline a cabeça pra direita... um pouco
mais triste... assim.” A senhora é novamente Jeanne Moreau.
‘É’Jeanne Moreau,
pois a essência do personagem para a narrativa total de Além das Nuvens é tão insignificante como aquele encarnado por
Mastroianni, não possuindo dependência com os enredos (estes filmes de gaveta),
nome ou funcionalidade na trama. Dessa forma, por Moreau e Mastroianni terem
sido importantes atores na carreira de Antonioni, eles revestem essa obra com
seus corpos e nomes, pois o mito que se tornaram os constitui personagens
fictícios, ampliando e intensificando a introspecção o filme propõe. Como
Mastroianni alcançou um diálogo sublime por sua simplicidade, Moreau representa
em aproximados trinta segundos de cena um dos papéis metafísicos mais
questionadores do cinema de Antonioni.
Ora,
se o simulacro já é a cópia da cópia, ou seja, aquele quadro do homem triste
que Malkovich observa, do que pode ser chamado o ato de cópia que Malkovich
executa? O quadro é o terceiro nível do mundo platônico, mas em que nível se
encaixa a imitação de Malkovich? A intensidade dessas indagações aumenta quando
Jeanne Moreau entra em cena e se desvencilha do mundo em que estava, o da
leitura (arte), para conduzir Malkovich ao mais próximo da verdade copiada.
Qual o papel de Moreau? Artista?
Certamente não. A impossibilidade na contagem dos níveis platônicos torna-se
mais perceptível se for levado em conta que todo este círculo de imitações é
exposto no universo diegético do filme de Antonioni, produto, em si, já
pertencente a um nível distanciado da verdade. Mas onde está a verdade?
O
percurso pelas histórias do filme é marcado por um elo muito tênue, por vezes
não compreendido. Mas não entender a inexistente explicação para esse conjunto
de ficções é sentir a sombra da urgência criativa. De um processo que, em Além das Nuvens, não se consuma. O alter
ego de Antonioni não realiza nenhum filme, apenas se deixa consumir pela
necessidade que antecede a criação, necessidade de um gesto, de um simples
movimento que sempre insiste em fugir. Se nos perguntamos em dado momento ‘qual
o papel de Moreau?’ sem encontrar resposta, é porque talvez ele esteja em nós.
Cabe a nós completar o que se iniciou em arte. É de nós que o movimento sai e é
para nós que ele retorna, resultando dessa troca o cinema enquanto
intermediário entre a verdade e a vida.
[texto publicado no site Multiplot!]
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