(Artigo escrito ao lado do amigo Rodrigo Almeida para o catálogo da Mostra Cinema de Garagem - também publicado no site Filmologia)
Durante a
comemoração dos dez anos de Cinema da Fundação, mal terminara a concorrida
sessão dupla de lançamento de Muro (2008), curta-metragem de Tião
premiado no Festival de Cannes, quando os presentes no tradicional reduto do
cinema pernambucano ouviram um grito estrondoso vindo da última fileira:
“finalmente minha geração foi superada. Tião, você superou a nossa geração!”. O
responsável pelo berro, que naturalmente se transformou num gesto poético, foi
ninguém menos que Cláudio Assis, acompanhado na ocasião de seu amigo e também
cineasta Lírio Ferreira. O resto da sala, ainda imóvel diante da potência vista
na tela, permanecia num devastador silêncio, não podendo saber que aquele
momento representava um passo decisivo para que novos horizontes
cinematográficos fossem testados no estado, adentrando estatutos imagéticos
diversos, buscando singularidades do dispositivo, passeando nos limites do
documentário enquanto linguagem, abrindo espaço para afetos, gêneros e
memórias, articulando pontes com diferentes cinematografias mundiais e,
especialmente, entrelaçando estética e política de maneira mais contundente. A
sessão também projetava o encontro simbólico entre o cânone do cinema
pernambucano de retomada e a subversão desse cânone, subversão maior por negar
sem negar um projeto recém estabelecido, não precisando fazer remissões ou
entrar em conflito direto, mas simplesmente dirigindo o olhar para outro
lado.
No
entanto, essa anedota serve menos para escavar um abismo ou fosso entre
duas gerações da produção audiovisual de Pernambuco e mais para pensar como o
longa Baile Perfumado realizado há quinze anos e seus sucessores diretos
Simião Martiniano – O Camelô do Cinema (1998), Clandestina Felicidade
(1999), Texas Hotel (1999), O Rap do Pequeno Príncipe Contra as Almas
Sebosas (2000), Amarelo Manga (2002), Cinema, Aspirinas e Urubus
(2005), Baixio das Bestas (2006), Árido Movie (2006) e Deserto
Feliz (2007), abarcando o trabalho de cineastas, roteiristas e
produtores como Paulo Caldas, Marcelo Gomes, Hilton Lacerda, João Vieira Jr,
Camilo Cavalcante e os já citados Cláudio Assis e Lírio Ferreira, fundamentaram
um terreno mais firme para que a geração posterior pudesse experimentar.
Afinal, existe uma ligação umbilical em termos de campo entre subversão e
cânone, o primeiro passa a existir quando o segundo demonstra o seu inevitável
cansaço, estimulando pontos transversais que terminam até por reverter a
direção da influência (ou seja, subversão influenciando o cânone). Enquanto os
mais velhos viveram a necessidade de afirmação de projeto, um cinema árido-movie
como conceito, proclamando uma juventude tardia do mangue beat
encurralada entre tradição, rebeldia e modernidade, em muitos casos visitando
espaços da cultura popular com uma intenção cosmopolita, a produção dos últimos
quatro anos atua justamente numa dispersão de projeto único como projeto: tanto
nas narrativas, como nos modelos de produção e circulação.
Portanto, caminhamos aqui pela
produção audiovisual pernambucana dos últimos quatro anos, discorrendo de forma
panorâmica e ciente da impossível totalidade, no intuito de montar ao final uma
lista comentada de doze filmes representativos do período marcado pelo trabalho
de cineastas como Marcelo Pedroso, Gabriel Mascaro,
Kleber Mendonça Filho, Leo Sette, Marcelo Lordello, Felipe Peres Calheiros, Leo
Lacca, o casal Sérgio de Oliveira e Renata Pinheiro, Daniel Aragão, o também
casal Tião e Nara Normande, Pedro Sotero, Chico Lacerda, Mariana Porto, entre
outros. Eles foram responsáveis por uma das cinematografias mais festejadas do
país, incluindo, entre curtas, médias e longas, títulos como Garotas do
Ponto de Venda (2007), Amigos de Risco (2007), Muro (2008), Solidão
Pública (2008), Sentinela (2008), KFZ – 1138 (2008), Eiffel
(2008), Décimo Segundo (2008), Ocidente (2008), O Menino
Aranha (2008), O Incrível Trem que
Alçou Vôo (2008), Nº 27 (2009), Superbarroco (2009), Cinema
Império (2009), Balsa (2009), Pacific (2009), Um Lugar ao
Sol (2009), Recife Frio (2009), Confessionário (2009), Não
me Deixe em Casa (2009), Avenida Brasília Formosa (2010), As
Aventuras de Paulo Brusky (2010), Vigias (2010), Acercadacana
(2010), Tchau e Benção (2010), A Banda (2010), Aeroporto
(2010), Pacífico (2010), Faço de Mim o Que quero (2010), Ela
Morava na Frente do Cinema (2011), Calma Monga, Calma (2010), Mens
Sana in Corpore Sano (2011), Dia Estrelado (2011), Zenaide
(2011), [Projetotorregêmeas] (2011), Projetos Vurto (a partir de
2011), Corpo Presente (2011), Praça Walt Disney (2011), A
Febre do Rato (2011), Projeto Desurbanismo (a partir de 2012) e o
ainda inédito na cidade, O Som Ao Redor (2012).
Antes de prosseguirmos, contudo, é
importante contextualizar uma cena com alguns apontamentos. Primeiro,
praticamente todos os cineastas aqui citados, desta geração e os da geração
anterior, possuem uma intensa formação cineclubista, movimento que se
fortaleceu com a criação da Federação de Cineclubes de Pernambuco em julho de
2008, mas cuja história transcorre décadas atravessando iniciativas como o Jurando
Vingar no início da década de 1990, o Barravento em meados dos anos
2000 e o Dissenso já no final dessa primeira década e ainda em
atividade. Hoje o estado conta oficialmente com 30 cineclubes em funcionamento.
Essa formação se associa à própria consolidação do Cinema da Fundação como
reduto da cinefilia e o lugar preferido dos realizadores pernambucanos para
promoverem suas criações em curtas e longas-metragens (atualmente dividindo
esse entusiasmo com o recém restaurado Cinema São Luís). Com curadoria de
Kleber Mendonça Filho e Luiz Joaquim, a salinha discreta de 196 lugares rompe
diariamente com a dependência da distribuição blockbuster da cidade,
mesmo com alguns recentes problemas técnicos no sistema de som, mantendo firme
uma política da diversidade e do cinema poliglota, além de funcionar como um
lugar de encontros, alguns dos quais silenciosos, entre pessoas que não
se conhecem, não se acenam, mas cuja co-presença no mesmo local foi percebida
algumas dezenas de vezes. Há sempre um rosto anônimo ou amigo saindo de
alguma sessão.
Naturalmente, o repertório
cinematográfico da geração mais nova está condicionado pelo acesso a filmes de diferentes lugares e épocas através da
internet, fortalecido por meio da criação de comunidades virtuais em nível
global, na ascensão da crítica cultural nesse meio e no visível aumento da
velocidade de transferência de dados. Gabriel Mascaro, por exemplo, comenta
repetidas vezes como suas melhores experiências cinematográficas foram diante
de um computador e vários dos realizadores finalizam o percurso de seus filmes,
depois de festivais e mais festivais, disponibilizando-os no ciberespaço. Além
disso, na ausência de um curso formal de cinema na cidade (o curso na UFPE foi
aprovado em 2008, com primeira turma em 2009 e poucos resultados criativos até
então) todos começaram a fazer seus primeiros filmes num modus operandi
conhecido localmente como brodagem, ou seja, sem dinheiro algum,
contando apenas com ajuda dos amigos, usando os amadores equipamentos que
tinham em mãos, seguindo numa lógica de aprender fazendo. Finalizado
esse primeiro momento, alguns deles, como o próprio Mascaro e Daniel Aragão,
envolveram-se em algumas produções profissionais da cidade para ganharem
experiência de set na produção de longas-metragens, ambos trabalhando com
Marcelo Gomes em Cinemas, Aspirinas e Urubus. Quando seus filmes foram
lançados não apenas no circuito local e participaram de vários festivais ao
redor do país e do mundo, esses jovens voltavam e ainda estão voltando não
apenas com prêmios, mas com vínculos formados, entre contatos e afetos, com
cineastas que viviam uma ansiedade estética e um contexto produtivo semelhante,
tais como o Alumbramento Filmes do Ceará e A Teia, de Minas
Gerais.
A experiência formativa num cinema
de baixíssimo orçamento, com os olhos atentos para onde poderiam enxugar gastos
de produção igualmente ampliando vislumbres estéticos, fez com que alguns
cineastas ganhassem editais para desenvolverem curtas-metragens, podendo
simular condições quase ideais de filmagem, mas voltassem ao fim do processo
com um média ou um longa prontos. É o caso do longa Vigias, de Marcelo
Lordello, vencedor do Concurso de Roteiros Rucker Vieira da Fundação Joaquim
Nabuco, assim como do média Balsa, de Marcelo Pedroso e do longa Um
Lugar ao Sol, de Gabriel Mascaro, ambos premiados com o edital Ary Severo /
Firmo Neto. No caso dos dois últimos, ainda existiu um dilema na entrega do
produto final, pois o edital pedia um curta finalizado em 35mm, mas eles tinham
entregue um média e um longa digitais. O ano de 2008 também marca o nascimento
de um novo festival na cidade do Recife, algo bastante emblemático para pensar
uma distinção entre as gerações: se a primeira edição do Cine PE aconteceu em
1997, ano do lançamento de Baile Perfumado, o Janela Internacional de
Cinema do Recife surge com ênfase na curadoria de curtas-metragens, estimulando
jovens no desenvolvimento de um pensamento crítico, trazendo trabalhos de ímpar
qualidade a nível mundial e com olhar aguçado para o escoamento da própria
produção marginal do país. A presença de realizadores de fora na cidade também
proporciona parcerias, intercâmbios e experiências sobre as inúmeras
fragilidades do circuito independente. Aliás, se falamos num cansaço de projeto
no início do texto, talvez seja importante pensar na própria falência gradual e
encolhimento do Cine PE, festival que enfrentou um protesto, no ano passado,
dos cineastas pernambucanos durante a cerimônia de encerramento. Quando o
primeiro deles ganhou um prêmio, todos os presentes subiram no palco em forma
de bolo de quinze anos e, para apontarem um desarranjo de intenções entre
realizadores e festival, abriram uma faixa com letras garrafais: “Menos
glamour, mais cinema”.
A principal reivindicação era o
respeito técnico pela projeção das obras, pois alguns filmes eram cortados
antes do final dos créditos, e, especialmente, a incorporação da mostra
exclusiva de filmes pernambucanos ao espaço do Teatro Guararapes, onde é
realizado todo o resto do festival. As demandas, nesse ano, foram atendidas; no
entanto, a iniciativa viveu sua edição mais esvaziada e ainda inchada de
cafonas homenagens, com problemas técnicos registrados todos os dias, de filme
com som prejudicado pelo equipamento até outro
exibido com os rolos trocados. Não podemos esquecer também que, apesar da
produção pernambucana figurar entre as mais representativas do país, o ainda escasso parque exibidor comercial do
estado, praticamente inexistente no interior, não incorporou minimamente o
cinema pernambucano em sua grade. Os filmes terminam restritos aos iniciados do
circuito independente, rodando o mundo em festivais, espalhando
internacionalmente uma vontade intensa de observar e lutar por uma sociedade
menos refém do urbanismo da desfaçatez, mas não estabelecendo uma
relação sensível com o público de seu próprio lugar e com o qual, em teoria,
deveriam melhor se comunicar. Os pernambucanos não conhecem o cinema de seu
estado, a garagem de produção fica no Recife, mas a plataforma de exibição está
sempre lá fora. Uma saída que vem sendo encontrada na cidade pode ser
visualizada no já citado Balsa, que apenas por ser um média já colocava
em questão seu espaço no próprio circuito alternativo, seguindo por um
lançamento que contemplou simultaneamente exibições em mostras como A Semana
dos Realizadores, espaços como Cineclubes e sessões em escolas públicas,
com presença do diretor. A distribuição contou ainda com uma tiragem de mil
DVDs, estimulando projetos posteriores e mais amadurecidos como o de Pacific,
Um Lugar ao Sol e Avenida Brasília Formosa, cada qual com a
distribuição gratuita de um DVD para pontos de exibição gratuitos, junto com
uma cartilha de cunho educativo com artigos para subvencionar o debate com o
público (depois, claro, de terem sido exibidos em alguns cinemas do país por
meio do projeto Vitrine).
Seja como for, o último pressuposto
refere-se à afirmação de uma política pública de cultura consolidada, que mudou
as condições materiais do cinema pernambucano de uma forma ampla. Só para
termos ideia, a quinta edição do Funcultura – Audiovisual, mantido pelo
Governo do Estado em parceria com a Prefeitura do Recife e modelo de inspiração
para propostas semelhantes em vários outros estados, destinou nesse ano R$ 11,5
milhões para distintas categorias, tais como longas-metragens,
curtas, produtos para televisão, oficinas, festivais, mostras e até incentivo
ao cineclubismo. Essa iniciativa é resultado de uma pressão de anos por parte
dos envolvidos com o audiovisual que perpassam ambas as gerações e que sempre
produziram sem um apoio financeiro efetivo. Preocupada com o futuro e a
instabilidade recorrente durante mudanças de gestão, tomando inclusive o caso
de Paulínia como exemplo, a classe audiovisual já começou a se articular para
transformar o edital do Funcultura em lei, fincando em definitivo esse
compromisso do estado com a cultura (independentemente de quem seja o gestor).
Se por um lado, o edital pode terminar gerando uma dependência entre cineastas
e poder público, condicionando a realização a partir do incentivo financeiro e
apagando uma experiência histórica, por outro tornou a produção do estado mais
profissional; cineastas, produtores e atores estão conseguindo viver de seus
trabalhos e ainda assim continuam envolvidos em iniciativas, digamos, mais
ideológicas, propostas com um caráter efetivo de garagem e de luta cidadã, na
promoção de conteúdos livres para internet, especialmente refletindo sobre o
assombroso desenvolvimento urbano da cidade.
A cidade ocupa o cinema, o cinema ocupa a cidade
Se
pensarmos em termos comparativos, alguns centros urbanos subalternos da América
Latina modificaram realmente o aspecto de sua paisagem no período entre 2001 e
2011, apostando numa conduta da verticalização conduzida por grandes
construtoras, cuja lógica é transformar espaços públicos em espaços privados,
não convivendo com o patrimônio cultural, mas destruindo brutalmente a história
e a memória das cidades. Esse é o caso de Recife, que atualmente ocupa o posto
de 21ª cidade mais vertical do mundo (no Brasil, fica atrás apenas de São Paulo
e do Rio de Janeiro), um lugar cujos vinte maiores arranha-céus foram todos
construídos nos últimos dez anos e que vem vivendo sucessivos confrontos entre
sociedade civil organizada, administradores das empresas e gestores públicos.
Diante desse cenário de transformação abusiva disfarçado de modelo de
desenvolvimento, intensificado a partir da construção arbitrária das Torres
Gêmeas — dois edifícios residenciais com 40 pisos cada um — no bairro histórico
de São José, a cidade passou a protagonizar inúmeros filmes produzidos em
Pernambuco. Recife ocupa o cinema e o cinema ocupa o Recife. Dispostos a
repensarem a forma como o projeto de desenvolvimento urbano vem sendo
conduzido, apontando contradições e propondo alternativas aos empreendimentos,
cineastas vêm se reunindo, inclusive com diversos segmentos da sociedade, de
maneira sistemática, todos acusando a própria prefeitura de ter se transformado
num mero balcão imobiliário. Não é novidade para ninguém que a lógica de
verticalização é uma solução que segrega as pessoas nos condomínios, eliminando
completamente qualquer capacidade de circulação, de mobilidade ou de acesso
direto às mais banais necessidades. O cinema pernambucano está prontamente
mobilizado contra a construção desenfreada de edifícios, muitos dos quais sem
estudos de impacto ambiental e que anotam efeitos ampliados na vida coletiva,
formulando uma urbanização — ou desurbanização — que desumaniza o espaço
compartilhado da cidade.
Nesse
sentido, um primeiro produto a mostrar a cidade sem delongas turísticas, o
longa Amigos de Risco, dirigido por Daniel Bandeira, mas com
participação de metade do Recife — todos presentes na sessão de lançamento para
se reconhecerem e serem reconhecidos pelos outros — remonta a Veneza Brasileira
como um lugar que vem perdendo suas particularidades, um lugar distante dos
cartões-postais que rodam o mundo, revelando uma periferia encardida numa
noitada fétida por meio de uma imagem igualmente suja. O filme produzido com
menos de R$ 50 mil, imanta seu projeto estético com um caráter duplo, as
imagens granuladas captadas em Mini DV endossam o ambiente hostil de um espaço
em plena perda de personalidade, assim como escancara os limites do seu
orçamento, apontando a garra e os percalços da produção independente. Seguindo
por uma pegada mais sociológica, Gabriel Mascaro (que ao lado de Bandeira,
Marcelo Pedroso e Juliano Dornelles formavam, até o ano passado, a produtora
Símio Filmes) desenvolveu Um Lugar ao Sol, tomando como objeto de seu
documentário uma elite específica: habitantes de diferentes cidades do Brasil
que moram em coberturas. O filme foi muito criticado por criar uma teoria
falsa, resumindo uma situação complexa em depoimentos de um grupo isolado,
de modo a induzir os espectadores ao erro simples de acharem que a culpa estava
ali, na tela diante deles. No entanto, o cineasta consegue captar a cidade em
suas linhas e sombras de maneira inquietante, rompendo com o pressuposto básico
da linhagem mais clichê dos documentários ao quebrar qualquer compromisso de
complacência entre documentarista e entrevistados. Sua postura ideológica fica
clara como alguém que usa a câmera como uma arma e filma um inimigo e
especialmente seu discurso.
Sem
dúvida, a iniciativa mais emblemática desses filmes sobre urbanismo, não
necessariamente pelo resultado em si, mas pelo processo e por plantar uma
plataforma vigorosa de debate, é o [projetotorregêmeas], disponível na
página http://projetotorresgemeas.wordpress.com/ . A iniciativa reuniu durante dois anos cerca de 60
pessoas, direta ou indiretamente envolvidas, tomando os prédios da construtora
Moura Dubeux, para conglomerar distintas visões sobre os rumos e transformações
da cidade. O modo de produção foi bastante incomum, com abertura de
inscrições para que as pessoas interessadas em participar enviassem vídeos,
fotografias, áudios, ilustrações, trilhas sonoras, entre outros. O resultado
trouxe uma variedade de linguagens, formatos e possibilidades de roteiro que
depois de sucessivas reuniões, terminaram decupados por cinco editores com a
missão de transformarem um material bruto desvinculado entre si num filme. As
várias mudanças e opiniões, contudo, não mudaram o intuito do projeto: debater
as relações de poder no Recife, a partir de iniciativas que influenciam o
cotidiano de quem reside na cidade. Todos os indivíduos que participaram do [projetotorresgêmeas]
se mostraram inquietos com a situação,
queriam protestar, revelar o nível problemático que atingimos, de tal modo que
o filme funciona — para além das dissonâncias internas — como um manifesto que
marca o fim da melancolia e da nostalgia enquanto pontos de fuga do cinema
pernambucano, algo muito presente em outras produções sobre o mesmo tema,
assumindo um tom acima para reafirmar sua militância cidadã diante da paisagem
arquitetônica da cidade. Lamentar para sempre não os levariam a lugar algum. O
filme foi lançado simultaneamente no IV Janela Internacional de Cinema do
Recife e disponibilizado na internet, contando com mais de cinco mil
visualizações. Atualmente, o mesmo grupo está começando a produzir da mesma
forma colaborativa, material para um novo projeto, com o título temporário de
“Eleições: Crise de Representação”.
A não só
vontade, mas necessidade, de problematizar os modelos de desenvolvimento de
Recife ganhou força com aproximação da Copa do Mundo e a ansiedade
administrativa dos gestores em resolver em pouco tempo problemas estruturais da
cidade, sempre numa lógica de priorizar edifícios e o transporte de carros em
detrimento das ciclovias e do elemento humano. Dois empreendimentos são
importantes de serem citados. O primeiro propõe “resolver” o problema do
trânsito – sempre vale repetir a frase de que não estamos no trânsito, nós
somos o trânsito – com a construção de quatro viadutos sobre a Avenida
Agamenon Magalhães, uma das mais importantes da cidade, ignorando em absoluto
os impactos visuais e sociais, além de suplantar a existência de pedestres e
ciclistas enquanto habitantes da cidade. O segundo é um empreendimento
imobiliário faraônico, chamado cinicamente de Novo Recife, que pretende
numa região próxima às Torres Gêmeas, no Cais José Estelita, destruir os
antigos armazéns ali existentes para construir nada menos que treze torres,
entre residenciais e comerciais de luxo. Para quem
não conhece essa história, trata-se de um terreno de mais de 100 mil m², que
era da União, mas foi leiloado em 2008 e arrematado por um grupo de empresas. A
participação se tornou mais ativa, transpondo
as telas, colocando cineastas e outras pessoas como interlocutores em
audiências públicas, envolvendo-os na produção de uma petição online e
até mesmo na ocupação de espaços em termos similares ao movimento #occupy.
Nessa leva surgiram ao menos dois coletivos que estão produzindo conteúdo
exclusivo para a internet e divulgando de maneira ampla nas redes sociais, com
olhares pujantes e renovados. São eles o
Vurto (http://www.vurto.com.br/) e o Contravento (http://vimeo.com/user11414332), o primeiro reunindo nomes como Marcelo Pedroso, Felipe
Peres Calheiros e Gabriela Alcântara, o segundo, bem mais interessante e com
menos sentimento de “Justiceiros da Cidade”, é levado por Luís Henrique Leal,
Caio Zatti, Cristiano Borba e Lívia Nóbrega. Todos estão mobilizados na
intenção de ampliar o debate sobre a privatização da Praia do Paiva; sobre a
forma como os gerentes de uma grande construtora observam áreas estratégicas do
Recife; trazendo para frente das câmeras especialistas de diferentes áreas para
falarem sobre os recentes acontecimentos e o direcionamento geral desse
processo, muitas vezes resgatando uma história cíclica de desmandos e equívocos
ou mesmo retratando de maneira crítica a ideia desenvolvimentista presente no
Porto de Suape.
Fica clara
a preocupação nesse conjunto de filmes como a paisagem não é só uma imagem
visual, mas algo feito pela participação, pela atitude, pelas crenças, pelas
práticas sociais, pelo dia a dia dos cidadãos. É unânime a ideia de que as
áreas em discussão não podem ficar restritas ao uso ou ao usufruto de uma
pequena parcela da população, ou seja, tomando como parábola de outros espaços,
a paisagem do Cais, uma das mais bonitas da cidade, não pode ser simplesmente
privatizada. Não é surpresa afirmar que a experiência urbana é também uma
experiência estética. Se cada vez mais pessoas estão se mobilizando contra o
projeto Novo Recife ou contra os viadutos da Agamenon Magalhães, o impulso
parte da vontade em pensar a cidade como um espaço público a ser usufruído por
toda população de maneira coletiva. No entanto, alguns filmes realmente caem na
simplória demonização dos prédios, apropriando-se da hipócrita lógica “quem vive em casa é bom, quem vive em
edifício é lobo mau”, enquanto outros lançam um olhar com mais afinco sobre
a reorganização espacial, padronizada e sem resquícios de criatividade alguma,
a princípio uma discussão estética que, claro, não deixa de ser política, pois
atravessa o imenso risco em aceitar um projeto de desenvolvimento da cidade
ditado pelos interesses comerciais das grandes construtoras (sob o aval da
Prefeitura, do Governo do Estado, do IPHAN e total supressão da lei dos doze bairros
sancionada em 2001, que controlava o ritmo frenético dos prédios em
determinadas regiões da cidade). O fato é que Recife está se transformando em
um simulacro de cidade, sempre empurrando as classes mais baixas para outro lugar (Gentrification) e capitalizando cada metro quadrado no mercado
imobiliário. A fileta básica de caráter público deixa de ser condição do espaço
urbano, o que gera uma desmobilização da convivência compartilhada e uma
cultura de shopping — muito bem representada em Recife Frio —
contaminada em todos os patamares da vida social. No mesmo sentido, Praça Walt Disney, de Sérgio Oliveira e
Renata Pinheiro, desenha com extrema habilidade e sutileza, espaços privados,
imbuídos da segurança do lar e do isolacionismo burguês, que emulam espaços
públicos limpinhos em seus
parquinhos, quadras e piscinas particulares. A experiência estética da cidade
também pede que conheçamos nossos vizinhos, deixemos nossos filhos na escola
sem precisar de carro, pede para utilizarmos as vias não como um lugar em que
passamos e deixamos passar a nossa vida, mas um espaço físico e espiritual que
definitivamente ocupamos, mantemos relações afetivas e cuidamos.
Os olhares singelos de um cinema sem fronteiras
Com
a transformação do cenário global e o intenso movimento tecnológico daí
decorrente, as limitações que outrora prevaleciam junto às convergências do
audiovisual passaram a inexistir e a própria concepção de ‘influência’ dentro
das cinematografias tornou-se flexível, pois as semelhanças e reflexos buscados
pelos cinemas que não mais encontram uma resistência física do espaço-tempo
passam a ocorrer em intervalos cada vez menores. A antiga velocidade com que os
cinemas se disseminavam, com que os filmes atravessavam as fronteiras e
alcançavam novos públicos, em atrasos que podiam chegar a 5 anos ou uma década,
foi há muito vencida. Assim, questões que são colocadas hoje num determinado
lugar do mundo, podem ser ampliadas ou resolvidas do outro lado do planeta
antes que o sol se ponha, um fato que se observa em qualquer área do
conhecimento e, inclusive, nas artes. Consideramos que o diálogo nutrido por
realizadores ao redor do mundo, direta ou indiretamente, é fruto de uma
realidade igualmente dilatada, daí serem os anseios perseguidos por muitos, tão
paralelos e sintonizados.
A
crescente dificuldade de se falar no cinema de um território (um cinema
pernambucano, em nosso caso) sem que, para isso, recorramos a estéticas e
soluções de outros estados, países e continentes, demarca uma transitoriedade
que até se localiza em períodos passados da história, mas que, sem sombra de
dúvida, representa uma das condições do tempo presente. Já não é possível
avaliar uma obra sem localizar os pares que, simultaneamente, estão se
desenvolvendo a despeito de um contato prévio, sem uma referencialidade
planejada. Por isso a necessidade de se pensar um cinema asiático, ou ibérico,
ou latino-americano, quando refletimos a situação local do cinema hoje
produzido em Pernambuco.
Experimentações
de linguagem, diluição dos gêneros, rompimento de formatos canônicos, são
constantes mundiais do cinema contemporâneo, verificadas em filmes nas mais
variadas durações e, muitas vezes, intensificadas no curta-metragem. Os bons
ventos que têm caracterizado a renovação do cinema pernambucano acompanham um
fluxo de qualidade global. O que nossos diretores têm provocado na linguagem,
na fusão entre o documental e a ficção, e em tantos aspectos que determinam uma
maneira de pensar o cinema, muito além de fazê-lo, não deve nada ao que
Kiarostami, Godard, Hsiao-Hsien, ou tantos outros referenciais, no que há de
mais novo no audiovisual, vem fazendo nos últimos anos.
É
muito estimulante perceber que os diálogos atuais não se limitam aos problemas
de ordem técnica, ou aos temas explorados; o que vemos se formar é um
verdadeiro emaranhado de questionamentos que tocam o domínio da representação
em pontos nevrálgicos do entendimento criativo: quais as possibilidades de se
guardar um mundo em imagens quando, ele próprio, já se tornou uma imagem distanciada
de si? Como identificar um espaço de subjetividades que já não subsistem
isoladamente, que dependem de sua constante exposição para serem ‘reais’? Qual
o lugar do drama numa época que já não consegue interromper a ação ou fazer
dela um contraponto da existência humana? Os anseios se acumulam na mesma
medida em que a própria mecânica cinematográfica atravessa um período de
transformações, dos mais radicais que já se registrou, seja em sua forma de
produção, nos parâmetros de exibição e consumo, como no resguardo de sua
memória.
De
certa forma, é também na manutenção de memórias particulares que localizamos
todo um projeto comum do cinema, em expansão desde o séc. XIX, e identificamos
as específicas semelhanças que saltam aos olhos do trabalho pernambucano na
relação com os circuitos mundiais. São memórias dos pequenos gestos, dos
cotidianos em repouso urgente, ‘memórias das coisas’ — para ficarmos numa
expressão corrente aos estudos recentes do audiovisual[1]
—, derivadas de um tratamento preocupado em localizar o natural afeto que a
relação mundo x imagem apresenta. As filmagens dos corpos e das paisagens, a ‘rostidade’
resgatada pela composição de movimentos que reposicionam o cinema a um lugar de
encontro, percorrem o que há de melhor na safra de filmes pernambucanos que vem
ultrapassando os limites dos festivais para encontrar, num público atento, o
interesse por novidade de experiência, olhares que redimensionem a expectativa
de um cinema e do entorno que o cerca e faz vir à luz.
É
nesse sentido que reunimos, a seguir, uma lista comentada de filmes que
potencializaram esta abordagem singela do cinema pernambucano, chegando mesmo a
diluir esta concepção local (sem jamais negá-la) e favorecendo uma compreensão
da identidade múltipla que hoje caracteriza o nosso cinema. São filmes que se
equilibram entre o íntimo, o político, o visível, o poético, expressões que
além de um lugar, definem um tempo.
Muro (Tião, 2008)
“Alma no vazio, deserto em
expansão.” O verso divulgado como sinopse oficial do filme que redefiniu o
cenário pernambucano — e por que não, mundial — de produção cinematográfica,
reflete em palavras uma impressão certeira do que sua experiência provoca.
Afronta aos sentidos, o trabalho de Tião é muito mais do que a apressada
convicção de um rompimento, está mais para resgate, para continuidade aos nomes
que reverencia diretamente em sua estrutura (de Méliès à Eisenstein), pela
defesa de um cinema livre das amarras lógicas, consciente do artifício, em
pleno domínio do que percebemos como temporalidade. Ponto de partida de uma
carreira particular, Muro inaugura em
si um novo mundo. Faz nascer o cinema.
Nº 27 (Marcelo Lordello, 2008)
Filmar a adolescência, uma
constante na prática do curta-metragem contemporâneo, é o ponto de partida para
Marcelo Lordello compor um dos retratos afetivos mais contundentes dos últimos
anos. Sua observação da sala de aula, dos corredores e banheiros colegiais,
carrega uma delicadeza sintonizada ao que há de melhor no cinema mundial de sua
década, a exemplo da relação direta que traça com o imaginário dos filmes de
Gus Van Sant. O drama de seu protagonista é o pretexto para uma verdadeira
experimentação do tempo, da sonoridade, do extracampo, de detalhes que fazem do
cinema um artesanato, uma singela composição de lembranças e sensações. Nº 27 é a imagem que carregamos não
apenas quando sua projeção encerra, mas aquilo que vemos no espelho todos os
dias, ainda que relutemos em enxergar.
Pacific (Marcelo Pedroso, 2009)
Dispositivo exposto em suas mais
profundas engrenagens, o gesto de Pedroso sobre os olhares que coleta de
turistas num cruzeiro é o motivo de uma intenção criativa das mais originais
que o cinema contemporâneo demarca. As filmagens íntimas de um tempo que só é
vivido depois de guardado, revestidas de significado cinematográfico a partir
da rigorosa montagem efetuada, dão forma nas mãos do diretor a uma teia que se
revela pura ficção, a despeito de sua origem documental. Um trabalho limite que
atropela os gêneros para configurar uma determinada vivência em estado bruto,
um intercâmbio de observações que resguarda a subjetividade ao domínio extremo
da projeção. Do movimento mais simples, uma complexa significação do estar no
mundo sob a mediação da imagem, a conscientização do espetáculo.
Confessionário (Leonardo Sette, 2009)
É na cuidadosa exposição que faz
das limitações de sua linguagem que Confessionário
amplia a noção de registro cinematográfico, a despeito do que se compreende por
documental ou ficcional. As margens do espaço/tela, a efemeridade do plano, a finitude
da película, são elementos que contrapostos ao tom nostálgico do padre
entrevistado — que somente pela sua retórica de memórias sedimenta um cinema
autônomo —, dão brecha a significados emergentes na própria condição criativa
de se fazer um filme. Ouvir o corte de Leonardo Sette, experimentar a pausa
para o troco dos rolos e não ter acesso às imagens de continuidade, é romper
com tudo que se pode esperar do cinema, com aquilo que inconscientemente se
absorve do movimento, em qualquer filme, mas que aqui se desnuda sem timidez. É
a extrema obscenidade, o que não se encena.
Balsa (Marcelo Pedroso, 2009)
Possivelmente o trabalho que
melhor concentra, neste novo painel de filmes, o interesse de retornar a um
estado primitivo do cinema para fazer com que ele se renove, Balsa é um olhar que suspira carregado
de melancolia, pesado de sentimentos, situado na contemplação de um mundo
agônico, moribundo. O ponto de vista fixado no transporte em vias de extinção,
a balsa, reconfigura o movimento que desde os Lumière resguarda os acasos da
vida, dos gestos cotidianos que se acumulam e renovam na densidade de
expressão. Sob o conceito da câmera-olho (Vertov), Marcelo Pedroso ilumina um
estado de sobrevivência latente, não apenas do que é filmado, mas daquilo que
usa para filmar, do que insiste em ser linguagem e instrumento de memória.
Recife Frio (Kleber Mendonça Filho, 2009)
Uma das raras experiências
criativas dentro da ficção científica no presente século, Recife Frio funciona tão bem porque constrói a sua realidade a
partir de imagens que não precisaram ser forjadas, mas apenas organizadas
dentro de uma coerência indicadora da preciosidade que um bom roteiro ainda
pode constituir. É do real que Kleber M. F. extrai a ilusão, erige o seu mundo,
acentuando sempre em justa medida a tonalidade crítica que lhe é tão cara, aqui
aplicada ao contraste social, ao desequilíbrio urbano das grandes cidades, ao
conflito político que se estabelece até mesmo dentro de um núcleo familiar. Sua
fantasia em tempo presente desafia (e vence) não só as expectativas de um
público geograficamente restrito, mas vai além, no sentido de refletir uma
violência com doçura e humor, de encontrar no caos a graça da vida.
Avenida Brasília Formosa (Gabriel Mascaro, 2010)
Estabelecido numa lógica
orgânica, em que o olhar da câmera ecoa o olhar primeiro do mundo na relação
nutrida entre o espaço natural e as intervenções urbanas, há no cinema de
Gabriel Mascaro uma abertura estética onde o sentido formal e narrativo
subsiste ‘em
construção’, como nas residências do bairro de Brasília Teimosa, locação
principal de seu filme. Ele nos convida a uma contemplação que não
pode ser adiada. Sensibiliza os espaços reintegrando o homem ao meio e em suas
relações sociais. Do painel sensorial equilibrado entre as observações
arquitetônicas e as condições físicas que levam um lugar ao enfrentamento da
transformação, Avenida BF resulta
numa procura pela respiração da cidade e dos núcleos de convivência, da vida
que resta nas desgastadas estruturas de pacificação moral. É o que também resta
para o cinema.
A Banda (Chico Lacerda, 2010)
Desdobrando um procedimento de captação
visual entre o registro e o questionamento da imagem, Chico Lacerda propõe
através de um gesto muito simples — mas também complexo, pois talvez seja o travelling o movimento mais enigmático
da linguagem cinematográfica — uma discussão da visibilidade em camadas,
daquilo que vemos e negamos ou confirmamos a partir dos pequenos códigos do
olhar. Não ouvimos a banda, não englobamos a totalidade do evento (uma parada
gay), mas construímos pelo repertório de cenas coletadas uma vívida impressão
do acontecimento, de sua presentificação. A inexistência da ‘banda sonora’ no
filme, submerso no mais profundo silêncio em toda sua duração, atualiza a perspectiva
essencial de uma linguagem que ainda é luz, é sombra. E não precisa de mais
para o ser.
As Aventuras de Paulo Brusky (Gabriel Mascaro, 2010)
Concebido dentro de uma estética
virtual, um viés da animação, o filme que marca o encontro de Paulo Brusky com
Gabriel Mascaro dentro da plataforma ‘Second Life’ reflete questões
fundamentais ao prosseguimento do cinema no séc. XXI. A partir de uma
perspectiva autoral (de Brusky), a invenção sem limites técnicos (de Mascaro)
conecta a mais pura fantasia à dura realidade — econômica, política — da
criação artística. A dolorosa lembrança metalinguística que permeia todo o
filme, de tratar-se única e simplesmente de um filme, é o que transcende o
ilusório, que reveste e resgata toda uma associação entre o cinema e o sonho,
concretizando o impossível e materializando subjetividades outrora apenas
potenciais. Uma brincadeira muito séria que desenferruja algumas motivações há
muito abandonadas pelo cinema.
Mens Sana In Corpore Sano (Juliano Dornelles, 2011)
Se o novo século é também
caracterizado por uma intensificação no ‘cinema dos corpos’, na maneira como as
imagens tocam as superfícies da forma humana e fazem da pele do filme um núcleo
imediato de percepção, o bizarro trabalho de Juliano Dornelles se confirma inserido
numa problemática inerente ao seu tempo histórico. Inspirado por uma estética
do terror e do grotesco, e trabalhado sob uma rigorosa paleta de cores e sons
que o aproximam do período mudo sem perder o equilíbrio nas referências do
cinema B, Mens Sana é uma das mais
felizes apropriações recentes de gênero, imprevista e eloquente, questionadora
de sua própria concepção formal e do imaginário em que mergulha. Uma perfeita
imagem da imperfeição.
[Projetotorresgêmeas] (Coletivo, 2011)
Dentro do formato de criação
coletiva — em expansão na contemporaneidade —, possivelmente, nenhum outro
filme tenha alcançado um resultado político e estético tão incisivo, em
Pernambuco, quanto este [Projeto].
Motivado pela disputa imobiliária e a decorrente transformação no cartão postal
e no imaginário cultural afetivo do Recife, o filme reúne um híbrido de
artistas e expressões, que assinam um verdadeiro manifesto, provocação certeira
a encontrar no cinema um caminho para o pensamento sobre o tempo e o espaço de
uma cidade, sobre a sua transformação/diluição. A arrojada proposta de
divulgação do trabalho (na rede, em festivais, cineclubes e centros de
educação) acentua a urgência de sua visibilidade, enquanto propõe uma arte
democrática, acessível. Ao se reclamar
uma cidade, inclui-se aí o direito a seu cinema.
A Febre do Rato (Cláudio Assis, 2011)
Se em meados dos anos 2000, Assis
realizou Amarelo Manga como um tapa
na cara do Recife, deixando na época os próprios recifenses fascinados com
tamanha brutalidade, o diretor conseguiu através de seu mais recente filme
escrever uma carta de amor à fragilizada cidade, um amor que contesta todas as
formas de opressão, misturando um ímpeto libertário trôpego a uma crença
histórica na poesia marginal. Filmado em preto e branco, vemos uma cartografia
de corpos e afetos; encontros intensos, ébrios, apaixonados e inocentes, que
servem bem ao intuito confuso de escárnio e celebração, fazendo com que os
recifenses (não só eles!) visualizem um tempo que transcorre, uma duração, um
cinema-território entre gerações que se apontam. A Febre do Rato se baseia numa escrita poética em que cada verso
(cena) impulsiona, diante do real, um vivaz universo.
[1] Conceito desenvolvido
pela profª Laura U. Marks em importantes publicações na teoria do cinema deste
século, como The Skin of The Film (2000)
e Touch: intercultural cinema, embodiment
and the senses (2002).
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