Shame (Steve McQueen, 2011) |
Já não há forma que se sustente, contorno que não se apague,
certeza que se comprove diante de um mundo que deixou de ser suficiente para os
que nele habitam. Com o cinema de Steve McQueen somos desafiados a abandonar a
nitidez dos corpos, a materialidade que os distingue e reveste de dimensão
simbólica, efêmera. São entes que, em si, já não resistem ao tempo, ao que pode
ser armazenado por um olhar, por uma imagem que foi extinta antes mesmo de sua
captura. Exemplar é o plano em que, logo na introdução de Shame, Michael Fassbender sofre um close desfocado, não de maneira
gradativa, mas desde sua primeira aparição, no jogo de olhares que troca dentro
do metrô com uma bela estranha. Um breve ângulo de sua desintegração, das
regras que o porvir do filme estabelece; coisa que não se insinua ou sussurra —
afinal, estamos falando do cinema de Steve McQueen —, mas que se explicita como
num rompante de luz, clarificador e ao mesmo tempo oblíquo, pois capaz de
cegar.
Toda a plasticidade dos filmes de McQueen, ainda que sob o
risco de uma estetização excessiva dos planos, serve de contraste para estes
pequenos momentos de delicada composição, cheios de textura, de significados
que descolam dos corpos tocados para tão somente grudar na superfície da imagem.
É um cuidado que se justifica pela maneira como cada referente encontra o seu
oposto dentro do espaço fílmico: a luz e a sombra, o belo e o grotesco, o puro
e o imundo, a dor e o gozo, a paz e o caos, tantos dípticos que se multiplicam
a despeito de qualquer didática narrativa, às vezes presente para logo ser
soterrada pela visualidade que importa, pelo que nos cativa do olhar.
Se há uma diferença entre os dois filmes que o diretor até
aqui assinou, ela consiste nesta qualidade de saber o momento de dar as cartas,
de fazer valer as propriedades de sua linguagem, sem trapaças ou meias
verdades. Enquanto Hunger é um
trabalho que revela aos poucos a sua intenção, e que por isso subsiste como um
filme dolorosamente fendido ao meio, difícil de remontar após o seu término, Shame é uma obra que se entrega inteira
talvez antes mesmo de sua primeira imagem (do corpo exausto de Fassbender sob
os lençóis, o mesmo que faleceu entre lençóis ao final do filme anterior), com
uma noção inequívoca de totalidade, de domínio naquilo que realiza. Não por
acaso, o plano irmão, em Hunger, do
que ressaltamos no close de Shame, também
se localiza nos primeiros minutos do mesmo, sobre o rosto do policial (Stuart
Graham) que fuma sob a neve, com a distinta diferença de ali vermos o rosto
sendo lentamente apagado, distorcido pela lente da câmera.
Enxergar o processo de diluição do foco em Hunger não deixa de representar seu
motivo narrativo, o de dar a ver o desgaste do corpo humano, desta física que
nos forma e deforma pela mortalidade. O extremo oposto do que encontramos em Shame, filme que parte de corpos já
exauridos, que somente em sua moral podem ainda ser esmagados, já que, desde a
primeira luz, não passam de carne morta. A surpresa que nos choca em Hunger, pelo confronto ante a finitude
de seus atores, é substituída no outro filme por um adensamento da abstração,
daquilo que, por exemplo, irrompe na sequência em que Fassbender transa
simultaneamente com duas mulheres, cena que faz do sexo a cor, a superfície da
tela, embaralhando os corpos numa atmosfera próxima a da ficção científica,
desfocando não só a visualidade do que se vê, mas de tudo que não cabe no
quadro e também sentimos, respiramos, sufocamos da impressão final.
Vem daí o retorno à plasticidade de McQueen, amadurecida tão
notavelmente em Shame, seja pelo
acaso que agora passa a considerar em seus movimentos — acaso das externas pela
cidade de Nova York e suas luzes, acaso dos planos-sequência que finalmente
encontram razão de ser —, seja pela veracidade que não se preocupa mais com
corpos em transformação, pois o que se transforma agora é a incidência da
imagem sobre eles. Como no cinema de Claire Denis (especialmente a de Trouble Every Day), a apropriação dos
corpos se dá em decorrência da violência natural que deles emana, pelo que
neles clama ao contato com as câmeras, este defloramento inevitável do que se
oferta ao registro. Referência que advém, antes disso, ao Kubrick de Eyes Wide Shut, em seu esmero de corpos
que também flutuam orgiacamente, não apenas no sexo, mas nas ruas da cidade
noturna, nos cômodos do falso lar, nas festas, e danças, e músicas, e mortes
que se desdobram a cada esquina contornada, cada porta entreaberta.
Acompanhar o desempenho ampliado de Hunger para Shame, filmes
um tanto quanto maltratados pela evidência em premiações, também altera o foco
de ‘diretor promessa’ recaído sobre McQueen desde sua estreia com o primeiro
título. Muito mais do que sorte de principiante (praga que aflige 9 em cada 10
promessas reveladas em festivais), McQueen demonstrou um esmero digno de nota
na transição entre seus filmes e no apurado resultado de Shame. Independente dos rumos que ele possa tomar a partir daqui,
já cabe o registro de um autor que soube se reavaliar, que colocou o cinema em
tempo presente. O que não é pouco.
[TEXTO PUBLICADO NA SEÇÃO FILME EM FOCO / SITE FILMOLOGIA]
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