quarta-feira, 8 de julho de 2009

O ROMPER DA IMAGEM / HOMENAGEM À CHUNIBALA DEVI

No último sábado tive a oportunidade de conhecer um tio, irmão de minha avó, a quem nem ela via há quase 40 anos. Muito frágil, ele já conta 94 anos de idade.

Que coisa extraordinária é se deparar com tanta vida em um só corpo.

Eu nada poderia oferecer naquele instante que não fossem meus ouvidos atentos, meus olhos encantados, minha reação que longe de transmitir um aparente silêncio, reagia no meu íntimo com toda intensidade e reverência.

Gosto demais do contato com pessoas assim, pois me mostram o outro lado do que meus limitados olhos não podem ver. Um lado em que todo o conhecimento científico é secundário, pois a especialidade em jogo é o existir.

Foi esse episódio, que de tão pequeno conseguiu marcar-me para sempre, o responsável por enfim eu vir comentar algo sobre um filme que estou devendo por aqui (são muitos em dívida):

A Canção da Estrada, do maior dos indianos, Satyajit Ray (1955).



O ângulo acima exprime todo o comentário que eu gostaria de fazer sobre a obra, justamente a respeito da velhice e da maneira como ela pode ser apreciada pelo cinema.

Qual o limite de uma imagem para suportar a vida representada nela?

Pergunto-me isso ao ver um quadro como esse.
O embalar do nenê.
A semente da vida.
Em repouso sobre um corpo marcado.
Pele rasgada por vincos que imprimem os anos.

Como não me espantar diante de tanta vida em um só ângulo?



Todas as cenas preenchidas pela infância / velhice parecem romper qualquer limite estabelecido. Ultrapassar a expectativa do que seria uma convencional narrativa familiar de gerações em contato. Há muito mais aí.

Confesso que poucas vezes tive a oportunidade de me apaixonar por uma atriz dessa forma, numa primeira descoberta, num amor à primeira vista... Ainda bem que eu cedi. Pois no caso dela, essa é praticamente a única vista possível.

Chunibala Devi, atriz dos teatros indianos, com apenas 2 filmes dispensáveis no currículo em meados dos anos 30, foi milagrosamente encontrada por Satyajit Ray para encarnar a tia mais velha do menino Apu. Seus 80 anos, naturalmente maquiados em sua pele e postura, não apenas compuseram uma das mais fabulosas interpretações que o cinema já registrou, como facilitaram o próprio trabalho de Ray, seu primeiro, sua obra-prima. Infelizmente a vida não lhe permitiu sequer assistir o resultado de tão notável trabalho, pois pouco antes do fim das filmagens, o corpo de Chunibala despediu-se do último fôlego. Exatamente como vemos no filme.

Fico me perguntando o que passou pela mente dessa mulher ao interpretar um papel que viveria em poucos dias. E não posso deixar de ridicularizar a própria idéia de interpretação, pois nada em Chunibala se aproxima de tudo que eu já vi em termos de encenação, de falseamento.

Ela vive diante da câmera. Não é preciso truque.

E por mais que o trabalho de Ray chame atenção, pois não é pouco o que ele produz com seus paupérrimos recursos, inspirado declaradamente na formação neo-realista que teve ao lado de Jean Renoir, é muito difícil conter o ímpeto de ficar me rasgando em elogios ao que essa mulher realizou.

A ela, a minha homenagem.

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