quinta-feira, 22 de outubro de 2009

PAIXÃO DE BRAVO



Paixão de Bravo, Nicholas Ray, 1952.

Novo Post no MAKING OFF.

As reflexões abaixo originaram de um diálogo com o amigo Ranieri Brandão.
Não deixem de conferir outras considerações dele, aqui.

A Cor

Um ano antes, em Horizonte de Glórias (1951) Nicholas Ray estreava um cinema factualmente colorido; mas é em Paixão de Bravo, filme abençoado pelo pequeno orçamento, que ele nos apresenta através de uma autêntica fotografia em P&B, um vigor que flerta com a essência do cinema a cores e por isso lhe revela um algo a mais. A cor em Paixão de Bravo, muito além do eficiente trabalho de um fotógrafo (Lee Garmes), encontra o lugar certo para vibrar, habitar a cena e conferir a autonomia devida aos cenários, aos personagens, ao próprio estado de espírito da imagem, permitindo uma espécie única de autonomia que o cinema encontra somente na mão de homens como Nicholas Ray. É numa cena imprevista, num rompante desses que se marcam a fogo em nossa memória, que Susan Hayward penetra a imagem em seu estonteante vestido preto, segundo ela “o único decente para sair”. Talvez o cinema nunca tenha gerado um preto tão cheio de cor, tão reluzente e potente, sem dever nada ao inesquecível vermelho de Bette Davis ou o lilás de Natalie Wood, em seus vestidos antológicos, cinematográficos por excelência. Na verdade, se com Bette e Natalie somos conduzidos ao recôndito de suas personalidades através de cores vivas, pela aliança simbólica da cor e suas associações conceituais, em Susan o preto faz muito mais do que expressar um caráter individual, pois ele se impregna para além do corpo feminino, absorvendo o erotismo selvagem da cena e contaminando todo o espaço com outra espécie de selvageria, mais bruta, próxima do irracional, apaixonante. É com o preto que Susan poderá enfim enfrentar o mundo fantástico que Paixão de Bravo nos apresenta e nos convida incessantemente a participar e amar; um mundo sem rédeas, onde as mulheres são laçadas como éguas, mordem os seus machos para se acasalar e são marcadas no traseiro; onde os homens, para serem bravos, fecham os olhos aos riscos e entregam-se de corpo e alma ao erro, como touros raivosos, jamais rendidos. Diante disso, somos liberados para sentir em Nicholas Ray uma factualidade da cor que também é liberada de vínculos externos, num P&B que colore mais que tudo a alma de uma arte, e que exemplifica o que um dia seria tão belamente refletido por Tarkovski: “Por mais estranho que pareça, embora o mundo seja colorido, a imagem em preto e branco aproxima-se mais da verdade [...].”



A Bravura

É enquanto dividem o plano com um homem que, ao fundo, hasteia a bandeira americana, que Jeff e Wes conversam sobre o medo do peão num rodeio. O medo do ridículo. O medo diante de um público desconhecido que nunca mais será encontrado. O medo que diz respeito mesmo à existência do esteta, do cineasta que em seu filme arriscará sua vergonha, sua verdade, sua necessidade em se fazer ouvir e ver. E por que não o medo de uma nação? De um lugar que se aproximava naqueles anos dos limites da superexposição, marcando na imagem fílmica o símbolo de um orgulho, de uma coragem que no fundo nutria o mesmo medo, a mesma fragilidade primeira do próprio cinema. Sim. Nicholas Ray reconhece o poder e o perigo de ser um americano, consequentemente de lidar com uma tradição clássica desse cinema. O primeiro touro a aparecer em Paixão de Bravo, devidamente apresentado pelo locutor do torneio como um temível e selvagem espécime (brahma) de sua raça, se aproxima da câmera (nós) a uma distância ameaçadora. Sentimos seu fôlego em nossa face e imediatamente nosso coração começa a pulsar no ritmo desejado por Ray, a partir daí em plena condução de nossos sentidos até o fim da projeção. Mas o touro também suspira em seu pescoço. Quando Nicholas Ray aceita o desafio, desde seu primeiro filme (Amarga Esperança, 1948), de filmar americanos, num enredo americano, mas não exatamente como um americano faria, ele está dizendo: “Eu aceito montar no touro!” Assim, Paixão de Bravo representa a consciência do risco do ridículo, pois monta não apenas num gênero caro ao cinema da América (western), como aborda todo um imaginário de aparência quase exclusiva à cultura daquela nação. Não importa a posição final do concorrente, assim como não importará a condição em que Jeff McCloud terminará sua última prova. Nicholas Ray, ao extrair dessa brutalidade a sinceridade de uma poesia, ao conduzir seu touro/cinema com a virilidade e a delicadeza necessárias para que o tempo de montaria extrapole os limites do previsível e do suportável, conquista a posição de um autor, vence o ridículo, torna-se um bravo.



“Sujeitos Como Eu Duram Para Sempre”

Apesar de sermos tentados a uma associação rápida entre a grande frase proferida por Jeff McCloud e o próprio filme Paixão de Bravo, ou mesmo seu diretor, Nicholas Ray, não podemos pretender que a frase exista para massagear o ego de um artista que mesmo mestre, não demonstra se crer eterno. McCloud, persona-mito de um gênero, de uma geração, de uma arte, poderia muito bem ser substituído pelo igualmente mítico Robert Mitchum, que lhe encarna e se encarna para todo um sempre. E não apenas ele, mas também por Susan Hayward e Arthur Kennedy, assim como cada integrante da equipe responsável pela concepção de Paixão de Bravo. Tudo nesse filme parece aspirar à eternidade. E diante do sublime conceito, não podemos ignorar que algo eterno é algo que dispensa tanto um fim futuro como um fim inicial. Por isso não captamos a ontologia de Paixão de Bravo. Assim como é impossível resgatar o passado que não vimos dentro do filme, diante dele, somos assolados pela sensação de que há mesmo uma ausência de passado e de lugar para o próprio cinema. É inevitável assistir Paixão de Bravo e não sentir em algum momento que se está diante de um filme pela primeira vez na vida, tamanha a novidade do movimento, e do efeito causado por ele em nós. Mais do que a impressão de um P&B inédito em sentido e a certeza de que há um gênero aí contornado de forma pioneira, o que nos constrange é o amor presentificado, palpável, o pulsar de uma paixão. É assim que Paixão de Bravo nos revela – a nós, que vivemos em dias onde cineastas se proclamam os melhores do mundo – que para um filme alcançar o sempre não é preciso muito (ainda que aqui se faça mais do que o muito), pois o para sempre não é conquistado como uma medalha de rodeio, antes, ele existe e habita uma condição que é anterior, instaurando na imagem uma bravura que era, é, e para sempre será.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Algo para mim?