domingo, 4 de outubro de 2009

O CINEMA E SEUS MEDOS


No Silêncio das Trevas, Robert Siodmak, 1945.

Novo post no MAKING OFF.

Há um assassino à solta. Um psicopata livrando-se de jovens mulheres que carregam em comum algum tipo de deficiência. Helen, criada na mansão dos Warren, carrega consigo um trauma que a emudeceu desde a infância. Isso a torna um alvo fácil, e só lhe resta uma noite para fugir e sobreviver...

Não é por acaso que Robert Siodmak abre No Silêncio das Trevas com um assassinato em pleno prédio onde são exibidos filmes mudos para a população local. O episódio, magnificamente filmado, muito mais do que exibir-se como um arrojado exercício metalingüístico, termina por revelar desde o início o interesse de Siodmak em aproximar-se da essência do cinema mudo, retornar a um momento da sétima arte que não pode morrer, pois carrega em si um potencial expressivo sem paralelos, agônico, em condições de se insistir vivo e com um longo fôlego.

A tradução nacional para o título deste filme (no original The Spiral Staircase), num raro lampejo de genialidade, condensa em seus dois conceitos uma forte oposição aos elementos que dão vida ao movimento cinematográfico: o Som e a Luz. Ainda que um cinema seja mudo, é impossível negar o poder de sugestão de um efeito sonoro, a capacidade que uma ambiência visualmente bem construída tem de evocar o domínio dos ruídos e das vozes, das melodias e até das pausas; assim como é indissociável a relação entre a imagem projetada e a própria luz, ou ausência dela, pois somente a partir desse binômio o aparato cinematográfico poderá gerar sua realidade particular. Quando Siodmak propõe a manipulação exatamente dos conceitos contrários – o silêncio e a escuridão – está na verdade, lidando com um medo que diz respeito ao próprio cinema, o medo de um desaparecimento, a constatação da evanescência da própria imagem fílmica, sua condição materialmente finita, pois num nível de distinta realidade.

É através de uma certeza, da inabalável convicção de que o cinema pode vencer tais medos, que o inventivo cineasta constrói esta impressionante jogatina, abandonando seus personagens a um majestoso cenário que servirá tão somente a sua câmera, a seu desejo de provocar, de ameaçar, de inflamar um suspense que beira mesmo o pânico, tamanha a magnitude de sua crueldade. A câmera deste filme, semelhantemente ao grande cinema mudo, almeja executar um som que está além do que é verbalizado pelos atores, pois aqui, muito mais do que os banais diálogos, são os ‘ruídos inaudíveis’ quem mais gritam. É o cair da chuva, a insistência dos trovões, as incessantes rajadas de vento, toda uma natureza a comportar o isolamento da arquitetura barroca e a expressar em alto e bom tom para nossa protagonista: “Fuja daqui!” E a câmera se torna vento...

O ameaçar de uma vela apagada, pouco antes de outro assassinato, entra para sempre como um dos momentos históricos da cinematografia de horror. Quase não há mais luz para sustentar nossos olhos. Consequentemente não haverá mais como segurar uma câmera que se deixa levar pelo vento, e que desliza sinuosamente atravessando o sótão empoeirado, penetrando teias de insetos esquecidos, numa suspensão de tempo, num apagamento de espaço condizente com o estado do esmagado espírito espectador que é obrigado a acompanhar tudo imóvel, em seu silêncio, no escuro de um cinema que permanecerá para sempre mudo, mas com muito a dizer. Há medos que vivificam, outros que apagam traumas; os de Siodmak eternizam uma vitória: a permanência do bom cinema.

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