sábado, 3 de outubro de 2009

UM CINEMA SEM INOCÊNCIAS


O Outro Homem, Carol Reed, 1953.

Novo post no MAKING OFF.

Ao visitar seu irmão, numa Berlim que sobrevive ao recente drama da Grande Guerra, Susanne termina envolvida numa complexa trama de espionagem, onde conhece o misterioso Ivo Kern. Também sobrevivente do conflito armado, Ivo é um homem que enveredou pelo obscuro caminho da criminalidade, perdendo toda a fé no humano, no senso de justiça ou mesmo num gesto de perdão. Sua aproximação com Susanne abalará suas convicções, fazendo-o perceber que ainda é possível viver um sentimento verdadeiro.

Mas será o amor capaz de instaurar a esperança de uma redenção?



Desde o final da Segunda Guerra, Carol Reed se especializou na elaboração de cuidadosos suspenses, muito próximos entre si por características centrais ao enredo e à investigação dos personagens como pela aposta num estilo próprio muito forte e facilmente identificável. O Outro Homem, dentro de sua carreira, destaca-se como uma obra em plena coerência com seu imaginário particular, mas também como um passo adiante, um novo olhar com perspectivas diversas dos feitos anteriores. Ao mesmo tempo em que enxergamos variáveis já presentes em O Condenado (1947) ou O Terceiro Homem (1949), também percebemos que há um nível de desenvolvimento latente, contornando todo o trabalho visual e a psicologia das relações aí existentes.

Sem dúvida, o elemento que mais pode nos ajudar a entender essa nova postura reside na potência que se revela a personagem de Susanne (Claire Bloom), caráter ímpar em toda a filmografia do cineasta, não apenas pelo poder de sua feminilidade como pelo desdobramento que sua identidade tomará no decorrer da trama. Nunca Carol Reed tinha nos apresentado uma mulher tão singular. Seus filmes, geralmente conduzidos por homens incautos, atormentados por culpas e erros não resolvidos, culminam aqui, mesmo através de uma mulher (e talvez somente por isso), num dos casos mais viris e impetuosos de amadurecimento, de confrontação com a realidade e a aceitação de caminhos duvidosos, porém necessários. Ficamos mesmo sem palavras ao nos depararmos com tanta força diante de um ser que aceita as terríveis condições de sobrevivência, por um amor que não oferece segurança, e que muito mal se afirma como amor puro, ideal. Pois já não há lugar para inocência.



Nesse sentido, Susanne é muito próxima do pequeno Phillipe (O Ídolo Caído, 1948), menino que amargamente descobre a diferença entre a verdade e a mentira, e que para alcançar o que é verdadeiro se verá obrigado a desfazer-se de sua inocência e fragilidade. Duas cenas de O Outro Homem interligam-se para testificar a transformação de Susanne. A primeira, quando numa fuga desesperada pela madrugada nas ruínas de Berlim, vê-se confundida com uma prostituta por devassos que lhe perseguem num carro; um pouco depois, também em desespero por um escape, aceitará ser tomada como uma ‘mulher fácil’ para confundir seus perseguidores. Numa mesma alma encurralada, um confronto de dois pólos. No fingimento de Susanne, uma chave para todo o cinema do próprio Reed.

Há muito Reed também já tinha aprendido seus truques. Revestir narrativas com mirabolantes reviravoltas, impressionantes cenas de ação física e humor inusitado, é coisa típica no cinema em jogo. E é muito bom constatar mais uma vez que a própria condição narrativa do cinema de Reed constitui-se como uma exuberante roupagem para a elaboração meticulosa de sua linguagem. Em O Outro Homem, assim como nos filmes anteriores, também encontraremos a tortuosidade dos ângulos, a simbiose entre personagens e espaços, mas teremos mais. Talvez porque o próprio poder simbólico da cidade em ruínas, comparável somente aos esgotos de O Terceiro Homem, vem representar não só a inquietação de um suposto amor ou a desintegração de uma alma perdida (Ivo Kern/James Mason), mas desafiar a própria razão de ser do cinema. Sob essa perspectiva, Carol Reed dá um passo adiante não apenas em sua carreira, mas através dela auxilia o próprio cinema a mover-se de lugar, de sua segurança clássica, da certeza de uma imagem. O novo lugar do cinema, movediço e incerto, também já não encontrará espaço para inocências e esperanças vãs, pois talvez a única esperança seja fingir. Não fingir para fugir. Mas para enfim viver.

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