segunda-feira, 26 de outubro de 2009

INABITUAL

No romance inicial, os objetos que serviam de apoio à intriga desapareciam completamente para deixar avultar apenas o seu significado: a cadeira vazia só queria dizer uma ausência ou uma espera; a mão sobre o ombro, um sinal de simpatia; as grades da janela, a impossibilidade de sair... E eis que agora se a cadeira, o movimento da mão, a forma das grades. O seu significado continua evidente, mas, em vez de absorver a nossa atenção, é como dado a mais; mesmo em demasia, pois o que nos atinge, o que subsiste na memória, o que aparece como essencial e irredutível a vagas noções mentais, são os próprios gestos, os objetos, as deslocações e os contornos, aos quais a imagem restituiu de uma só vez (involuntariamente) a sua realidade.

Pode parecer estranho que estes fragmentos de realidade bruta, que a narrativa cinematográfica naturalmente não pode deixar de nos dar a conhecer, nos impressionem tanto, enquanto cenas idênticas da vida corrente não bastariam para nos abrir os olhos. Com efeito, tudo se passa como se as convenções da fotografia (as duas dimensões, o preto e branco, o enquadramento, as diferenças de escala entre os planos) contribuíssem para nos libertar das nossas próprias convenções. O aspecto um pouco fora do habitual deste mundo reproduzido revela-nos, ao mesmo tempo, o caráter inabitual do mundo que nos rodeia: ainda inabitual na medida em que recusa sujeitar-se aos nossos hábitos de percepção e à nossa ordem.

Alain Robbe-Grillet










Assassinato, Alfred Hitchcock, 1930.

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