quinta-feira, 8 de outubro de 2009

ANTI-CINEMA

Prólogo:

Não é meu hábito vir gastar palavras com filmes que estejam em cartaz, muito menos gastar meu tempo falando de filmes ruins. Quero deixar bem claro que o presente post, como todos, é uma impressão absolutamente pessoal, de um pequeno cinéfilo decepcionado, que não agüenta mais ver o público render-se a polêmicas vazias...


Anticristo, Lars Von Trier, 2009.


"Como caíste do céu, ó estrela da manhã, filho da alva! Como foste lançado por terra, tu que debilitava as nações!
Tu dizias no teu coração: Eu subirei ao céu; acima das estrelas de Deus exaltarei o meu trono e no monte da congregação me assentarei, nas extremidades do Norte;
subirei acima das mais altas nuvens e serei semelhante ao Altíssimo.
Contudo serás precipitado para o reino dos mortos, no mais profundo do abismo.
Os que te virem te contemplarão, hão de fitar-te e dizer-te: É este o homem que fazia estremecer a terra e tremer os reinos?"

Bíblia Sagrada, Isaías 14:12-17, descrição da queda de Lúcifer.



Capítulo 1: A AMBIÇÃO

Não há dúvida que o título Anticristo chame atenção, principalmente quando inserido no espantoso cartaz, sobre a emblemática relação sexual nas raízes de uma árvore que poderia remeter à árvore do Gênesis, portadora do fruto do bem e do mal. Mas será que realmente Lars Von Trier inseriu em seu filme alguma referência ao personagem apocalíptico cristão que permita um mínimo grau de pertinência ao título?

Não consigo me desfazer da sensação de que Trier tenha recorrido à Bíblia apenas como artifício retórico, utilizando algumas figuras míticas comuns a imaginários religiosos dos mais diversos, como o jardim original, a trindade divina e a necessidade humana por uma ascendência espiritual baseada na manifestação de Deus pela materialidade e beleza da natureza. Como dito, questões que longe de filiarem-se ao cristianismo, perpassam as bases de credos das mais distintas culturas; o que me faz insistir na pergunta: no quê o filme de Trier dialoga com a figura bíblica do Anticristo?

A histeria coletiva da imprensa diante do homem Lars Von Trier no último Festival de Cannes chamou muita atenção para a entrevista onde ele se proclamou o melhor cineasta do mundo. Cá entre nós, achei essa declaração extraordinária! Acredito muito que toda pessoa, para lidar bem com seu ofício (não apenas no âmbito artístico), precisa sim esmagar sua modéstia, confiar em seu potencial e dedicar seu melhor, estando mesmo propensa a acreditar que ninguém poderia fazer seu serviço melhor que ela mesma. Mas é importante entender: essa é uma prerrogativa humana, o que me leva a admirar o homem Trier, mas não o trabalho de suas mãos. Ora, uma coisa é um homem se proclamar o melhor cineasta do mundo; suas palavras, no máximo serão lembradas como um dado curioso de sua carreira. Outra, completamente diferente, é que um filme ateste a validade de tais palavras e mais, que ele mesmo, enquanto objeto autônomo, se proclame como o melhor filme do mundo... Pois é essa a impressão que Anticristo me passa desde o início, como se suas próprias imagens e recursos técnicos repetissem em cada cena: espelho, espelho meu, existe no mundo filme mais lindo/chocante que eu?

Capítulo 2: A ESTÉTICA


A primeira cena de Anticristo, desde sua primeira imagem, é suficiente para entender a postura que Trier sustentará durante todo o filme. É evidente que a trama baseia-se numa carga emocional muito forte, protagonizada por personagens autodestruídos, que pedem uma básica identificação dramática com o público para que o enredo funcione, pelo menos é isso que se esperaria aqui. Sabemos bem que não é fácil conduzir um filme inteiro com apenas dois atores (ainda mais quando suas interpretações são tão limitadas), mas não é raro encontrar exemplos bem conseguidos de experiências que conseguiram se sustentar até mesmo com apenas um protagonista em cena. Não vou debulhar as referências porque Anticristo já fez o favor de explicitar sua intertextualidade justamente nessa maldita cena de abertura (o prólogo).

A comentada releitura de outro famoso prólogo do cinema (Inverno de Sangue em Veneza, Nicholas Roeg, 1972 – esse sim catártico) talvez tenha sido a grande culpada pelo meu instantâneo distanciamento emocional para com todo o filme de Trier. Assim como Roeg consegue em tão pouco tempo construir uma ambiência que se intensificará por toda a projeção, Trier faz o mesmo, mas substituindo o medo/paixão contagiante do primeiro por uma atmosfera de frieza calculada para não contagiar ninguém. Dizem por aí que um final ruim pode ser suficiente para destruir um grande filme; aqui, mesmo sem termos o ‘grande filme’, vemos toda uma experiência ser destruída já em sua abertura. A estética de propaganda de perfume (você brilhou com essa, Hermano) fazem do P&B e da câmera lenta de Trier, recursos que podem significar tudo, menos um cinema dramático, menos a possibilidade de uma tragédia, o que me levaria quase a perguntar: o que o filme de Trier tem a ver com cinema?

Capítulo 3: A PORNOGRAFIA

Também foi pela imprensa que o cineasta cansou de alardear estar realizando um projeto de gênero equilibrado entre o horror e o pornográfico. Mais uma vez palavras que chamam atenção, mas que não se respaldam pelo produto filmado. Assim como a emoldurada penetração do prólogo (sempre ele...) não tem nada a ver com o cinema pornográfico, as cenas de tortura e de mutilações que recheiam o último terço do filme não carregam nenhum resquício do ânimo que deve estar associado a uma experiência que deseje transmitir o medo.

Se há um gênero em que Anticristo possa estar inserido é unicamente o do vergonhoso filão de espécies proliferadas a partir dos Jogos Mortais, série de filmes e derivações que se baseiam no choque diante de torturas, vísceras, sangue e perversidades que sim, chegam a ser pornográficas para com o uso do suporte cinematográfico, destruindo não só um gênero e uma linguagem, mas até mesmo seu público. Infelizmente a tentativa hercúlea que Trier abraça na primeira hora do filme, de fazer sua obra ser mais do que um encadeamento de situações trash, além de não funcionar, acaba não permitindo que o filme simplesmente enverede pelo delicioso caminho que também pode ser trilhado por um cinema trash.

O que fica é um enorme desequilíbrio de gêneros, assim como uma insegurança sensível do cineasta diante do objeto que carrega nas mãos. E mesmo reconhecendo que o último terço do filme funciona e impressiona, custo a acreditar que eu vá me lembrar de tudo aquilo daqui a alguns dias, o que justifica a urgência de minhas palavras e termina confirmando o interesse de Trier pelo pornográfico, afinal, Anticristo não termina sendo mais do que uma gozada rápida e desapaixonada, um esporro de sangue indolor e patético.

Capítulo 4: A HOMENAGEM

Eu já estava até simpatizando com o filme. Ora bolas, o final é bem curioso, bastante legal e bonito, quando de repente surge o letreiro: DEDICADO A ANDREI TARKOVSKI... E todas as minhas esperanças são mais uma vez destruídas... Eu poderia falar um bocado sobre isso, mas como o post já está grande e cansei de reviver o desgosto de assistir Anticristo, serei breve.

Se Trier pretendia que Anticristo partilhasse semelhanças com o cinema do mestre russo, deveria ter feito um pouco mais do que imitar seus cenários e recriar suspensões gravitacionais com toscos recursos digitais. Ele precisaria ter entendido que o cristianismo para Tarkovski é mais do que uma âncora narrativa, pois nele reverbera a essência de uma motivação maior, de uma arte que não pretende impressionar, mas sim expressar e contaminar seu público com uma espiritualidade latente; ele deveria ter feito a lição de simplesmente visitar ou revisitar a obra do mestre e constatar que a linguagem do cinema está muito além da beleza publicitária, que a verdadeira estética é capaz de anestesiar com pouco, com o mínimo, com uma simplicidade que emana naturalmente, sem se deixar perceber o manipular dos meios; ele poderia ter ao menos respeitado a memória de um homem que entendeu sua arte como poucos, poupando a menção de seu nome em vão, livrando-nos de uma heresia final contra o próprio cinema.



Epílogo:

Não tenho dúvidas que Lúcifer seria o título mais apropriado para o novo filme de Trier (uma bela e reluzente carcaça a esconder um duvidoso caráter). Só não digo que também seria um adequado vocativo para o próprio cineasta porque provavelmente isso o agradaria. Para ele, deixo apenas a pergunta divina:

É este o homem que fazia estremecer a terra e tremer os reinos?

2 comentários:

  1. Grande texto, Nando. Entre os melhores q li este ano e q li no teu blog. Não vi o filme ainda, como te disse, mas o texto me parece vesti-lo muito bem.Deu bem o tom das minhas expectativas quanto a "Anticristo": não um engodo, mas um filme q se trai bastante.E isso porque? Pq Trier, nessas entrevistas q andou dando, expôs demais o filme.Colocou-o como um produto de apenas metade de sua capacidade intelectual, como um "horror com pornografia", como um filme q pode chocar só com essa metade (vc imagine a bomba q pode vir da capacidade total.E vc imagine o ser humano q tem a capacidade de chegar ao seu limite de capacidade: será esse mesmo o Trier?). Trier acaba dando nome aos bois.E nomes errados,em todo caso.A declaração dele, de que é o melhor do mundo teve sim, seu lado extraordinário: como eu disse pra um amigo, serviu, simplesmente e também, para colocar "Anticristo" no mapa. Jogou um marketing até excessivo sobre ele.Aí, eu me pergunto: não seria um tiro no pé?

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  2. Estraçalhou, hein...
    Não vi o filme, mas confesso que fui atraído não pelo 'filme de Trier', mas pela polêmica que causou o marketing...
    Gostaria muito de ter visto no cinema, mas pelo jeito verei minhas vontades frustradas...
    Ainda irei assistir ao filme e, mais do que nunca, depois desse texto seu, sem maiores expectativas...

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