terça-feira, 27 de abril de 2010

AFINAL, O QUE É O NOIR?



Minha contribuição ao Dossiê Noir - MKO:

É natural que diante das coisas sintamos a necessidade da nomeação, do conceito. Nomear algo é estabilizar a inquietude, é crer no repouso que o domínio do saber oferece. Mas nem sempre saber é suficiente. Dentre as inúmeras curiosidades que envolvem o cinema noir vale lembrar que ele, durante boa parte de seu período áureo, sequer era pensado enquanto tal por seus criadores. A maior parte do noir clássico que hoje admiramos e debatemos enquanto gênero não foi conscientemente desenvolvida com o objetivo de ser noir, prova disso é que a própria nomenclatura noir (negro) só surge em 1946, pelo crítico francês Nino Frank. Com isso, se hoje ficamos estagnados nos perguntando ‘o que é o noir?’, contrariamos todo o sentido desse cinema que, apesar de esforçadas tentativas, permanece sem nome, sem definição, sem a necessidade do saber conceituado.

Para assistir um noir, seria interessante que nos despíssemos de todos os pré-conceitos que a literatura de cinema acumulou com o decorrer dos tempos. Intrigas policiais, mulheres fatais, crimes violentos, corrupções, são temas que, se enxergados como centro do interesse noir, podem engessar nossa visão aprisionando uma estética que é muito maior do que qualquer designação genérica. Apesar de a idéia do noir ter sido aceita, nunca se chegou a um consenso que significasse este nome em apenas um rótulo. Para ficarmos nos melhores pensadores, podemos encarar o noir como uma atmosfera (Durgnat), como um tom (Schrader), como um movimento (Place & Porfirio), como um fenômeno (Krutnik), como um estilo (Tuska) ou, nas palavras deste último, como uma perspectiva quanto à existência humana e a sociedade.

Thrillhers, melodramas e até westerns e ficções científica podem valer-se do noir; movimentos como a nouvelle vague e o neo-relismo italiano também são devedores de sua estética, onde ainda encontramos referências ao expressionismo alemão e o realismo poético francês; diante disso, podemos até tomar a característica evanescente do noir (presente na fumaça dos cigarros, no rastro dos revólveres e na própria inconcretude de seus personagens) como uma marca do próprio espírito noir, e talvez na palavra espírito encontremos significados que condigam em maior pertinência com o entendimento que buscamos fazer deste cinema.

Espírito do próprio cinema, o noir sempre foi um lugar para a crise, um espaço para o simbólico dos contextos sociais, devidamente filtrados sob a lente do olhar estético. Sua capacidade de abstrair os temas do homem do pós-guerra foi, certamente, o que levou tantos cineastas a dialogarem, como num estado inconsciente coletivo, através de filmes com mesmo sangue, mesma pulsação, mesmo fôlego de vida. A representação crítica do século XX americano é o que nos permite apreender o noir como uma espécie de espírito do tempo, afinal, é impossível ignorar que por meio dele levantou-se a problematização de inúmeros questionamentos que incomodavam o homem moderno, seja advindos da crise econômica, do crescimento urbano e da violência, assim como da modificação nos papéis dos sexos, onde a erotização, a desconfiança e a vulnerabilidade passaram a predominar no jogo de relações entre o masculino e o feminino. Mas é claro, serão principalmente os recursos técnicos em comum, empreendidos nestes filmes, que farão do noir um denominador único de luzes e sombras, de contrastes e formas que somente o cinema poderia conceber.

É fato que, em se tratando de um gênero que nunca existiu, o noir infiltra-se em todo o cinema, e qualquer tentativa de extratificação dos seus representantes será falha e incompleta. Nesse sentido, a lista aqui levantada, reflete a própria condição do noir, a de um estado do olhar que permanece em formação e que nunca se permitirá completo, definitivo. Se optamos por limitar sua amplitude entre os anos consensuais de 1940 a 1958, mesmo conscientes de que existe noir antes e depois destas datas, o fazemos por questões meramente didáticas, por método. A intenção de uma lista como essa é unicamente agregar o desejo por uma abertura maior, que ultrapasse os contornos do clássico e interrogue, por meio dele, anseios que continuam vivos no cerne da atividade cinematográfica geral. Assim como a política do autor em cinema foi uma conquista conseguida com o tempo e a determinação de um público (crítico e cinefílico), o noir enquanto categoria narrativa permanece disponível a sensibilidades que o encontrem, não como um substrato preso a materialidade de filmes específicos, mas como um desprendimento dos filmes, suspenso, muito mais inclinado aos espíritos que não o sabem, mas sentem.

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