terça-feira, 13 de abril de 2010

MERCADO HUMANO (BORDER INCIDENT)


Mercado Humano (Border Incident), Anthony Mann, 1949.

Especial Anthony Mann - MULTIPLOT!

É realmente incômodo, após assistir boa parte do que Anthony Mann filmou nos anos 40, perceber como seu cinema é pouco discutido ou sequer lembrado. Para mim, este contato mais profundo com Mann está sendo não somente um dos marcos de meu 2010, mas uma oportunidade de reflexão singular desse ato delicioso que é simplesmente escrever sobre um filme, convidar ao debate, fazê-lo sobreviver para além do tempo de projeção. E se em todos os filmes que eu comentei de Mann por aqui tive motivos para incentivá-los (vocês mesmo) a conhecerem seu cinema de perto (vão logo assistir esses filmes!), agora, mais do que nas outras vezes, impera em mim o desejo de que outras pessoas passem pelo que eu passei ao assistir Mercado Humano, filme ao qual posso, sem medo nenhum, chamar de obra-prima.

Pela primeira vez posso estar realmente dispensado de falar mal de atores, roteiros ou qualquer outro problema de produção, porque Mercado Humano dá conta de tudo isso e vai muito além; tanto que também já não adianta falar de noir ou de como Mann se aproximava descaradamente do western, porque este é um filme tão moderno que ultrapassa a condição de gênero. Muito mais do que pensar uma renovação em Mann, ainda que ela ocorra em todos os sentidos, encontramos aqui um filme que convida a uma reavaliação do próprio cinema nos idos dos anos 40, ou por que não, do que ainda hoje abordamos, retratamos e questionamos com o cinema.

Em primeiro lugar, sobre a renovação de Mann, podemos centrá-la em dois eixos que partem diretamente do lugar narrativo, lugar por excelência do diretor: o objeto narrado, pois uma história, até então, nunca tinha sido tão importante em seu cinema (como vimos, seu maior trabalho era driblar a mediocridade dos enredos, conseguindo, por milagre, transformá-los em estudos da alma), e o objeto que narra, pois enfim o tratamento estético particular de Mann não precisa entupir apenas minutos iniciais ou finais, podendo agora ocupar toda e qualquer cena da totalidade do filme (sinceramente, chega dá medo o que ele faz com a câmera aqui, principalmente nos closes... É como se tocássemos Dreyer, como se todos os planos de uma imagem, até os mais distantes, transmitissem a impressão do estar em close).

Em segundo lugar (e para mim mais importante), Mercado Humano pode ser encarado como uma obra de transição do próprio cinema americano, um ápice do clássico que dá continuidade a um projeto de cinema o qual podemos enxergar o início lá em 1940, no eterno Ford de Vinhas da Ira. É preciso contextualizar que o filme de Mann narra os problemas com a imigração ilegal dos mexicanos para o território americano, e como alguns deles se submetiam a uma espécie de tráfico humano para conseguir adentrar na desejada nação, uma espécie de retorno à escravidão (sinceramente, poucos temas são mais atuais do que esse ainda em 2010). Como em Ford, deparamo-nos com homens que foram destituídos da terra, expulsos de uma geografia insana, pairando incertos por um mundo que já não encontra lugar digno para que eles sobrevivam. E se em 1940 Ford agregou toda a crueldade da América naquela cena monstruosa onde víamos um trator demolir a casa de uma família e prosseguir até passar por cima da sombra daquelas pessoas atropelando qualquer esperança que poderia lhes restar, em 1949 Mann encerra a década com uma das mais violentas cenas que o cinema já concebeu, permitindo que um dos homens infiltrados entre os mexicanos para desmascarar o tráfico seja atropelado por outro trator aos olhos de seus amigos e, muito pior, aos nossos olhos. Com esta cena – e muitas outras, e muitos outros filmes – Mann confirma ser um cineasta da desesperança.

Enfim, vou controlando aqui minha vontade de escrever mais pra sobrar um tempinho de ir rever o filme – se bem que esse deve ser um daqueles ao qual revisitarei sempre, por toda vida. E apesar de este ser meu último texto previsto para esta primeira parte do Especial (spoiler de planejamento, tem mais coisa vindo pela frente), não estou querendo criar nenhum ar de despedida. O problema é que eu não consigo me desapegar daquela sensação tremenda que é ver um filme e sentir que preciso por um tempo me despedir do mundo corriqueiro para viver mais. Tchau.

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