terça-feira, 13 de abril de 2010

TWO O'CLOCK COURAGE


Two O'Clock Courage, Anthony Mann, 1945.

Especial Anthony Mann - MULTIPLOT!

Num mesmo movimento seguimos um homem perambulando trôpego pela calçada. É noite. Ninguém mais ao derredor. Apóia-se num poste. Subimos até as placas que nomeiam as ruas. Voltamos ao homem. E quando ele vira o rosto vemos o sangue escorrendo pela face de alguém que não tem nome, memória ou passado. O prólogo de Two o’clock Courage poderia facilmente figurar num rol de ‘melhores aberturas do cinema’, pela densidade, duração e sobriedade com que somos inseridos na experiência fílmica. A câmera de Mann, habitualmente oculta (como de fato se tornará no decorrer deste filme), permite-se aqui um dos mais belos fôlegos do período negro do diretor. É por ela que percebemos estar diante de uma situação incomum, embriagada, de um onírico palpável ao ponto de ser real. Por ela a sugestão do mundo atinge um estado quase metafísico, que apesar de brevemente dilacerado pela intromissão de outros personagens, não deixará de sugerir-se até o fim do enredo.

O homem sem nome (Tom Conway), acometido por um surto de amnésia, descobrirá estar envolvido em um crime do qual pode carregar a culpa, e em pouco mais de 60 minutos de filme (CARAMBA! Como é que Mann conseguia fazer tanto em tão pouco tempo?), veremos o acúmulo de pistas, descobertas e peripécias que o farão adotar diversas identidades, ora levando-o ao lugar de assassino, ora inocentando-o. É muito difícil não nos lembrarmos da condição hitchcockiana do falso culpado, não somente pelo óbvio mote central, como pela direção a que Mann se permite, seja com a abertura notável do humor (especialmente na brilhante participação de Ann Rutherford) como pela manifestação do suspense e o metafísico núcleo motor que lhe move. Aliás, também é difícil não enxergar em tudo isso um ensaio do que Mann faria em outros filmes seus, como The Naked Spur, quando em mais uma de suas geniais aberturas (talvez minha favorita), vemos um homem sem corpo escondido atrás de uma montanha causando furor em seus perseguidores. É padrão que no universo de Mann os homens sejam incompletos, que lhes falte um nome, um corpo, um caráter, para que o desenvolver do filme lhes restabeleça uma plenitude que dependa do movimento instaurado (eis o lugar onde o caráter trágico do cinema de Mann pode começar a ser pensado, mas isso fica para outro momento).

E se aqui temos o movimento num grau dinâmico que extrai da postura narrativa – o contar da história – o máximo de vigor e fluência, também vemos a construção desse movimento como um ponto de criação, de nascimento das idéias e das formas que constituem o material final do filme. Isso porque o roteiro dentro do filme (homônimo ao mesmo) além de surgir como o McGuffin da trama, sugere o processo de escritura ao qual Mann nos convida a participar. Vemos nomes serem atribuídos ao protagonista e eles mudam todo o tempo; a cada cena ele se transforma exatamente como se estivesse ainda sendo delineado pela mente imaginativa de um roteirista, e o vigor com que Mann nos oferece essa co-autoria é o que faz de seu filme, mais do que um ato de coragem, um ato de humildade e descontração que elevam o potencial do entretenimento a uma auto-reflexão genuína. E se ele faz isso tão bem num emaranhado de personagens e nomes que se tornariam armadilha nas mãos de cineastas desavisados, prova que já aqui possuía um apurado senso daquilo que coordena o existir de um filme, apto para jogar com as peças e nos convidar a isso, disposto a imprimir em cada reviravolta um sorriso enorme, pois é impossível não perceber como Mann se divertia em contar uma história.

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