terça-feira, 13 de abril de 2010

STRANGE IMPERSONATION


Strange Impersonation, Anthony Mann, 1946.

Especial Anthony Mann - MULTIPLOT!

Novo post no MAKING OFF.


Alguém aí já olhou para o espelho e teve a impressão de estar se enxergando pela primeira vez? Isso não é uma coisa que acontece sempre. Apesar de diariamente esbarrarmos em espelhos não é todo dia que, de fato, nos olhamos. Não consigo deixar de pensar Strange Impersonation como um filme em que Mann se dedicou a refletir este estranhamento do olhar pra si mesmo, do alguém que num ato involuntário enfrenta um processo de auto-descoberta em proporção tamanha, capaz de alterar não só o rumo da própria vida, mas do mundo ao redor.

Poucas vezes o cinema de Mann terá aberto semelhante rastro de destruição moral, apto mesmo a ser incluído na categoria baziniana de uma estética da crueldade. Isso porque sua espantosa protagonista Nora (Brenda Marshall), ao olhar-se no espelho, vê não somente a maldade mundana na qual está mergulhada, mas descobre-se igualmente capaz de dissimular, mentir e destruir; descobre-se humana. O acidente que lhe desfigura o rosto é o que lhe permite enxergar; e toda a transformação que enfrentará só será possível por esta irremediável perda, não a perda de uma pele, a qual será reconstituída com perfeição pela ciência, mas a perda de um olhar anterior, de uma inocência original.

Acompanhar a progressão da carreira de Mann nesta década negra é deixar o queixo cair e ver como questionamentos fundamentais ao homem foram abordados na dinâmica de seu olhar nada inocente. Um cinema de queda, de avesso, de contrários, por mais que a agilidade de seu bem-narrar disfarce tais conteúdos (outra face da subversão).
Um olhar superficial poderia facilmente acusar este filme por sua superficialidade.

É impossível não se pegar rindo com alguns ‘descuidos’ tanto de roteiro (coincidências e acasos que beiram o sobrenatural, médicos que fumam numa sala de cirurgia) como de decupagem (inacabamento de alguns cortes, postura anti-natural dos atores), mas quando chegamos ao final de tudo também não dá pra ignorar como cada elemento foi coerentemente elaborado de acordo com o descuidado mundo criado por Mann, como dito, um mundo avesso. Cada inverossimilhança plantada em suas imagens condiz com o inverossímil da alma, nesse sentido, Mann nunca esteve mais próximo de Lang, que na mesma época legou um dos cinemas mais malditos que já se conheceu (aliás, este é um filme irmão de The Woman in the Window – 1944; não aprofundo a comparação pra não estragar a surpresa). E como em Lang, o que vemos aqui é uma manipulação que excede o tratamento cinematográfico, através de uma lógica desconexa e imprevisível, pautada por uma espécie de Destino (sim, o mesmo dos gregos).

O olhar de Nora ao espelho é um olhar de convencimento, de quase desistência, principalmente depois que o reflexo converte-se no expressivo julgamento que lhe assolará a derradeira impressão de felicidade. Aqui, Mann deixa muito claro que descrer na esperança é sua maneira de não sucumbir, de não desistir junto à personagem, iluminando um novo esclarecer de sua insistência ao noir. O cinema, mais do que um ato de criação (e para que assim o seja), também destrói, desfigura. E não são muitos os diretores que têm a coragem de declarar isso. Apesar de esbarrarmos com filmes diariamente, não é todo dia que, de fato, encontramos o cinema.

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