sexta-feira, 5 de junho de 2009

O MISTÉRIO EM MIM


O Segredo de Mr. Blanchard, Alfred Hitchcock, 1956.

Escritora de romances policiais na linha de Agatha Cristhie debruça-se sobre a vida dos vizinhos para especular idéias e esboçar suas tramas repletas de crimes. Nessa obsessão passa a acreditar que o vizinho, Mr. Blanchard, assassinou a esposa. Após vê-la sã e salva numa simpática visita, percebe que seu exótico isqueiro de prata (quebrado) foi roubado, deduzindo que a Sra. Blanchard é uma cleptomaníaca. Termina por receber o isqueiro de volta, gentilmente concertado como um presente afável.

Entre peripécias e reviravoltas, o último episódio de Hitchcock em 1956 (ano que ainda nos brinda com O Homem que Sabia Demais e O Terceiro Tiro... preciso arrumar um adjetivo melhor que ‘gênio’ para esse sujeito) deve ser lembrado como uma assinatura pessoal, uma confissão de sua necessidade criativa e obsessiva representação do mundo, pelo menos do mundo como ele enxergava. Tomemos as primeiras palavras em off pela personagem escritora:

“Pobre mulher. É uma vergonha eu ter de matá-la desse modo. Um psiquiatra diria provavelmente que eu tenho alguma tendência homicida escondida ou qualquer coisa. Quem sabe? Se não me desafogasse escrevendo histórias de mistério, eu poderia acabar cometendo um assassinato. Ufa! Estou satisfeita que isso se passe desse modo, claro. É muito mais sadio. Também, pagam melhor. Além disso, eu afirmo que sou perfeitamente normal.”

Óbvia a identificação entre autores. A explícita abordagem autobiográfica de Hitchcock é ainda confirmada pelo auto-retrato de Van Gogh pendurado na sala de estar da personagem. Temos aqui uma especularidade notável entre autor / personagem capaz de gerar inúmeras reflexões não apenas sobre a criação artística, mas até sobre a capacidade de imaginação humana. Afinal, é pela imaginação da personagem (nem podemos chamar de ponto de vista, pois ela nada vê) que somos conduzidos no decorrer das coisas, dos acontecimentos que não se confirmam acontecidos, e ao contrário, se frustram por não se concretizar (mórbida a decepção da ficcionista ao descobrir que a vizinha não está morta...).

O jogo com o visto e o não visto, já partilhado no episódio O Caso do Sr. Pelham, parece aqui retomado e aprofundado sob certos aspectos relacionados à percepção humana do mundo. Se naquele caso eu havia mencionado minha preocupação com a limitação dos sentidos físicos para se apreender o mundo e as coisas, aqui a problemática abarca complexidade similar: até que ponto o que imaginamos do mundo pode tocar na realidade dele?


Essa é a pergunta desenvolvida por Hitchcock no episódio em questão e em toda sua obra. Praticamente todos os seus filmes lidam com personagens imaginativos, e para não debulharmos dezenas de títulos podemos nos limitar ao de mais evidente relação com o presente exemplo: Janela Indiscreta. Ora, o fotógrafo vivido por James Stewart é quase um duplo da escritora interpretada (exageradamente proposital) por Mary Scott. Ambos necessitam espionar seus vizinhos para completar suas vidas medíocres e desinteressantes. Isso mesmo. Não quero concluir que todos nós, espectadores, vivamos mediocremente, mas como explicar essa pulsão pela vida do outro, por aquilo que não nos diz respeito, mas gostamos de espionar numa telinha?

A alteridade torna-se fonte de interesse para o criador e para o receptor artístico, afinal ambos são lados de uma mesma moeda: a caríssima moeda humana. Nesse interesse pelo externo uma forma de perscrutar o interior de si, de visualizar parte daquilo que desconhecemos em nós mesmos. Nesse sentido, uma ‘espiada’ em Bergson pode ajudar:

“Portanto ela [a matéria] não é, ela não pode ser nada daquilo que conhecemos, nada daquilo que imaginamos. Permanece no estado de entidade misteriosa. Mas nossa própria natureza, o papel e a destinação de nossa pessoa, permanece envolvida em grande mistério também. Pois de onde surgem, como nascem e a que devem servir essas sensações elementares, inextensivas, que irão se desenvolver no espaço? É preciso colocá-las como outros tantos absolutos, cuja origem e fim não se conhecem. E, supondo que seja preciso distinguir, em cada um de nós, o espírito e o corpo, não se pode conhecer nada do corpo, nem do espírito, nem da relação que mantêm entre si.”

E se tudo termina em mistério, num devir fenomenológico escorregadio, nada melhor do que render-se ao ato de imaginar... Por isso a insistência de Hitchcock, em obra após obra, imaginar além dos limites, propondo situações extremas, jogando com as incertezas, instaurando o medo em nós.

Afinal, o que pode ser mais assustador do que o nosso Eu?

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Algo para mim?