sexta-feira, 5 de junho de 2009

À MERCÊ DO HUMANO


Colapso / Breakdown, Alfred Hitchcock, 1955.

Grande empresário acaba de demitir funcionário por telefone e faz pouco caso de sua tristeza, de seu choro piegas. No caminho para casa, o empresário se envolve num trágico acidente que mobiliza todo seu corpo, não conseguindo fazer movimento nenhum, nem sequer piscar, nem emitir ruído, absolutamente nada, a não ser um leve movimento com o dedo mínimo. Os homens que aparecem no lugar, pensando que ele está morto, depenam o carro e roubam-lhe a roupa, até que uma equipe de emergência surge para socorrer o local. Todos continuam sem perceber que ainda há vida no homem. O que salvará o moribundo é o escorrer de uma lágrima.

Esse era o episódio que eu mais tinha vontade de assistir por causa da presença do grande Joseph Cotten, e sem dúvida, foi mais um excelente desempenho por parte do ator. A técnica desenvolvida por Hitchc também é, no mínimo, notável. Chega a ser absurda a multiplicidade de ângulos sobre o corpo acidentado, estático. A crescente agonia é transmitida com closes muito aproximados do corpo (adequado para TV, mas ao mesmo tempo ousado, principalmente um ângulo da face retorcida que dura mais de 2 minutos na tela) enquanto ouvimos em off seus pensamentos desesperados. Enfim, acho que é praticamente impossível descrever aqui o que esse pequeno filme dá a ver, especialmente porque eu tive dificuldade em controlar minhas emoções com o que eu vi. Uma coisa é certa: poucos são os paralelos possíveis de se traçar com outras obras do autor e eu diria, do universo cinematográfico em geral.

O fato dos poucos paralelos não significa algo necessariamente positivo, mas talvez indique que Hitchc passou um pouco dos limites aqui... Ver o sofrimento desse homem e ainda por cima ele sendo roubado por outros não foi uma coisa agradável e acho que Hitchc nunca foi tão longe e tão pessimista para mostrar a crueldade desse bicho chamado homem. Todo o filme se estabelece como um exercício de angústia, não apenas de suspense, e nessa exacerbação do suspense acho que justifico o extrapolar dos limites que critiquei. Na verdade, minha reflexão sobre o filme tem me levado a caminhos que muito além do suspense se aproximam mais diretamente da criação artística em si. Conheço as acusações que uns engraçadinhos fazem dos amantes de Hitchcock e de como estes (eu) vemos muito onde talvez não haja nada mais que uma descontração. Felizmente o próprio Hitchc sempre vem ao meu favor com suas próprias palavras.



Vejam seu comentário após a exibição desse episódio:

“É o que chamo de escapar por um triz. Me lembra minha própria situação. Imagine, o terror de estar dentro de um televisor... sabendo que o telespectador pode te desligar a qualquer momento... e não poder fazer nada para evitar. E eu passo por isso toda semana. Meu consolo é que algumas partes do programa são tão fascinantes que despertam a paixão no espectador. Uma dessas partes vem bem agora. E depois eu volto. (pausa para o comercial)”

Claro, tudo dito em tom de humor. Mas toda piada tem algo sério a dizer... Se ontem eu comentei como as palavras de Hitchc eram desnecessárias para justificar as imagens legadas, hoje, nessas palavras a verdadeira chave para entender o mórbido tom metafórico que o mestre usou para refletir sua própria posição de autor.

Afinal, todo autor, não importa a manifestação artística, deve sentir esse mesmo temor hitchcockiano, de estar à mercê de um público, ou para não usar termo tão mercantilista, à mercê de um Outro dotado de arbítrio próprio e passível de abandonar a obra quando quiser ou julgá-la e interpretá-la como bem entender. Quando lidamos com uma obra, é verdade, lidamos com seu autor, e da mesma forma que o petrificado Joseph Cotten, nada mais pode ser feito, nada pode ser movido e alterado na obra, restando como única coisa viva do autor na obra seu próprio pensamento, suas intenções, ponto de vista, motivações estéticas e ideológicas, enfim, a ação de uma voz em off ecoando e atingindo nosso próprio pensamento. Sob lógica tão radical identificamo-nos com aqueles desprezíveis indivíduos que roubaram e pensaram estar o homem morto. Se adentrássemos nas inúmeras raízes e discussões que as teorias da recepção artística já geraram seríamos obrigados a prolongar esse post ainda mais (tá difícil ser curto), mas podemos concluir através dessa reflexão que o autor precisa sim de alguém para lhe perceber a vida. Mas que não nos precipitemos. Reconheçamos ou não o fôlego de um verdadeiro autor, ele permanecerá vivo esperando por nós.

Continuo indo longe...

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