sexta-feira, 5 de junho de 2009

POR UMA IMAGEM PURA

Um casal. Uma briga. Um marido que num impensado ato de violência fere sua esposa mortalmente. Um cadáver. Como se livrar dele?

O 7º episódio dirigido por Hitchcock para o seriado televisivo não se preocupa em contar nada além do que o descrito nas linhas acima. Não há sub-tramas, preocupações secundárias, absolutamente nada que ultrapasse o interesse desse monstruoso marido em se livrar de sua mulher morta. Sequer há a preocupação em criar empatia por qualquer dos personagens. Nem mesmo pela esposa!!! Isso mesmo. A danada parece ser tão inconveniente que chega pensamos ser merecido o castigo... OK, mas nada justifica a violência de uma morte, então nem ela nem ele merecem nossa identificação.

Foi diante dessas constatações que eu me perguntei: o que Hitchc quis mostrar com esse filme???


Uma Milha a Mais / One More Mile to go, Alfred Hitchcock, 1957.

Incontestável: esse é um dos episódios mais visualmente impressionantes que Hitchcock poderia ter feito. Não acredito que valha o esforço de contá-lo em palavras, mas sou obrigado a fazer isso para que vocês possam entender o que quero dizer. Abrimos o episódio observando o casal pelo lado de fora da casa, pela janela. Não podemos ouvir a briga. Somos condenados apenas a olhar, impunes, cúmplices. Permanecemos por 10 minutos submersos nos mais rigorosos princípios do cinema mudo, acompanhando o colocar do corpo no porta-malas do carro, e a fuga do assassino para um lugar distante. Até que o policial surge. Impedindo o prosseguimento da viagem por causa de uma lanterna apagada na traseira do automóvel...

A partir daí Hitchcock joga com todas as possibilidades narrativas para criar seu caro e querido suspense, conseguindo nos fazer até simpatizar com uma criatura abominável como a desse marido. Bem, acho que pela primeira vez nos meus comentários aos episódios não vou contar o desfecho, pois me parece coisa desnecessária. O próprio Hitchc me parece não ter desejado que tal episódio acabasse, e por isso talvez ele tenha feito de Psicose uma variação direta de toda essa cena com o carro.


Psicose, Alfred Hitchcock, 1960.

Incontestável: a cena em que Marion Crane foge no início de Psicose é uma das mais bem trabalhadas situações de suspense da história do cinema. Os paralelos estéticos entre essa sequência e o episódio em questão são incontáveis. Os ângulos, os policiais, a duração do tempo, os recursos do roteiro, tudo parece existir em reflexo, como se o vidro do carro não almejasse a transparência, mas sim a capacidade especular de interligar esses personagens entre si, cada um culpado por seu crime, em uma terceira identidade com aqueles que os vêem olhos nos olhos: nós.

Eu não consigo deixar de me questionar sobre a abertura que esse campo de visão oferecido por Hitchcock problematiza a respeito da posição do espectador. É infinito o número de filmes que apresenta o interior de um carro através do seu pára-brisa, mas o que Hitchcock propõe através dessas tomadas internas vai muito além de uma simples e elementar disposição cênica espacial. A aproximação ao volante, o auxílio musical (sempre assombroso), a intromissão a esses rostos contorcidos pela culpa e o medo, da forma específica como o mestre filma, transformam a janela do carro em uma abertura para o interior da alma, não apenas dos personagens envolvidos, mas da alma que impregna a imagem cinematográfica.

E aqui minha resposta: Hitchc não quis mostrar nada com esse filme...

Suas palavras ao fim do filme confirmam: “...o tipo de calma perpetrado somente em nossa mente. Um golpe suave. Um som de tiro. Sem balas, gritos ou feridas. Sem manchas, sem fumaça nem espirros. Nós usamos somente o assunto mais puro.”

A imagem em Hitchcock mais uma vez alcança uma autonomia com a relação narrativa que não permite identificar quem está submisso a quem. Pois realmente não é isso o que deveria interessar ao cinema. Ao mesmo tempo em que o pendor formalista do suspense hitchcockiano consegue limpar a imagem de interferências exteriores ao desenvolvimento emocional de uma cena, o assunto aí depositado também é conduzido ao extremo da pureza, num interesse que se livra das sobras e dos excessos e que provoca o equilíbrio entre forma e conteúdo, ainda que ambos estejam no limite de suas possibilidades.

Assim, o objetivo de um episódio como esse não consiste em movimentar um personagem adiante, mostrar uma situação cotidiana, ou sequer contar uma história. Nem deveríamos estar falando de objetivos. Se ousamos tentar compreender a lógica do que Hitchcock faz aqui, para além do efeito (e que efeito!) emocional proporcionado, precisamos nos aprofundar ainda mais na pureza do desespero da consciência em que todas essas imagens estão calcadas, ou seja, adentrar justamente na pureza das próprias imagens e de sua montagem, pois nada me parece completo além delas.

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