sexta-feira, 5 de junho de 2009

SÁTÁNTANGÓ

7 dias. Ontem terminei de combater Sátántangó (Béla Tarr, 1994). Sétimo dia de combate. E é como se um mundo tivesse sido criado ante meus olhos. O mesmo período da criação divina.

Importante mencionar que ainda não li nada sobre o filme. Excepcionalmente, escolhi experimentar todo ele desconhecendo qualquer opinião prévia para não me contaminar. Difícil pra mim, pois inabitual.

Quando trombei em Gerry pensei em escrever o maior post, mas acabei me estendendo por pequenas doses diárias (7 dias). E aqui a idéia do maior funciona. Para o mais longo filme do ano... Não pude evitar. Abaixo, palavras que tentam resumir, cada um dos 12 episódios esforçando-se para ganhar um sentido transmissível, mas que parecem não querer desgrudar de mim para alcançar outros. Sei da inviabilidade do post. Quem quiser ler, leia. Béla Tarr também sabia da inviabilidade de sua obra. Só quis imitar. E não me envergonho. Pois em cada frase a possibilidade do poético sussurra. Em cada imagem que não me importei em ilustrar aqui. Pois não adiantaria. Com tudo isso o desejo de não me esquecer jamais, e de contagiar algum outro necessitado que como eu, precise de vida.



AS NOTÍCIAS É QUE ESTÃO CHEGANDO
Um grupo de vacas e bois.
Dois homens e uma mulher. Sexo. Dinheiro. Ambição. Humanidade.
Um dos meus episódios favoritos, talvez por ter sido o primeiro, o iniciador do estranhamento, a grande responsabilidade pela sedução imediata, pela coragem da entrega. Nele, uma das cenas que mais gostei em toda a jornada:
Enquanto os 3 personagens conversam, a câmera se aproxima num eterno zoom até a janela, permitindo encher a imagem com um pequeno detalhe da cortina de renda, sobre o vidro embaçado pela chuva. Essa é exatamente a concepção que eu guardo de um momento excepcionalmente cinematográfico. Um diálogo, algo, qualquer coisa acontecendo, mas o interesse da câmera num detalhe que não seria percebido durante a duração da tola realidade que vivemos. Nisso, a plenitude da vida.
Quanto à questionável afirmação da “tola realidade”, me resguardo atrás de algumas falas do referido diálogo, que como todos, é brutalmente poético:
Descansarei meus pés todo dia, em uma bacia de água quente
Ou serei vigilante em uma fábrica de chocolates
Ou porteiro em uma residência de senhoritas
E tentarei me esquecer de tudo
Uma bacia de água quente e nada para fazer
Só contemplar a passagem desta vida de merda.


RESSURREIÇÃO
Dois ex-presidiários caminhando. Um deles, Irimiás, um poeta em potencial.
Sem dúvida, o mais próximo esteticamente de Gerry. Na primeira cena, o acompanhar da caminhada, contra nós, o vento arrastando as folhas, os papéis (??), uma imagem apocalíptica. Mas na caminhada a ressurreição, o gozo da liberdade reprimida pela outrora estadia na prisão.
Também quero andar.

CONHEÇA ALGO
Um velho gordo sentado. Escrevendo. Bebendo.
Quando percebemos que ele registra absolutamente tudo que acontece ao seu redor (a vida dos 3 personagens do primeiro episódio se desenrolando na casa em frente à dele) e com sua própria vida (a hora em que seu licor de frutas acaba), identificamos imediatamente o alter ego de Béla Tarr.
Na necessidade do registro, a Arte. Em cada detalhe, a Vida.
Belo momento: acidentalmente o velho cai no chão. Derruba uma estante. Fica. Percorremos seu corpo inerte da cabeça aos pés, lentamente, acompanhando a fraqueza da respiração. Aí um dos melhores símbolos para explicar Sátántangó: a respiração. É como se o filme fosse um longo ato de simplesmente inspirar e expirar. Num minuto o tédio, no outro o êxtase. Como se cada imagem molestasse minha alma entrando, imprimindo-se com vontade de ficar pra sempre, mas saindo, fugindo e gritando: “sou apenas uma imagem”... Apenas.
Sou apenas um ser vivo.

O TRABALHO DA ARANHA
Uma conversa no bar. Desentendimento. A mulher.
Ela senta. Pede algo para beber. E estranha. O cheiro.
Abaixa-se. Sob a mesa respira (confirmo minha teoria).
Inspira.
Diz sentir um cheiro de terra.

DESCOSTURAR-SE
Inquestionável: o melhor episódio.
Aquele que conseguiu massacrar meus sentidos, questionar as frágeis convicções, duvidar da vida.
Uma menina. Levada pelo maldoso irmão a plantar seu dinheiro para que nasça uma árvore de moedas.
A espera pelo nascimento. Longa. Tediosa.
E surge o gato. Uma brincadeira inicial. Até que ela percebe:
Posso te fazer o que eu quiser
Sou mais forte que você

E eis que ela se torna humana.
Os intermináveis minutos de massacre ao pequeno animal são dos mais cruéis que vi em toda a vida. Ela o estrangula, o sufoca, aperta-o dolorosamente parecendo apreciar entre as mãos a possibilidade da morte, o controle do fôlego. Rolam na terra. A areia levanta. Ah, a areia... A origem do mal. Tenta afogá-lo numa tigela de leite. Pára. Abandona-o fraco. Deixa-o beber do leite que envenenou.
Volta ao lugar da árvore. O dinheiro não está mais lá. Briga com o irmão e percebe que também existe alguém mais forte que ela. Sai. Caminha com o cadáver do animal sob o braço. Num lugar em ruínas deposita-o ternamente sobre a terra. Deita-se ao seu lado. Engole o resto do veneno que usou para matá-lo...
E eu... Completamente descosturado em tudo que acreditei até aqui, em toda a fé que construí...
Já não sei se vivo.
Apenas.

O TRABALHO DA ARANHA 2 (OS MAMILOS DO DIABO, SÁTÁNTANGÓ)

Talvez o mais deprimente de todos. Uma longa dança no bar. Alegria vazia.
Corpos num movimento que freneticamente tenta lhes lembrar que vivem.
E onipresentes: as aranhas...
Elas teceram suas teias em cima das taças, copos, cinzeiros,
ao redor das patas das mesas e cadeiras.
Então, com fios secretos, ataram-nos (...)
Teceram uma teia sobre o rosto dos adormecidos, seus pés, suas mão, (...)


IRIMIÁS PRONUNCIA UM DISCURSO
O luto pela criança.
Qualquer palavra minha é excesso.

PERSPECTIVA DO FRONTE
O início do êxodo.
Irimiás os convence, com belas palavras, ser possível iniciar uma nova vida, num novo lugar. Abandonam o vilarejo e chegam numa mansão em ruínas.
A caminhada cresce em sentido. A possibilidade de um novo começo, uma nova nação. (preciso descobrir um mínimo sobre a Hungria para entender melhor isso)

IR AO CÉU? TER PESADELOS?
Desde o episódio anterior uma confusão em mim.
As coisas ficam mais densas. Os significados mais escorregadios.
3 homem andando. Em frente às ruínas uma neblina. Irimiás cai de joelhos.
A graça.
Irimiás procura um homem que vende armas, homem que não consegue dormir bem a 25 anos.
Seu amigo reza o Pai Nosso quando deitam para descansar.
É possível dormir assim.

PERSPECTIVA DA RETAGUARDA
A perda da fé.
O grupo duvida de Irimiás, de sua capacidade, das intenções. E a dura retomada da jornada me confirma o êxodo, o trajeto bíblico de uma nação perdida, que crê com dificuldade, mas que há de encontrar salvação.
Salvação...

SÓ TRABALHO E PROBLEMAS

Dois guardas escrevem um relatório.
O registro da vida mata.

O CÍRCULO SE FECHA

As últimas anotações do velho gordo em sua casa.
A convicção de ver o próprio Béla Tarr aqui.
Uma visão. Um sino. A direção do céu.
Antes de fechar sua janela, de mergulhar nas trevas e desistir, o velho escreve. E constata que presenciou:
‘Uma Revolução Cósmica’
Voltamos às origens.
O ideal moderno.
A escuridão revelada na imagem que ainda tenta enxergar.
Do outro lado, apenas:
EU

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