sexta-feira, 5 de junho de 2009

O DESERTO E A ALMA


Gerry, Gus Van Sant, 2002.

A seguir, foi Jesus levado pelo Espírito ao deserto (...)
Mateus 4:1


Como não reconhecer a insistência de um tema que me persegue, me constrange, me seduz sem nenhum pudor e me aprisiona? O deserto, sem dúvida, foi meu grande prazer estético do ano. A Mulher das Dunas, Zabriskie Point e Gerry formaram uma inevitável trilogia na minha memória, pela proximidade com que os toquei, pela força como eles me tocaram, pela possibilidade do sublime concretizado. Invadindo meu panteão de fetiches estéticos em cinema (escadas [herança hitchcockiana], estradas, etc) o deserto tornou-se o grande espaço humano, de vida, de paz.

As imagens de Teshigahara, aliadas pelas palavras de Kobo Abe, foram o pontapé inicial. Na verdade foi o livro quem me ajudou a esclarecer um pouco do mistério. Abe gasta parágrafos, páginas inteiras comentando o fascínio do deserto, da areia, desse lugar que pela imensidão e pelo vazio, resiste como o mais dinâmico de todos. Ele argumenta que ao contrário do que imaginamos, no deserto há muito mais movimento do que num ambiente urbano. A constante movimentação da areia, o levar do vento, a mutação geográfica diária, fazem do deserto um lugar de renovo, de transformações, que obviamente incidirão sobre aquele que se abandonar nele.

O segundo passo foi em Antonioni. Não apenas o filme citado, mas a completude de sua obra. O Deserto Vermelho e Profissão: Repórter são filmes que também refletem a região desértica e o humano. E até mesmo sua trilogia da incomunicabilidade já se debruçava num urbano estranhamente vazio, árido. Mas Zabriskie Point esclareceu. Iluminou os demais filmes e me explicitou a carga metafórica desse ambiente natural. O deserto e a alma. Nele, a alma do mundo. Dinâmica, como em Abe, enigmática, reflexiva, subjetiva. O deserto metafísico de Zabriskie Point e a culminante orgia sexual (também presente em Teshigahara) me levaram a origem. Ao limiar da vida. Do homem e da terra. Ambos, um.

E em Gerry o clímax. A compreensão de que no deserto há o sagrado. A lembrança do Cristo, em seus 40 dias e noites de tentação, de Moisés, sendo chamado por Deus no deserto, dos israelitas... enfim, o deserto é um dos principais cenários bíblicos! E só fui me lembrar disso com Gerry. Isso, porque imaginei que um filme a respeito de Jesus nesses 40 dias deveria se parecer com o de Van Sant.

E foi aí que eu fiquei. Que aconteceu em mim a purificação. Como se tudo estivesse planejado e bastasse o ato. A entrega. Quando me deparei com Gerry, a pergunta que mais queria me pegar era “O que eles querem com isso?”, querer entender, saber qual era a coisa, justificar a morte... Mas justificar é fácil. Nominar tranqüiliza, empobrece. Por isso consegui fugir da tentação. Entendendo que perguntar algo desse tipo seria o mesmo que não entender nada da obra. E na fuga fiquei. Na alma.

Uma vez que a terra é varrida por correntes de ar e de água, talvez seja inevitável que se forme a areia. Enquanto o vento soprar, o rio correr e o mar agitar-se, a areia brotará do solo grão após grão, e serpenteará por toda parte como um ser vivo. A areia jamais repousa. Silenciosa, porém infalivelmente, ela vai violentando, destruindo a superfície da terra...
A Mulher das Dunas, Kobo Abe.

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