sábado, 27 de junho de 2009

INVESTIGAÇÕES



O ângulo acima, muito além da estesia provocada simplesmente pela beleza que impõe, sintetiza todo o universo criado por Bruno Dumont em A Humanidade (1999), seu filme de maior público e retorno crítico até o momento. Nele, temos o protagonista (um policial envolvido no caso de uma menina que com apenas 11 anos foi encontrada estuprada e morta) dentro de um museu que está organizando uma exposição com os quadros de seu avô. Não por acaso, parado em frente de uma tela com uma inocente menina... Mas não é para o quadro que ele olha. E ainda que sua cabeça esteja voltada para o chão, não hesito em afirmar que também não é lá que sua atenção está concentrada.

Um crime.

Ponto de partida para uma intriga policial que ultrapassa em todos os aspectos a qualquer convenção de gênero. Pois nele se encontra o motivo para questionamentos maiores, que não se importam com a necessidade de justiça, vingança, ou outras conseqüências emocionais que não estejam ligadas a uma inquietação metafísica de conhecimento humano. É assim que o personagem sempre está. Olhar perdido, corpo exaurido, suportando uma mente que se desespera ante a violência da vida. Em plena descoberta.

Impossível não perceber como os protagonistas de Dumont parecem alheios, bobos mesmo, num retardo em aceitar as circunstâncias disponíveis para enfrentar o correr dos dias e tudo que eles trazem consigo, seja bom ou ruim. Chega ser sufocante acompanhar em A Humanidade o desenrolar de uma investigação que está confiada a um homem aparentemente palerma, fraco e constantemente passivo. Mas há um equilíbrio, um alívio, sempre que a intriga é abandonada (quase o tempo todo) para que acompanhemos aquilo que eu já venho falando dos outros filmes de Dumont: personagens que simplesmente vivem. Que se contentam em contemplar.





Nessas horas, corrijo-me, não há um abandonar narrativo, um desinteresse pela trama estabelecida, ao contrário, há um intensificar, um desdobrar de percepções que significa os mistérios a um domínio epifânico de deslumbre. Talvez seja em momentos assim que a investigação realmente avance.

Não quero cair no lugar comum e óbvio de dizer que a investigação do crime é apenas uma metáfora para a investigação do humano. OK, acho até que eu já disse isso, mas não posso encerrar o trabalho de Dumont em uma alegoria. O fato é que se fosse somente isso, mesmo assim eu não poderia usar o termo “somente”, porque já seria grande. Mas é ainda mais. Mais do que uma pré-disposição filosófica, o olhar de Dumont sobre as coisas, diretamente refletido na maneira como seu protagonista também olha, interessa-se sobretudo pela capacidade que o cinema tem de ver, de sentir e perceber o mundo.

Antes de representar,
O cinema também vê.

Emblemático é o momento em que o investigador precisa, durante um interrogatório com um suspeito (vejam: excepcionalmente narrativo e centrado na intriga), parar de perguntar, debruçar-se e cheirar o acusado. Mais adiante, no fim do filme, frente ao verdadeiro culpado, ele precisará beijá-lo...

Não há fraqueza aí.

O que Dumont possibilita com cenas assim é uma reação visceral do homem diante das coisas e das situações que lhe envolvem. Retira o persona de sua aparente passividade igualando-o ao espectador que já não se satisfaz em assistir o filme sem desejar um maior contato com o mundo (o primeiro ângulo dá margem justamente ao interesse pelo interpretar, pelo reagir diante da obra). São essas reações que conduzem o investigador ao desfecho, à resolução do caso. E nesse sentido posso encontrar um avanço espiritual em relação ao filme anterior de Dumont: A Vida de Jesus (1997).

Se naquele, toda a atividade reflexiva era iniciada pela câmera e pela elaboração formal que não contava com grandes contribuições dos indivíduos representados (mesmo assim com brilhantismo), neste, homem e câmera se unirão para perceber o redor, para atravessar os contornos espaciais e experimentar no âmago (de si e das coisas) aquilo que lhes permitirá vislumbrar a resolução do problema.

Mas não se enganem.
Não esperem uma resolução satisfatória.
Ou melhor, não se satisfaçam com o que pode ser esperado.
A única saída é voltar ao pó.

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