sexta-feira, 5 de junho de 2009

EIS: O HERÓI


Gran Torino, Clint Eastwood, 2008.

O homem precisa de heróis. Eu sei. Homero e Frank Miller já me convenceram disso faz tempo. Mas é incrível como o homem do século XXI tem experimentado dessa necessidade com tanto ardor. Não quero ficar divagando nas motivações para isso (políticas, econômicas...), nem fazer um levantamento do que toda a indústria do entretenimento tem feito com essa demanda. E falando em indústria, é justamente por ela que eu tenho me cansado de heróis. Não há canal de comunicação que escape. Para ficar só no cinema (pra variar), difícil contar o número de filmes heróicos que nossa década tem vomitado. Não há gibi, não há game que driblem a adaptação (existe termo mais desgastado no cinema atual?), e mesmo os raros lampejos de criatividade não conseguem se despir da medíocre carcaça que tem deturpado o cinema em seus valores, técnicas, e mesmo fundamentos de linguagem. Por isso é difícil conter o entusiasmo diante de um novo ‘filme de herói’ que reacenda minha esperança.

Assistir um filme como Gran Torino é convencer-se que está longe, talvez inalcançável o tempo em que o homem possa prescindir de um herói; mas acima de tudo, é convencer-se (pelo menos a mim) que não existe melhor forma de se lidar com a imagem em movimento a favor de uma narrativa do que sabendo conscientemente que essa imagem precisa de um lugar, adequado no espaço e no tempo, na medida exata para a percepção de um espectador. Digo isso porque está cada vez mais difícil ir ao cinema e não ser bombardeado por uma sucessão ininterrupta de imagens que ignora a verdadeira funcionalidade do movimento audiovisual, que despreza o sabor de narrar sem exceder a tessitura da própria tela, dos próprios sentidos humanos. Nesse sentido, Clint Eastwood se impõe mais uma vez, não apenas como o herói do seu inesquecível personagem Mr. Kowalski, conhecido pelo Gran Torino em sua garagem, lembrando o verdadeiro valor de uma atitude heróica dentro das possibilidades humanas, sem efeitos especiais ou mutações genéticas, mas como o herói que o cinema precisa (não vou limitar ao americano) para lembrar que um bom filme precisa de pouco para salvar uma alma.

O invejável vigor de Clint, no auge dos seus 78 anos, origina mais uma vez uma obra que nasce clássica, não apenas por se valer da linguagem clássica da narrativa cinematográfica, mas por possuir em si toda a força necessária para a resistência do tempo. E ainda que possa parecer apressado falar isso de um filme em cartaz, eu prefiro correr o risco. Para mim, Gran Torino não alcança a genialidade de projetos anteriores, como As Pontes de Madison ou Menina de Ouro, mas se estabelece como um dos mais importantes filmes de sua carreira e da presente década, refletindo conflitos do contexto social contemporâneo sobre um alicerce de questões que perpassam a humanidade desde a antiguidade.

Não posso deixar de lembrar a relação que o amigo André (texto aqui) fez entre esse filme e a outra boa experiência da temporada, O Lutador (Darren Arronofsky), associando-os pelo tratamento da memória e da nostalgia presente em ambos. Eu não apenas concordo que se tratem de filmes irmãos (e aqui Aronofsky prova que é também possível fazer bom cinema com uma imagem frenética, de edição apressada), como prefiro enxergar o parentesco exatamente no elemento que comentei de O Lutador, alguns dias atrás: o cristianismo. Se Gran Torino me alegrou por mostrar que o ‘filme de herói’ ainda tem muito a oferecer, a alegria foi ainda maior por ver que estava diante de outra variação da Paixão de Cristo, exatamente como em Aronofsky.

Como eu não quero ser o estraga prazeres de plantão, não vou comentar o final de Gran Torino (realmente grande), pois muitos ainda devem estar por ver o filme (por favor, vejam! É para isso que eu estou escrevendo). Mas posso de antemão, e sem falar diretamente sob uma ótica cristã, que Clint Eastwood mais uma vez se preocupou em fazer de sua arte um veículo para o questionamento da fé. A vida e a morte, o homem e Deus, perguntas-chave que em Menina de Ouro já foram trabalhadas com tanta delicadeza e sabedoria, aqui retornam para reafirmar minha convicção de que duvidar é um ato de fé, envolvendo mais sacrifício do que qualquer ritual religioso. E se Eastwood é grande pela coragem de mostrar um herói que encontra toda sua força na limitação humana, assim como por provar que a imagem cinematográfica não precisa de um discurso truncado e pretensamente complexo para contar bem uma história, para mim ele é ainda maior por se preocupar com o espiritual do homem, do mundo, o espiritual da arte.

Gran Torino me salvou.

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