sexta-feira, 5 de junho de 2009

DO UNIVERSO ARTÍSTICO

Pela primeira vez encontro uma ‘alfinetada’ ao mestre Hitchcock que eu não tenho como refutar. Muito sutil, é verdade, afinal ela se direciona a outros mestres universais, mas que não teme em apontar a limitação, o elemento que restringe de alguma forma a elaboração artística questionada. A seguir, uma parte do grande texto de Michel Mourlet, publicado originalmente na Cahiers du Cinema n.111, numa análise ao cinema de Joseph Losey.

“Que um artista tenha um ‘universo’ é uma declaração de impotência, de limitação e, mais gravemente, de artifício. Stendhal, Racine, Bach ou Da Vinci não têm universos. Eles se interessam sem dúvida por certos aspectos do mundo em detrimento de outros, e isso cabe à sua honra, mas sabem como não escoar essas formas privilegiadas pela calha de uma sensibilidade caricatural. Podemos dizer: o universo de Kafka. Não podemos dizer: o universo de Losey. O que desorienta os detratores deste último é a ausência de referências a um vício fundamental do ato criador, capaz de manter seus sentidos fluidos ou imprecisos. Nessa perspectiva, Hitchcock tem um estilo e Losey não. A noção de estilo recobre por conseguinte um direcionamento do verdadeiro: Hitchcock, Welles, Eisenstein inventam formas, certamente, mas essa constatação não é a mais severa das críticas? O artista não inventa, ele descobre, senão nós nos curamos de seus fantasmas. A história da arte é em grande parte a história das doenças do espírito. Pouquíssimos artistas seguiram a estrada retilínea do olhar puro. O olhar puro quer dizer essa perfeita limpidez da consciência no fundo da qual as formas verdadeiras do mundo se desenham, e que se chama também de inteligência porque, conforme veremos, a inteligência e a beleza não se separam.”

Tenho certeza que a transcrição não me deixa mentir ao afirmar que temos aí um grande texto. E melhor, uma excelente oportunidade e abertura para o pensamento estético, sua motivação, seu estatuto e designação vocabular. Isso mesmo, vocabular. Conceitual. Inicialmente me espantei com a lógica de Mourlet sobre essa nomenclatura do “universo artístico”, afinal eu estou sempre usando essa locução (podem olhar os últimos posts, ‘universo hitchcockiano’ cansa de ser repetido, rsrsrsr), mas há muito sentido na continuidade do raciocínio. Bem, não tenho por mérito avaliar a validade no intencional artístico de caras como Kafka ou Eisenstein, mas me permito apenas um senão e talvez uma correção a todas as referências ao se comentar o ‘universo’ de tais autores, e claro, minhas anteriores recorrências ao termo. O que talvez se adequasse mais nesses casos seria a presença de uma ‘poética’, algo que traria ainda o senso comum levantado com ‘universo artístico’ e ampliaria conceitualmente a idéia de “um determinado gosto convertido em programa de arte, onde por gosto se entende toda a espiritualidade de uma época ou de uma pessoa tornada expectativa de arte.” (PAREYSON em ‘Os Problemas da Estética’)

OK, mesmo assim reconheço que é muito provável eu falar do ‘universo hitchcockiano’ já amanhã (eu acabo gostando dessa idéia de ‘universal’...), mas ao menos o parêntese conceitual está aberto e compartilhado. Decidam aí qual a melhor nomenclatura e claro: não liguem para o que Mourlet falou de Hitchc... Seu texto ficou lindo, mas ninguém é perfeito... Só o Hitchc...

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Algo para mim?