segunda-feira, 22 de junho de 2009

MEUS OLHOS VÊEM

No debate pós-filme da última Sessão Dissenso, o amigo Gerard disse uma coisa muito linda, e eu sei que ele nem imagina como me atingiu com sua reflexão. Ao mencionar a beleza das caminhadas em Béla Tarr, especificamente uma em que o protagonista corre sobre os trilhos de um trem que não surge, ele lembrou que esse ato de se movimentar sempre em frente, numa linearidade impossível de romper, relaciona-se intimamente com o próprio desencadear de imagens que resulta na impressão final do movimento cinematográfico. O prazer da CINEMATOGRAFIA, como ele tanto gosta de enfatizar: Cinema/Grafia (escrita do movimento de imagens). O meu prazer...

Que leitura brilhante! Nas caminhadas sem fim de Gerry e de todos os demais filmes que têm me encontrado, reveste-se uma significação direta da constituição cinematográfica em si, pura. Ao mesmo tempo um reflexo de todo o anseio do humano que não desiste de seguir em frente, de avançar, ansioso por encontrar e tocar a verdade das coisas, possibilidade atingida dentro do cinema através da precisa (re)apresentação do mundo e dos corpos que nele seguem em frente, em frente, em frente...

E é no ritmo das palavras que se repetem que voltamos aos trilhos.

Os trilhos vazios na paisagem vazia que o já vazio personagem insiste em desbravar.

Pressa.

Movimento.

E como não se lembrar dos trilhos primeiros?


As Harmonias de Werckmeister, Béla Tarr, 2000.


A Chegada do Trem na Estação, Auguste e Louis Lumière, 1895.

No lugar da locomotiva um homem.

Sobre ele outro transporte, mais contemporâneo, mais veloz.

A ameaça é maior.



E se no mesmo debate também nos remetemos às referências bíblicas que inundam o cinema de Tarr, com a evidente associação do grande peixe de Jonas e a baleia de Werckmeister, pois ambos (o peixe e a baleia) cumprem o papel de transformação interna do personagem, para o bem ou para o mal, não posso deixar de mais uma vez citar a Bíblia, nas palavras de Jó (livro que nos capítulos 40 e 41 também se refere a um grande monstro marinho, do hebraico beemote, popularmente lembrado como o Leviatã):

“Eu te conhecia só de ouvir, mas agora os meus olhos te vêem.”

São as palavras de um homem que após um longo martírio compreende a grandeza de Deus. Palavras que poderiam ser proferidas pelo protagonista de Tarr, ainda que todo seu trajeto tenha apenas o aprofundado ainda mais no sofrimento. Palavras que eu posso sim declarar após uma experiência cinematográfica como essa.

Pois na baleia do filme a manifestação de Deus.

Um Deus que no final é esquecido, abandonado em praça pública sob a névoa da guerra (assim como os trilhos dos Lumière), mas que não se permite morrer na memória de quem o viu.

O niilismo de Tarr ironicamente me traz esperança.

Pois não há expectador de cinema que não possa ser Jó, que não possa repetir suas palavras sob o mesmo deslumbre, a mesma graça de enfim contemplar o que não poderia ter alcançado de outra maneira.

Graças ao cinema meus olhos vêem.

Um comentário:

  1. Perdi essas palavras porque não fiquei para o debate. Infelizmente, já disse, tinha uma viagem.
    Mas espero outras chances...
    Nem imagino o que possam ter dito sobre o filme... já que minhas impressões podem não se confundir com a de outros...
    Mas... o movimento, sim... as caminhadas...

    ResponderExcluir

Algo para mim?