sexta-feira, 5 de junho de 2009

NA FENDA DO SUSPENSE

Experimentar os episódios que Hitchc concebeu para a TV na década de 50 aumenta ainda mais o espanto diante de sua genialidade, principalmente porque essa foi a década mais produtiva e com maior número de obras-primas que ele fez para o cinema (lembrada como década de ouro na filmografia dele). Outro dia eu coloco algumas informações técnicas sobre o seriado (Alfred Hitchcock Presents), mas por enquanto eu gostaria de passar algumas impressões sobre os episódios em si. Cada post um episódio, pretendo nos próximos dias fazer uma cobertura completa sobre as 17 pérolas de 23 minutos (ou seja, curtas), pelo menos na medida em que elas forem sendo postadas no MKO e que eu for baixando (já estou com 4).


Vingança, Alfred Hitchcock, 1955.

Um casal apaixonado. Ela se recupera de algum problema de saúde (talvez um stress, coisa sem importância naquela época). Ele vai trabalhar. Quando retorna, encontra-a no chão, em estado de choque. Agredida por um estranho homem que conseguiu escapar. A polícia não tem pistas do sujeito, não resolve o caso. Decidido a vingar-se pessoalmente, o marido localiza o homem quando a mulher aponta “é ele”. Sem dificuldade o persegue, flagra-o sozinho e o assassina com violentos golpes. Ao voltar para a esposa, segundos depois ela olha para outro homem e afirma da mesma forma “é ele”...

Habitualmente não gosto de resumir história de filmes, vocês sabem. E quando resolvo fazer não polpo ninguém do final (rsrsrs). Nesse caso é impossível não se importar com a história, pois ao lidar com TV, ou seja, um público maior, Hitchc se preocupou muito mais em chocar através da trama narrada, principalmente pelo final impune, com um homem que se vinga cometendo um crime e que não é condenado por isso. É verdade, Hitchc aparece após o filme (sempre aparece, antes e depois, com muito humor) para dizer que ele foi capturado, julgado e pagou a sentença do crime. Palavras que talvez tenham convencido os espectadores da época, mas que passado tanto tempo perderam o valor, todo este restituído às imagens e ao que elas exatamente representaram, sem preocupação moral e com muita ousadia.

É notável o trabalho que Hitchc faz de naturalização do casal e de seu cotidiano. Eles acordando, tomando o desjejum, conversando sobre o banal, tudo isso por quase 10 minutos (!!!) mostra que ele não teve pressa em contextualizar a narrativa para só então construir o suspense físico. Distante do american way of life, com um pequeno trailer como cenário, Hitchc parece experimentar o estilo que desenvolverá dois anos depois em O Homem Errado (1957), filme favorito pelos franceses (e um dos meus Tops) justamente por se destacar como um típico exemplar americano do que não costumava ser vendido como americano. É palpável o realismo com que esse casal chega até nós. Da conversa aos gestos, do espaço cênico à decoração do ambiente, tudo é desnudado aos nossos olhos como absolutamente real, ou seja, possível de estar acontecendo na casa do vizinho.



Desnudado. Palavrinha rica que pode e deve ser usada para entender o erotismo com que Hitchc imprime todo esse pequeno e precioso filme. E aqui precisamos falar dessa notável que foi Vera Miles... Uma das favoritas do mestre (daria muito blábláblá falar aqui da turbulenta relação profissional que eles mantiveram), essa foi exatamente a primeira vez em que eles trabalharam juntos (maior valor histórico!). Enfim, ela é outro ponto de ligação com O Homem Errado, pois atriz principal deste outro, também termina aí, enlouquecida e internada num hospício...Mas o que me chama atenção é a carga de sensualidade que ele impôs a ela nesse episódio. Se Janet Leigh causou furor aos censores em 1960 com aquela lingerie, fico imaginando o que acharam de exibir em horário nobre Vera Miles desfilando pelo trailer vestida apenas com a camisa masculina do marido (branca, mangas longas), com somente um botão preso na altura do peito e a sugestão de que ela está nua por baixo. A cena em que ela conversa com a vizinha (nesse figurino) é espantosamente eficaz, pois a atriz se movimenta muito pelo cenário, atraindo todos os olhares para a fenda que ameaça se abrir na roupa, agindo com uma naturalidade impecável, como se ignorasse a sensualidade da situação (na verdade a personagem ignora, isso é o que enriquece o conteúdo da imagem). Pouco depois ela sairá do trailer e arrancará a camisa, revelando um maiô (discreto) por baixo e deitando-se para tomar sol (sob uma câmera que percorrerá impunemente todo o corpo). Outro momento de tensão com a nudez da atriz é a cena em que o marido (Ralph Meeker) a encontra agredida. Não temos o ponto de vista dele. Acompanhamos toda a cena com a câmera em seu rosto e quando voltamos para ela, a encontramos sobre a cama com o lençol cobrindo-lhe os seios dando a entender que talvez o agressor a tivesse despido e mesmo violentado sexualmente (gente, estamos falando de um filme de 1955, vocês conseguem imaginar a potência dessas sugestões???). Não fica esclarecida a violência do crime, tudo é muito sutil e perigoso de se falar ou mostrar, e essa insegurança que nos resta aumenta ainda mais nossa curiosidade pelo desfecho.

Enfim, o final é antológico e só vendo pra ter noção... Mas eu queria mesmo concluir voltando à fenda na camisa de Vera Miles (céus, corro o risco de ficar com fama de tarado). Isso porque vejo nesse elemento um excelente símbolo para o cinema do mestre, para o que ele acreditava ser o suspense capaz de fazer num espectador. Vejamos, não estamos lidando aí com um crime mirabolante, com um mistério, nem sequer nos aproximamos do medo, mas se aproveitando da hipocrisia dos censores (contextualidade histórica), o mestre soube criar uma inusitada situação de suspense para o espectador; atenção! os personagens não estão em suspense, a história não está em suspense, mas a imagem está impregnada com o mais rico e valioso suspense que somente será visto pelos olhos de quem experimentar a obra (e não apenas olhos dos anos 50, mas de hoje também, afinal nudez nunca deixou de ser tabu). Nessa fenda temos uma chave para a compreensão do próprio episódio (assim como não havia nudez por baixo da camisa não haverá verdadeira agressão contra a mulher, coisa que o marido só perceberá tarde demais, após ter matado um falso culpado – tema hitchcockiano por excelência – ah, e esse assassinato veremos apenas pela sombra, ou seja, deduzimos que o indivíduo realmente morreu), e uma síntese para a arte cinematográfica em si, sempre a lidar com a sugestão, com a incerteza e irrealidade dos fatos para assim obter outro nível de realidade.

OK, eu posso ter ido longe demais, mas com Hitchc eu sempre chego muito longe...

Um comentário:

  1. o que me maravilhou no curta foi a disponibilidade de deixar tudo em aberto, ou tudo o que importava. diferentemente do geral de hitch, achei a trama descartável, sem graça, previsível. e tanto melhor, pra que tentássemos encontrar um algo mais. a construção é exata, e as fissuras vão aparecendo (muito boa a lembrança da fenda na blusa) aos poucos, de um acordar e ir pra cama do outro, do despojamento + camisa + pernas, do passado com toques sinistros, culminando naquela olhada da vizinha. aquilo ali tem um desejo muito explítico (discordo de inveja/muxoxo pudico), abre um abismo no filme, volta os sentidos de quem tá vendo pra todo o não dito/não mostrado. fiz ponte entre a olhada e a orelha da grama de lynch, q ao longo do filme ia mostrando tudo. hitch não explica nada, termina a trama como q batendo ponto. o q fica é o veneno do ambiente, as forças ocultas na vizinhança tranquila. enfim, tudo que os americanos iam repetir à exaustão algumas décadas à frente.

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