sexta-feira, 12 de junho de 2009

O CORPO SACRIFICADO

Relembrar minhas pesquisas sobre a semiótica da tatuagem a partir do filme de Cronenberg e exibir (sadicamente) algumas lindas cenas dele ao público desavisado no Seminário Intersecções foram o ponto alto desses últimos dias. A seguir, uma parte de análise que não foi publicada no livro, numa relação com o texto de Franz Kafka, Na Colônia Penal (1914).


Senhores do Crime, David Cronenberg, 2007.

Nesse lugar, sua nudez (tatuada) o denunciará aos inimigos e um embate mortal se dará. É o corpo denunciado. Portador não mais de um sinal de honra, mas de uma maldição que poderá levá-lo à morte, assim como na história kafkiana. A tensão dos corpos atinge nessa seqüência um clímax que beira o sensorial. A nudez desinibida do ator não chega a provocar um esclarecimento de seu corpo, pois a todo o momento fica a impressão de que a totalidade do ser não pode ser vista, não se permite apreender por olhos externos à pele marcada. Ainda que as tatuagens se ofereçam aos nossos olhos, elas parecem manter em oculto um misterioso significado vital, que se for revelado trará a imediata morte do sujeito.

O desnudar é um tema recorrente na pintura e na literatura. É o momento em que o corpo se faz objeto de arte viva. Para alguns autores, o ‘pôr a nu’ é como ‘pôr à morte’, como se o corpo, desvestindo-se, se abandonasse às vertigens do nada e se separasse de toda aparência de ser ainda um sujeito. É o momento em que o corpo, na visão e no ato de ser visto, faz desaparecer a distinção sujeito/objeto. O desnudar é o momento atemporal da soberania do desejo na epifania das imagens corporais.
(Henri-Pierre JEUDY, O Corpo Como Objeto de Arte)


Curiosamente, durante a entrevista com os membros do clã, Nikolai afirmou: “Já estou morto. Morri aos quinze anos. Agora, vivo em torpor o tempo todo.” A negação de si confessada por ele, ecoa no corpo seminu exposto ao clã e culmina na trágica luta em que sofre mesmo sendo inocente; à beira da morte por um crime que não cometeu, no lugar de alguém, sem nem saber a razão. A relação Nudez/Morte proposta na citação de Jeudy é plenamente visualizada nesse momento de cuidadoso apuro cinematográfico, confirmando o abandono do corpo ao nada, entregando-o a disposição da única certeza que o corpo humano possui: seu fim.



A revelação final de que Nikolai era, na verdade, um espião infiltrado na máfia para investigação dos crimes, intensifica a sensação de que seu sofrimento foi realmente imerecido. Novamente o conceito de sacrifício ganha lugar. As violentas imagens do corpo ensangüentado, sacrificado, mutilado sobre a pele tatuada, também nos remetem mais uma vez aos acontecimentos de Na Colônia Penal. Assim como Kafka não poupou detalhes para descrever a tortura sobre o punido, Cronenberg não economiza em sua capacidade imagética de chocar e causar polêmica.

Ambos os autores encontram nesse castigo uma provável sublimação, reflexo da dor/prazer que a pele sofre/goza ao ser queimada por uma tatuagem. Neles, a reflexão sobre uma ‘Semiótica da Tatuagem’ torna-se não apenas possível, mas imprescindível de ser feita, pois a cada mudança que o homem realiza em seu corpo, novas motivações podem ser encontradas, novas significações e sentidos, num natural ciclo de desenvolvimento da vida que se promete infindável.

A compreensão de que a carne tatuada sobrevive em constante subjetivação eleva o estatuto do corpo a uma dimensão simbólica peculiar ao processo desenvolvido pelo conceito de imaginário. Assim, no universo criado por Kafka e Cronenberg, encontramos um desdobramento do humano em ser mítico, mas que não se limita à diegese artística e fictícia somente. Cada corpo tatuado, mesmo dentro de uma materialidade concreta e ‘real’, entra na ordem de um novo ser, uma nova mensagem, uma nova possibilidade de vida a ser lida e apreendida.

Um comentário:

  1. Grande!!

    Bem vindo!
    Bela estréia. Que os novos ares lhe façam muito bem.

    Grande abraço

    Neo

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