sexta-feira, 5 de junho de 2009

EU SEI QUE ELE ME VÊ


Downhill, Alfred Hitchcock, 1927.

Em Downhill já temos uma impactante antecipação do que seria popularizado como o ménage a troi (não sei se a grafia está correta). A mulher acima seduz os dois personagens sem nenhum pudor, dentro do mesmo espaço e ao mesmo tempo. Aquele que não aceita a proposta indecente será o falsamente acusado por roubar-lhe (aquele que descerá a escada rolante). São inúmeras as mulheres ‘avançadinhas’ (e bem raparigas) nessa obra, sendo o filme mais uma rica fonte para as inúmeras personas feministas que Hitchcock cunhou ao longo de sua carreira. Enfim, são tantos os aspectos que eu gostaria de enumerar que não posso evitar a superficialidade.

Entre os quesitos técnicos destaco: o relato dessa mesma mulher ao acusar o inocente (um super close em seu rosto com a fusão das cenas que ela narra em sobreposição à face, temos aí também uma excelente utilização dos letreiros que esclarecem um filme mudo, dispostos mesmo nos cenários utilizados); o delírio vivido pelo inocente dentro de um barco (os sonhos são apresentados com uma filmagem natural, sem precisar borrar a imagem ou qualquer coisa do tipo, assemelhando bastante ao tipicamente inusitado de Buñuel, e claro, não poderia deixar de mencionar: ele se utiliza de câmera na mão quando o personagem acorda!! e estamos em 1927...); além do simbolismo de diversas imagens no sentido de queda, de declínio e desamparo vividos pelo personagem.

Dentro desse simbolismo é de suprema importância a cena do baile em Paris, em que o personagem dança com mulheres solitárias por dinheiro. A impressão de uma prostituição é confirmada pela presença da mulher gorda (felliniana) que lhe arranja as parceiras, uma típica cafetina de cabaré. O momento em que ele abre a janela e percebe a podridão do ambiente burguês, num giro de quase 360 graus da câmera, é o ápice da decadência que o filme apresenta (comparada por Carlos Melo Ferreira ao grande Antonioni de A Noite). Foi aí que se confirmou em mim a nobre intenção de Hitchcock não de fazer um simples libelo moralista, mas sim dispor um retrato da miserável condição humana, em toda a crueldade que se pode cometer contra um inocente (é de se descontar a excessiva inocência do personagem, ela intensifica o impacto das situações).

Para concluir por hoje, voltemos ao ângulo acima. Percebam que nesse instante, quando ela se aproxima dos homens, também está se aproximando de nós, nos ameaçando e seduzindo. Afinal, a câmera está bem atrás dos atores masculinos, como se fosse um outro captado pela armadilha (esse outro somos nós!). Tal impressão é marcadamente confirmada quando ela também nos lança um olhar (vejam bem, ela está olhando entre os dois, na nossa direção). Ah, o jogo do olhar em Hitchcock... Ele sempre fez questão de deixar claro que estava nos vendo, antecipando o que sentíamos, e eu sei, ele ainda me vê...

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